Bússola do Muito Mar

Endereço para achamento

jjorgecarvalho@hotmail.com

Número de Ondas

segunda-feira, 22 de março de 2010

Variações Sobre Um Cristo de Vergílio Ferreira


Houve aquele silêncio, aquela solidão anoitecendo o Gólgota; rumorejaram ervas ao redor das cruzes e o homem a quem chamavam o eleito recomeçou a acreditar na morte.
Disse Pai, Pai, por que me abandonaste, Por que me abandonaste, Por que me abandonaste, e no vento se perdia a pergunta misturada com algum eco: Pai?
Um vulto veio então, um vulto que de certo modo não vem na Bíblia, um anónimo vulto com cinquenta anos, barba como tempo branco suspenso do rosto, um vulto velho dito o José Só, que outrora desposara Maria, dita a Mãe pela vizinhança das cruzes.
Ouvia-se sempre: Pai por que me abandonaste?
Um vulto, pois, subiu ao Gólgota, e ali chegou à hora mesma do choro infante do homem na cruz.
O que ali se ouvia era, como já se disse, uma pergunta repetida até ao sangue: Pai, Pai, por que me abandonaste?
E o vulto, que era José, dito o Só, carregado de tempo e com óculos de lágrimas entre si e a paisagem de montes e cruzes, ouvindo a pergunta (Pai, por que me abandonaste, Pai?), gritou: Não te abandonei, filho, nunca eu te abandonei. Estou aqui, soube agora da tua desgraça, da injusta mortalidade a que te reduziram a terra e, afinal, também o céu. Eu não te abandonei, filho.
Mas o homem na cruz não o ouviu, não o quis ouvir. Fechou portas e janelas e varandas de ouvir, e repetiu: Pai, por que me abandonaste?
E José, dito o Só, percebeu que era para cima, o céu, que o homem na cruz falava, cansado já de perguntar e de olhar para cima: Pai?
Aquele vulto velho vindo de há muito longe desceu, então, lentamente o Gólgota. Lentamente regressou ao seu lugar de viver, feito de chão e humanidade imperfeita. Lentamente regressou àquele seu celibato triste do novo nome: Só.
Só como sombra inútil de personagens sagradas.
Quase a medo, murmurou (pecando): Filho, Filho, por que me abandonaste?


Coimbra, já 22 de Março de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A pintura-supra, “S. José com o Menino Jesus”, é do italiano Guido Reni (1575-1642) e foi colhida na Wikipédia.]

Sem comentários: