A autoridade dos autores
Milan
Kundera (salvo erro, no romance A Imortalidade)
fala da angústia que um homem sente perante a possibilidade de, morrendo, não
ter mão no seu legado circunstancial: objectos, cartas, documentação vária.
Sobretudo, sublinho eu, textos por depurar ou destruir.
A
noção de mortalidade convive, a esse nível, com a noção de devir para além do
próprio fim. O drama percebe-se melhor, creio, se visto do ângulo de quem tem
esse hábito (aliás, essa pulsão) da escrita. A essa gente assusta a simples
hipótese de os leitores vindouros tomarem por importante o que foi transitório
e, afinal, do ponto de vista do criador, irrelevante. Ou de, perante um borrão
literário (um esboço, um rascunho, uma proto-ideia de escrita), se desiludirem
com a aparente incipiência do autor falecido.
Não
me parece que o maior medo decorra de uma – ainda assim, natural – ilusão de
importância que o autor atribua à sua obra. É antes uma questão de dignidade. De auto-respeito,
naturalmente, mas em especial de tributo à literatura que quis servir.
Muitos
dos nossos autores já mortos indignar-se-iam decerto com as edições póstumas
que a gula de famílias e editores fez publicar, ao arrepio provável da vontade
escriba.
Eu,
que sou a milésima migalha dos meus escritores amados, adquiri recentemente o
hábito de deitar para o lixo ou ao fogo alguns textos (antigos ou recentes).
São coisas da minha lavra, sim, mas demasiado más – aos meus olhos – para serem
lidas. Demasiado más para serem a literatura que eu quis, que eu imaginei em
determinada ocasião.
Visível
ou invisível, a matéria escrita tem que ver com a noção muito lata de autoridade: somos autores do que
mostramos e do que, por opção (exercível enquanto estamos vivos), não deixamos
os outros ver.
Ribeira
de Pena, 24 de Abril de 2016.
Joaquim
Jorge Carvalho
[Esta
crónica foi publicada no semanário O
Ribatejo, edição de 28-04-2016.]