Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Aula de literatura


O meu pai ia, muitas vezes, beber cerveja ao Café "O Rio", ali junto à Estação Velha. O Daniel Abrunheiro viu-o pela última vez nesse lugar, sem saber que era a última vez. Lembrando-se disso, afirmou-me, pelo telefone, em geniais versos de língua portuguesa, que o Café "O Rio" se chama (se deve chamar), agora, Horácio. Portanto: que o meu pai, senhores, não está morto, tirando esse simples facto de aparentemente não o vermos. Que está, senhores, infinitamente vivo nas palavras (minhas, do Daniel ou do latino Horácio) que o dizem, que me o dizem.
E era preciso a muitos professores de literatura que soubessem desta verdade essencial sobre os versos e a vida.

Cabeceiras de Basto, 29 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Amor é


O amor é uma ave nunca bem pousada
Na árvore da nossa vida:
Vemos a sua sombra antes da chegada
Ou a sua falta depois da partida.

Ribeira de Pena, 28 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.queirozclarc.blogspot.com.]

Avenida da Noruega


Eu subo e desço as escadas
Dos meu dias aziagos:
Tantos dias são maçadas
(Muito poucos são afagos).

Às vezes, subo encantado
Às vezes, desço cansado
Às vezes o inverso disto
(Às vezes, quase desisto)

Subo escadas, desço escadas
(Vivo no segundo andar) -
Quem me dera em vez de escadas
Um céu grande p'ra voar!


Ribeira de Pena, 27 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (escadas monumentais, Coimbra) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.inebra.blogspot.com

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Mãos de Pai


Em 1970, na barrinha de Mira, aprendi a nadar de costas. Na gloriosa estreia desta competência nova, dei por mim afastando-me de terra e, com alguma preocupação, fui vendo os rostos da Mãe, do Pai, dos irmãos Tó e Fátima cada vez mais longínquos. Quis dar meia volta e não consegui. Assustei-me, tentei pedir ajuda. Nada. A aflição paralisou-me braços e pernas, a água escondeu-me de toda a gente, senti ali a vida a deixar-me docemente.
“A morte”, podia eu ter pensado.
Mas não. Uma mão forte levantou-me, arrancando-me dali. O meu Pai, que não sabia nadar, senhores, salvou-me a vida com a precisão e o brilho de um herói de cinema.
Tenho-me lembrado muitas vezes do meu Pai. Porque o amo apesar de morto (assim o salvando de estar morto). E porque todos os dias há traiçoeiras águas em que, por culpa nossa ou alheia, caímos, ficando a faltar-nos uma mão que nos ajude, nos salve. A mão de um Pai.

Ribeira de Pena, 26 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (Barrinha, Praia de Mira) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.dganodontacygnea.blogspot.com.]

Lírico-didáctica levemente optimista


É poeta todo o professor
Tecedor de humanidades melhoradas:
Diz escreve ensina em seu labor,
Às almas que em si buscam, confiadas,

As sábias palavras do rigor,
Tudo quanto ele sabe d'existir.
É poeta todo o professor
E o seu tempo verdadeiro é o Porvir.

Vila Real, 25 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.soseducacaopblica.blogspot.com.]

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Oração de graças


Bem-vindo sejas, sol, que me trouxeste
Um dia luminoso, um dia assim -
Rezei por ti à noite e tu vieste
Inteiro e limpo residir em mim.

Ribeira de Pena, 25 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.ecomuseuribeiradepena.blogspot.com.]

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Felicidade


Jornada difícil, penumbrosa, comigo mergulhado naquela névoa de estar doente e, tanto quanto pude, cumprindo os meus deveres funcionários.
Ao final da tarde, lá fui - como quem vai à missa - ao ritual do euromilhões, confiar a minha fortuna aos eurodesígnios de Deus Nosso Senhor. Um homem, decerto agricultor, ri-se de uma piada sobre o jackpot e atira: "A mim já me bastava que chovesse..."
É quase noite quando subo os degraus de casa, antecipando já a volúpia da minha cama e de um livro ou um jornal. Chego cheio de uma sede que me acompanhou durante o inteiro dia.
Beijo na MP, telefonema para Coimbra, água.
Persiste a sede. Troco olhares com duas lindas tangerinas. Sacio-me delas. O mundo parece agora um lugar mais amigável.
E enfim surge-me a metáfora que iluminará o bilhete postal: a felicidade é estar em casa e haver tangerinas.

Ribeira de Pena, 24 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.naranjasdelarosa.es.]

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Interrupção


Demora o calor. Vai-me com a idade sendo mais difícil suportar o frio das manhãs, das tardes, das noites. O meu corpo produz muco nasal com a fúria de uma dívida grega ou lusa. Tusso muito, tenho arrepios, uma espécie de gripe anda teimosamente por mim, indo e vindo, cabra. O trabalho, assim, custa mais. Levantar-me é uma violência hiperbólica e anima-me apenas a ideia de que já-já (quero dizer, daqui a umas dez horas) volto para o único lugar da terra que verdadeiramente me apetece: a cama.
Esta (in)existência horizontal, em tempo de saúde frágil, é uma espécie de treino para a morte. Bebe-se um chá muito quente, esfrega-se o peito com álcool, fecha-se o olhar e abraçamo-nos à anestesia da noite. Vida suspensa.
Amanhã estarei bem, penso pouco convictamente. Peço desculpa por esta interrupção. O sol seguirá dentro de algumas horas.

Ribeira de Pena, 23 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Ruas vistas d'agora


As ruas de Coimbra são recordações
De mim antigo dono desta cidade
Ainda muito virgem de desilusões
E mortalidade.

Vila Real, 22 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC]

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Alface


Uma alface com o vício das deputices, que fala da vida como se já tivesse verdadeiramente vivido, explicou que a mobilidade de funcionários é boa e é justa. Disse-o com um ar blasé de alface chique, e com a mesma segurança que já exibia enquanto jotinha.
Não tenho tempo nem paciência para lembrar à alface que, mesmo quando (ou se) alguma razão nos assista no argumento, é preciso decoro ao falarmos de gente, de homens e mulheres de carne e osso com os pais a cargo, a prestação da casa, o crédito de palavra dada na mercearia da esquina.
Mas fica aqui o voto de que à frescura da actual juventude suceda, na alface, o castigo do general Tempo - e essa existência vegetal sofra, no futuro, a justiça poética que merece: talvez uma mobilidade que o leve para muito longe da sua "zona de conforto" e em que se perceba, à roda da insignificância que é, o asco e o desprezo gerais.
Vai trabalhar, alface!

Vila Real, 21 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Relação fotográfica de existências


Nesta minha cidade proliferam
Ervas daninhas, cocós caninos
Nos passeios, desempregados que esperam
Vez à porta do instituto, meninos

Romenos pedindo a bem ou mal
Odores de urina junto ao Mondego
Buracos na estrada com e sem sinal
E velhos inexactamente em sossego.

Mas há lindas laranjeiras também
E o colo ainda de minha Mãe!


Coimbra, 20 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.anavitri.blogspot.com.]

Arte poética (sobre o bom leitor)


A vida que escrevo é signo
De outras vidas como a minha
Quem de mim for leitor digno
Lerá de si cada linha.

Coimbra, 20 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (a figura do imorredoiro Cesário Verde) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.poetanarquista.blogspot.com.]

Quadra a pensar em Trindade Coelho


Do que eu preciso, senhores
Mais do que dinheiro ou livros sábios
É de acreditar nos amores
E de certos beijos certos lábios

Coimbra, Rua Trindade Coelho (interior da Nissan Primera), 20 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (retrato de Trindade Coelho) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.estrolabio.blogspot.com.]

domingo, 19 de fevereiro de 2012

O meu rio Mondego


Sei de outros rios, mas o meu
Chama-se Mondego, é desse
Que tenho saudades, é nesse
Que penso a caminho do mar

Vi tantos rios, já, em minha vida
E muitos me comovem, a beleza
Não se limita aos rios familiares
(Às vezes é até o contrário)

Mas o meu rio é este cúmplice curso
De água, este leito comigo reflectido
Esta antiguidade para sempre contemporânea

O meu rio chama-se Mondego, o meu rio
Tem por dentro em vez do nome a expressão
Meu rio. O meu rio chama-me.

Coimbra, 19 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.vdeguaratiba.blogspot.com.]

sábado, 18 de fevereiro de 2012

A vida num parágrafo só


Coimbra, enfim. A minha casa, o beijo na VL, a (também) minha casa da mãe, o beijo na minha origem, outro na minha irmã, outros nos sobrinhos, boa tarde à vizinhança, abraço a cunhado, corrida no Choupal, churrasco em casa do irmão mais novo (contas à moda do Porto), Real Madrid na Sport Tv, uma anedota sobre um casal num parque de campismo nudista, o Conceição a chamar-me (amigavelmente, como é costume) “chato”, a minha mãe com um ar cansado mas sereno. That’s life. E não é mau nem pouco.

Coimbra, 18 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (relativa à série Family Ties que ando - ah, pois ando - a rever) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.familyguy.wikia.com.]

História breve da minha consciência social


Quando eu era criança, a riqueza de cada um de nós media-se em coisas muito diferentes dos modernos telemóveis, ipodes, tabletes, gadgets, videojogos, etc. No meu caso pessoal, toda a gente sabia que era milionário de uma tribo inteira de índios em miniatura e de uma inteira cavalaria às ordens de Daniel Boone.
Um dia, talvez por causa de alguma consulta médica a que a minha mãe não pôde faltar, tive de levar aaquela riqueza infantil para casa de uma tia ainda solteira, empregada fabril e sempre alegre. Por horas daquela tarde inteira, brinquei sozinho (isto é, com os meus cowboys e os meus índios) aos raptos, aos recontros militares, às emboscadas, à concepção arquitectónica de fortes e de acampamentos. Até chegar a minha adorada mãe e eu voltar para o lar essencial que gloriosamente éramos. O problema foi que me esqueci, em casa de minha tia, dos bonecos. Antes que chorasse, a minha mãe prometeu que no dia seguinte a dita fortuna estaria de novo comigo.
Aconteceu que, no tal dia seguinte, a minha tia recebeu a visita do patrão e sua esposa (acompanhados de uma criança de uns cinco anos). A meio do chá e das torradas de cortesia fabril, o filho dos patrões descobriu os meus bonecos e exigiu-os. E a minha tia, a pensar no emprego, deu-lhos.
Nesse dia, à noite, inacreditando no que sucedera, odiei a minha tia o mais que pude (e era muito).
Anos depois, nunca esquecendo aquela tragédia, odiei o miúdo mimado e os seus pais.
Finalmente, odiei a imperfeição do mundo que leva as melhores pessoas a fazerem tanto mal umas às outras.

Coimbra, 18 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.lista.mercadolivre.com.]

Café de arredores


Gosto de periferias
Da social confusão
Que é ver estas duas tias
E a puta ao mesmo balcão.

(Não explico poesias –
Não é aqui minha função):
Tomai estas ninharias
P’ra vossa interpretação.)

Coimbra, 18 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (quadro de Edward Hopper) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.leodambiga.wordpress.com.]

Olhar, ver


Da minha casa ao Café
Ando cem metros de rua
Quase nada vejo ao pé
Mas vejo, inteira, a lua.

Coimbra, 17 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida,com a devida vénia em http://www.titividal.com,]

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

E a dicção, Senhor?


Na interminável discussão sobre o novo acordo ortográfico, tem faltado quem fale de um território fundamental da língua portuguesa: a (boa) dicção.
Em boa verdade, o argumento de que esta ou aquela consoante já não se pronuncia (ou já quase não se pronuncia) cairia pela base se se sublinhasse simplesmente, "a montante", a necessidade de se falar bem. Antes do respeito ortográfico pelo modo mais usual de pronunciar as palavras, ó senhores, valeria a pena lembrarmo-nos do respeito pela maneira correcta de se pronunciarem as palavras.
O acordo ortográfico vem, por assim dizer, "premiar" os maus falantes do Português (os que comem e atropelam sílabas, emudecem - à força - vogais sonoras, "consonantizam" a língua).
De vez em quando, lembro-me de um senhor professor universitário que, na televisão, depois de atabalhoadamente explicar o fenómeno da dissimilação, anunciou que pronunciar "vizinho" ou "ministro" estava errado; segundo a sumidade lisboeta, deveria antes pronunciar-se "vezinho" e "menistro"... O esquema mental é o mesmo: a norma parece seguir os que, por preguiça ou incúria, falam mal.
No meu quotidiano, a maioria das pessoas que tenho ouvido defender o novo acordo ortográfico são, quase invariavelmente, os que sempre escreveram mal. Penso: afinal, o que lhes interessa deve ser, acima de tudo, que a questão da ortografia seja relativizada. Que valha tudo. Desse modo, acreditam, a sua brutidade lesa-língua pode tornar-se, nesta contemporaneidade generosa, uma cena aceitável, fixe, modernaça.

Ribeira de Pena, 17 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (recordando Fernando Pessa, locutor dos tempos em que era obrigatório, na rádio e na tv, ter boa dicção) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.jcmaximinofotos@blogspot.com.]

Visão do país (à moda de Medina Carreira)


País obscuro
País desesperado
País sem futuro
País passado

Ribeira de Pena, 17 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.vaderetro-hurtiga.blogspot.com.]

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Ler para quê (argumentário minimalista)


Ler é talvez
A melhor solução
Para a estupidez
E a solidão.

Ribeira de Pena, 16 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem é do filme (já referido várias vezes neste blogue) A história interminável.]

Dia bom


Não é, nunca foi meu aluno. Percebi, ao longo de anos, desde que ele apareceu pela escola, pequenino e frágil, que se tratava de uma criança irrequieta. Entretanto, deveio (diz-se) adolescente conflituoso. Entretanto, um quase homem com futuro incerto. Contudo, não sei explicar porquê, houve sempre entre mim e este conterrâneo da escola a comum respiração de um oxigénio respeitoso e divertido. Cumprimentávamo-nos a cada dia com aquele bonomia cúmplice que existe, julgo eu, entre contemporâneos felizes de o serem.
Um destes dias fui transeunte involuntário de um seu dia mau: ele discutia furiosamente com um colega, eu intervim, a conversa tornou-se acesa, depois discussão, eu fiz o papel da autoridade adulta que não admite, que avisa, que ameaça. Professor, senhores.
No dia seguinte, cruzámo-nos e ele desviou a cara, dispensando-se da saudação habitual. Se eu fosse um saudável bruto, aquilo não me incomodaria. Incomodou-me, porém.
A meio de uma tarde, avistei-o numa das minhas pastelarias-escritório. Talvez não me tivesse visto. Interpelei-o. Ele deve ter pensado que eu me aprestava a debitar novo sermão e por pouco não me virou as costas. Chamei-o e perguntei-lhe se estava zangado. Murmúrio ininterpretável. Garanti-lhe, a seguir, que tinha de si boa impressão, apesar do episódio, e que esperava da sua parte a mesma consideração e – vamos lá – a amizade de sempre. E então…
Então, senhores, aquele rapaz alto, há tão pouco tempo um menino do quinto ano que me lembro de ver na fila assustada do refeitório, disse-me isto:
- Professor, peço-lhe desculpa por aquilo do outro dia. Eu estava nervoso e fui mal-educado…
Sorri e cumprimentámo-nos à homem: um passou-bem vigoroso e franco.
E, nessa tarde, houve em Portugal um professor tocado pela graça da felicidade.

Ribeira de Pena, 16 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.pereiraabeldiogo.blogspot.com.
]

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Restante


Está tudo certo
Dentro do esperado:
Vejo mal ao perto
Ando mais cansado

A idade cresce
Na mesma proporção
Com que nos falece
A ilusão

Só não envelhece
O coração
Só não envilece
O coração

Ribeira de Pena, 15 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (o grande Clint Eastwood de Million Dollar Baby) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.pasmosfiltrados.blogspot.com.]

A Escola moderna


A experiência aumenta-nos o volume e a qualidade dos conhecimentos, é certo. Mas igualmente nos brinda, pouco caridosamente, com dúvidas, hesitações, reavaliação (dolorosa, assustadora) do que por anos nos habituáramos a dar por adquirido.
A questão dos "grupos de nível", por exemplo. Acostumei-me a pensar que não fazia sentido discriminar alunos, elegendo turmas de "muito bons", "médios" e "fraquinhos". Encostei-me ao ideal democrático de se elevar toda a gente ao máximo conhecimento possível. Defendi, às vezes agressivamente, a necessidade de não abandonar à sina da mediocridade os menos bafejados pela fortuna socioeconómica ou intelectual.
Entretanto, o tempo, a vida, a profissão.
Tenho-me deparado com a frustração que é não poder avançar porque, na estrada de aprender, se atravessam teimosos ignorantes sem vontade de se demitirem dessa condição. A frustração não tem a ver especialmente comigo, mas com outros alunos (às vezes uma minoria; outras vezes uma boa parte do todo) que querem aprender e não podem. Nesta contemporaneidade, aulas inteiras (ou quase) são passadas a pedir silêncio, atenção, compostura, civilidade. Admito que nem tudo é, aqui, desperdício - mas fica o amargo de as matérias previstas para cada aula (e o tempo de leitura; e o tempo de debate; e o tempo de exercícios sobre as noções aprendidas) se gastar inexoravelmente, quase inutilmente em catequeses comportamentais.
Os jovens problemáticos têm lugar na escola? Sem dúvida.
Mas - e os jovens que querem simplesmente aprender? Isto é - e os outros alunos (os que teimam em se comportar responsavelmente, civilizadamente, normalmente)? Qual é, na escola moderna, o seu lugar?
Eu fui de uma "turma A", desde o 10.º ano de escolaridade, no velhinho Liceu José Falcão, em Coimbra. Não se tratou de cunha ou de estatuto económico (o meu querido pai era um simples operário dos automóveis): estas turmas "de qualidade" formavam-se com alunos que traziam no currículo essa medalha singela de terem sido, até àquela data, bons alunos. Era um prazer ser estudante, ali. E deveria ser também, imagino eu, uma grande alegria ser professor daquelas turmas!
Às vezes, comove-me o olhar fatigado de bons alunos que esperam, com paciência triste, que a interrupção da aula termine e se possa recomeçar o ofício da aprendizagem. São como automóveis na autoestrada impedidos de circular devido à presença inoportuna de (sem ofensa) tractores na via.
Não tenho certezas sobre este assunto, confesso. Mas sei que esta questão do direito à educação não é simples, dada a pluralidade de situações existentes no terreno. Em boa verdade, há nuances neste direito a que a Escola moderna não pode fugir. Uma Escola para todos não tem de ser uma Escola igual para todos.

Arco de Baúlhe, hora d'almoço, 15 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.infonet.com.]

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Rua Augusta, 25


A pétala discreta de uma rosa
O perfume subtil de uma maçã
A música silente e poderosa
O suave rosto da manhã

A luz imorredoira o teu sorriso
A paz depois a pele um doce grito
A graça das palavras sem aviso
Os meus braços nos teus o infinito

Ribeira de Pena, 14 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.1.ci.uc.pt.]

Quadra de S. Valentim: o a[l]mor


Digo-te almo-te, meu amor
E sei o que estou a escrever
Porque se trata de almor:
Amor d'alma - até morrer.

Ribeira de Pena, 14 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC]

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Sporting: o fim de Domingos à Segunda-Feira


Crónica de um desencontro anunciado, esta.
Domingos Paciência teve dinheiro para comprar jogadores. Teve poder para dispensar jogadores. Teve o ambiente certo para trabalhar. Teve a generosidade, a compreensão e (sem trocadilhos) a paciência dos adeptos e da comunicação social. Durante cerca de sete meses, viveu num estado de graça que não tiveram Paulo Bento, Carvalhal, ou Paulo Sérgio.
Jornadas a fio, os sportinguistas foram esperando por algo de positivo: qualidade de jogo, resultados, títulos. Apesar de alguns fogachos, raramente fomos (mesmo) bons. Dei por mim, muitas vezes, a comparar o nosso futebol com o de equipas como o Paços de Ferreira, o Gil Vicente, o Marítimo, a Académica - e desse cotejo não resultava que fôssemos melhores do que os outros. Vulgarizámo-nos, resignámo-nos, habituámo-nos a uma "aurea mediocritas" triste e sem esperança. Deixámos, por assim dizer, de ser "grandes", isto é, de ser Sporting.
A culpa não é (nunca é) só do treinador, obviamente (basta pensar na invulgar quantidade de lesionados que houve esta época, ou nos senhores do apito que foram ajudando ao enterro). Mas os doentes em estado crítico precisam de tratamento de choque. Com a partida de Domingos, voltará - nem que seja por pouco tempo - uma aragem de novidade e de renovada esperança em melhores dias.
Alguma coisa ficou de bom, julgo eu, da passagem do treinador portuense por Alvalade: a afirmação de Rui Patrício (no matter what); o reconhecimento de que os centrais têm de ter corpo para a função (confio em Oniewu, Rodrígues e Xandão); um lateral esquerdo (Ínsua) como não há outro em Portugal e um direito (Arías) que pode vingar; dois médios de grande qualidade (Elias e Schaars) e um outro que, julgo eu, poderia vir a fazer esquecer certo traidor que desertou em Julho (Martins); finalmente, um um menino avançado que pode vir a ser um fenómeno no futebol mundial (Carrillo). O "resto" (incluindo-se aqui Wolswinkel, Rubio e Ribas) é ainda uma incógnita.
Para Domingos, nesta hora de despedida, vai um cumprimento pouco entusiasmado mas respeitoso. Esteve no meu clube, fez o que pôde, e o que pôde foi pouco para as expectativas dos sportinguistas.
Parece que fica, para já, Sá Pinto. Agrada-me a ideia. E espero que, para além da sua garra, se veja - como "marca" do novo treinador - um regresso aos jogadores da formação, esse viveiro misteriosamente secundarizado nos últimos tempos.
Por mim, aquém e além triunfos, sou sempre do Sporting, claro! E digo (imitando o discurso desses meus amigos que torcem por outros emblemas): graças a Deus que não sou dos outros.

Ribeira de Pena, 13 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, no jornal "Sol", edição on line de 13-02-2012.]

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Arte Poética


I

Escrevo para ordenar o meu mundo e inventar novos.
Escrevo para ir resolvendo este meu e nosso eterno défice de linguagem.
Escrevo para sobreviver, viver, conviver.
Escrevo para criar. Escrevo para completamente ser.
A minha escrita não se importa de ser leve e amável, mas não quer ser uma mera espécie de aspirina ou um quadro com um menino coitadinho a chorar.
A minha escrita, se aparecesse em livrarias importantes, não se arrumaria nas prateleiras de auto-ajuda (embora a expressão, digo eu, nem seja má).


II

Creio que pode haver na literatura conselho
Consolo, aconchego, conforto
Mas não queria ser outro Paulo Coelho
Nem morto.

Ribeira de Pena, 12 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

Claraboia


Recebi uma anunciada prenda no último Natal: o romance Claraboia (o título aparece grafado assim mesmo, sem o acento), de Saramago.
Já há algum tempo que o li, mas não será ainda hoje que enunciarei, de forma organizada e mais rigorosa, a minha avaliação literária.
Debitarei apenas alguns pormenores, com o fito essencial de comentar um aspecto de natureza editorial que me parece interessante.
Recordo que este livro foi escrito na juventude do autor, tendo a sua publicação sido, à época, recusada pelas editoras que conheceram o manuscrito. O nosso Nobel nunca mais quis publicá-lo em vida, embora reconhecesse nele, já, características que viriam a povoar, no futuro, os seus mais consagrados romances.
A acção de Claraboia passa-se num prédio em Lisboa (a ideia não é original, como num outro texto demonstrarei). A prosa é anterior à da linguagem que posteriormente Saramago inventaria - a partir de Levantado do Chão - e não se distingue muito dos neo-realistas (portugueses, brasileiros e outros) que o autor leria nesse tempo. O que já aparece neste livro de saramaguiano é a capacidade de, em cada avulso, anónimo, vulgar cidadão se encontrar, afinal, motivo de atenção narrativa: cada casa do prédio (cada casa do Mundo) tem gente dentro, e dentro da gente - dentro de cada um - há sonhos e dores, fé e frustrações, vida e desespero. Àquele prédio chega a milenar injustiça social de sempre, consubstanciada na desigual distribuição da riqueza (o título configura a ideia de contacto fatal com a luz exterior). Tudo "isto" não é, no romance, uma abstracta filosofia - vê-se, concretiza-se, somatiza-se em cada episódio, em cada um dos rostos humanos de que o prédio se constitui.
Trata-se, enfim, de um romance digno de José Saramago, ao nível, por exemplo, de Terra do Pecado. Para mim, a parte literariamente menos interessante está no último capítulo. Saramago não resiste ao fabrico de um diálogo, genologicamente próximo do drama, em que põe em evidência a dialéctica entre os que defendem uma revolução tranquila, fundada no amor individual de cada ser humano pelo próximo, e os que preferem uma revolução dura, colectiva, talvez brutal, que sem vacilações ou pruridos erguesse uma nova forma de sociedade. O capítulo é muito palavroso, muito axiomático ou dogmático, muito longe do prédio que albergava a verdadeira acção. Por mim, li ali as diferenças (de filosofia, de métodos e de objectivos) entre a oposição católica ao Estado Novo e a oposição comunista.
Mas este diálogo leva-me à observação sobre o que considero uma falha editorial. Na contracapa, aparece um excerto da obra em que um sapateiro (maravilhosa personagem que representa a revolução tranquila, lenta, fundada no supra-dito amor pelos outros) explica ao hóspede (representante da revolução mais radical, violenta se necessário) a sua praxis em matéria de transformação do mundo: sendo sapateiro, cumpriria o seu papel, isto é, faria apenas o que estava ao seu alcance - reparando bem os sapatos, tratando bem as pessoas.
A quem lê a contracapa sem ler o livro, a resposta do sapateiro parecerá bonita, justa, certa. Mas a retórica do livro inclina-se para a aceitação das ideias do enigmático hóspede, sem o que - como se depreende do enunciado romanesco - nada verdadeiramente mudará. O próprio sapateiro é, com a sua paciência e serenidade, um cúmplice da situação, logo, um obstáculo à revolução. A escolha deste excerto é, portanto, do ponto de vista da verdade do romance, traiçoeira.
Sublinho o facto de eu, enquanto leitor, simpatizar mais com a situação do sapateiro. Mas, descontada a liberdade interpretativa que a leitura literária compreende, o que um romance diz é o que um romance diz.
Creio, aliás, que este episódio não aconteceria se a obra fosse publicada antes de Saramago falecer.
Ponto final: Claraboia é um bom, um (repito) digno romance.

Ribeira de Pena, 12 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Ir voando


Um pássaro sofrendo, do Presente, o frio e talvez a fome pousa na árvore nua que há em frente ao centro de saúde. Fica ali por minutos, imóvel como o ramo que o sustenta. De súbito, sinos de funeral atroam e a avezinha assusta-se. Foge dali, sobrevoa a minha janela, despede-se talvez para sempre do meu olhar. Também o meu ofício observador se dá aí por concluído. Vou a Vila Real ver o Sporting na televisão. Se aqui ficasse, mais sofreria este feroz frio de Fevereiro, e a minha vida seria ainda mais pobre. Além de que os sinos, esses bruscos brutos abruptos sinos, haviam de assustar-me de novo. O melhor é ir voando quanto possa.

Ribeira de Pena, 11 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.verdes-ecos.blogspot.com.]

Estatuto político-lírico da depressão


À míngua de esperança morremos
Embora outros nos vejam funcionando
Aparentemente vivos. Vivemos
O pouco que se vê, passando

Os dias obedientes alugados
Em silêncio - na luta perdida
Dos condenados
Sem chama, sem vida.

Este tempo, o meu país
Extinguem-se. Nenhuma estrada
Há para ser feliz.

Amanhã, talvez, a madrugada
Nem regresse. E eu que fiz
Senhor, para tanto nada?

Ribeira de Pena, 11 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.melhorpapeldeparede.com.]

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Heróis


Uma querida amiga, dando-me conta da morte de seu pai, disse-me que o seu “herói” tinha partido.
Percebo muito bem a escolha dessa palavra, tão cara ao território semântico da narrativa. Porque disso mesmo se trata quando falamos dos entes queridos que nos deixam à revelia da nossa vontade – de protagonistas nucleares da nossa história, de personagens principais do nosso enredo vital, de (lá está) “heróis”.
Isto, que é muito mais que literatura, ajuda-me afinal a explicar o valor que a literatura tem (sempre teve) para mim. É que escrever sobre a morte do pai da minha amiga significa também escrever sobre o falecimento do meu próprio pai, e vice-versa.
Disse à minha amiga que, sendo certa a inexistência de consolação à altura de tamanha perda, havia uma forma simples, mas poderosa, de manter vivo quem amamos: é, na nossa cabeça, continuarem vivas essas pessoas que amamos, ou seja, aquelas pessoas cuja vida se misturou com a nossa vida. Ou seja, aquelas pessoas cujos caminhos foram igualmente caminhos nossos. Ou seja, os que foram para nós luz, exemplo, aconchego. Ou seja, como magnificamente disse a minha amiga, os nossos heróis. O meu pai, o seu pai, qualquer pai digno desse nome.

Ribeira de Pena, 10 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

Teletransporte adiado


Lembro-me do deslumbramento da minha geração perante portas que se abriam automaticamente, telefones (ou intercomunicadores) sem fios, transmissão de dados - da nave mãe para certo planeta novo - num segundo, videoconferências. A série "Espaço 1999" tornou-se entretanto passado - e quase tudo quanto nos despertava o mais ingénuo pasmo lá se concretizou. Falta aquilo do teletransporte, é certo. Aqui entre nós, desconfio que o processo já poderia estar à disposição de todos, mas que os grandes interesses económicos e financeiros não deixam (companhias petrolíferas, fabricantes de carros, indústria farmacêutica, um ou outro velho de avulsos restelos). A mim, confesso, dava-me jeito, hoje em particular, o teletransportar-me para longe daqui. Muito longe.

Arco de Baúlhe (hora de almoço), 10 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, na wikipédia.]

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Aliterações


Luz leveza delicada
Leda lua sobre o lago
Limpa lava em ti lavada
Labor triste que te trago

(Gosto de aliterações
Dessa música escondida
Como certos corações
De mãos dadas pela vida.)

Ribeira de Pena, 09 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.cronicasurbanas.wordpress.com.]

GPS, GPSD, etc.


Pela primeira vez na vida, fiz uma viagem ao volante do meu carro com o auxílio de GPS (emprestado). Senti na pele, digo-vos, o que é ser-se Passos Coelho nas mãos da famosa troika. Claro que a troika aqui será o tal aparelho que debita ordens sob a forma de instruções (ou, vá lá, vice-versa) e eu serei o triste que obedece automaticamente ao autómato.
A voz da troika (como portanto decidi chamar ao aparelho) tem um tom marcadamente neutro que, por um lado contribui para uma certa áurea de infalibilidade à roda das suas frases-determinações e, por outro, lhe rouba humanidade. Obedecemos-lhe, sim, mas sem entusiasmo ou afecto.
Aconteceu-me uma ou outra vez que o único caminho visível e seguro era exactamente o contrário do que a voz tutelar me indicava. Nessas ocasiões, para salvar a vida, desobedeci-lhe. Lembro-me, por exemplo, daquele abismo à saída de Vila Real. O aparelho debitava: “Vire à direita. Vire à direita. Vire à direita.” E eu, farto de ser Passos, não virei para esse lado.

Ribeira de Pena, 08 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Quadras a caminho do mar


Não há estrada bastante
Para eu viajar
Que eu sou viajante
De nunca chegar

Eu sou viajante
Eu não posso parar
Não há estrada bastante
Só se for o mar

Vila Real, 07 de Fevereiro de 201.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www. jomirifefotos.blogspot.com.]

Rei fora da história


Houve, parece, um quarto rei mago naquela história de há dois mil e onze anos (mais ou menos natal). O seu caminho não teve, ao contrário dos seus três homólogos, estrelas. E ele perdeu-se, atrasou-se, desesperou, maldisse – Deus lhe perdoasse – a ideia de se ter posto a caminho.
Nunca se fala do quarto rei mago porque ele se perdeu da história. Parece, aliás, que nunca chegou a conhecer o menino a quem levava, de uma praia do seu reino, certa areia branca num pequeno cofre. A areia era diferente de todas as areias jamais vistas na Palestina, mas ele nunca o chegou, parece, a provar.
Ao chegar a Belém, o quarto rei mago soube da inutilidade da sua viagem e, disso não há dúvida, chorou. Ofereceu a areia essa uma criança árabe que brincava junto ao mercado dos frutos. Depois, reentrou no deserto de onde viera lamentando a sua sina pobre em estrelas e em sorte.
Caminhou por mais de mil anos, até aqui, a este texto aparecido em

Vila Real, a 07 de Fevereiro de 2012, assinado (pouco rigorosamente) por
Joaquim Jorge Carvalho

[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www. eportuguese.blogspot.com.]

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Abril grafado abril


Acabo de ler um texto em que se fala do 25 de Abril de 1974. Por causa do (famigerado) Acordo Ortográfico, Abril aparece grafado como "abril". A contemporaneidade explica, como se vê, a nossa História aos mais novos com notável ironia: em 38 anos, o que se passou foi que Abril passou a escrever-se com letra minúscula, caros jovens, e que no presente o nosso primeiro-ministro é um senhor chamado Passos Coelho, e que Passos Coelho é um heterónimo de José Sócrates, e que tudo isto é minúsculo. Bate certo.

Ribeira de Pena, 06 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[O desenho é do meu amigo Manuel Vilela.]

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Quadra sobre teatro e não só


A coisa tem a sua ciência
(Não é só jeito ou vigor):
É preciso treino e paciência
E, se possível, amor.

Ribeira de Pena, 05 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (de Shakespeare in Love) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.cinetropic.com.]

Sobre a alergia ao futebolista português (o desperdício como desporto nacional)


Declaração prévia de interesses: eu não sou do Benfica. Sou, muito pelo contrário, do Sporting Clube de Portugal, e essa condição – como eu a vejo – compreende a satisfação por eventuais derrotas dos meus rivais (Benfica e Porto, sobretudo).
Dito isto, gostaria de partilhar convosco uma angústia portuguesa: a falta de oportunidades que os chamados “grandes” do futebol pátrio dão aos jovens. E não me refiro apenas aos jovens portugueses, mas também aos que, oriundos de outros países, o futebol português regularmente fabrica.
Neste território do desperdício nacional, o Benfica é um escandaloso exagero (até à caricatura). Anos a fio, os melhores jogadores das suas camadas jovens são vítimas do mais cruel e incompreensível ostracismo, ainda que o recrutamento desses atletas, desde os infantis até aos juniores, represente sempre uma exigentíssima selecção da melhor matéria-prima de Portugal e, até, do estrangeiro.
O campeonato português (mas não apenas este) está cheio de excelentes jogadores que, tendo feito a sua formação no Benfica, vêem depois as portas da equipa principal do clube fecharem-se-lhes cinicamente. Lembremo-nos de Moreira, Sílvio, João Pereira, João Vilela…
Jogadores que venham de outros emblemas logo ganham, no Benfica, um estatuto superior ao dos que desde novos cresceram no clube. Tenho, por exemplo, a certeza de que se Simão Sabrosa tivesse feito a sua formação no SLB nunca chegaria, tão novo, a titular (e capitão!) das águias. O mesmo acontece agora, obviamente, com Djaló.
Televi hoje o Benfica-Marítimo, e confirmei a imensa categoria de um jogador como Nelson Oliveira (um craque que em muitos aspectos me lembra o Pedro Barbosa do tempo em que não era ainda comentador da TVI). A Nelson apenas oferecem migalhas de jogos e assim se vai adiando a sua afirmação sine die. Igualmente me espantei com a extraordinária capacidade físico-atlética e técnica do maritimista Sami, jogador que foi júnior no Benfica e de que este clube estupidamente prescindiu (não recorrendo sequer à possibilidade de o vincular e, depois, o emprestar a outro clube).
Desculpai-me os amigos benfiquistas, se puderem, mas não resisto a uma provocação final. À porta do balneário do SLB, deveria estar um aviso: “Proibida a entrada a jogadores feitos no clube, em geral – e a portugueses, em particular.”

Ribeira de Pena, 05 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.record.pt.]

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Diário do leitor intérprete


A meteorologia é um poema
De Deus. Cada verso um dia, nada
A mais na página de cada poema, tudo
Dizendo tudo o que há para dizer

Às vezes à pele ao coração
Traz a poesia frios sentidos

(A exegese não combate as baixas temperaturas
Mas consola.)

Ribeira de Pena, 05 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.arcadenoe.sapo.pt.]

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Rua da idade certa (com ou sem rima)


Moro numa vila chamada Ribeira de Pena
Que aos meus olhos é a minha rua
De há quarenta anos –
Homens mulheres isto é
Velhos velhas rapazes raparigas petizes
Viúvas alegres ou infelizes
Alguns cães gatos algumas casas
Um ou outro carro estacionado
Árvores agitando-se um Café parado

Desaparecem de vez em quando da imagem
Gente casas locais de trabalho
E chegam novos rostos à paisagem
(Por exemplo, o professor Joaquim Jorge Carvalho)
Crescem e somem-se árvores ao fundo
Vão vêm estações enganos desenganos
Mas o meu olhar tem sempre sete anos
A sede de alguma interrupção do mundo
Com que eu percorria em 1970
A minha luminosa rua lenta

De modo que os montes ao fundo (a que aqui chamam
Santa Marinha ou Senhora da Guia)
São o Monte Formoso visto outrora da minha rua
E aquela varanda natural que denominam miradouro
(Entre o Entroncamento e o Salvador)
É afinal o cume do Casal Ferrão (antes de haver Lidl
No lugar que era a antiga escola)
Na minha rua do século vinte

O meu olhar e o meu coração não mentem
(Dizem o que sabem o que sentem) –
Aqui onde estou é a minha rua
Sempre a mesma minha rua
E até a minha mãe aparece do lado de lá da estrada
(Ei-la muito nova junto ao centro de saúde a mulher
Com o filho aliás comigo pela mão conheço bem a voz
De minha mãe dizendo-me cuidado

É preciso sim viver muitos anos ó mãe
Para saber da idade verdadeira
Que para sempre se mantém
A primeira –
Sete anos (ou coisa assim)
E daí em diante para ti para mim
A eterna mesma rua
Minha ó mãe e tua
E dentro da rua mãe a tua voz
Ao redor de nós

Ribeira de Pena, 04 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

A economia da alegria


Nunca gostei do carnaval. Em miúdo, mascarava-me e fazia-sofria partidas de gosto duvidoso apenas porque se tratava de uma obrigação da tribo. Eu era assim porque os outros eram assim.
O desconforto subiu a patamares de sofrimento quando, já professor, fui obrigado a participar institucionalmente na celebração do carnaval. Para os directores de turma, o suplício multiplicava-se visto que lhes cabia a “motivação dos alunos”, a opção por um “tema”, a organização dos trabalhos preparatórios do desfile. Há uns quinze anos, certa colega de História, de passagem pela vila onde eu trabalhava, teve o topete de se declarar publicamente anti-carnaval; quase toda a gente caiu em cima da pobre e lembrou-lhe, como gravidade, a importância da data para a comunidade educativa. Embora corroborasse do desamor da colega pela fúria carnavalesca, percebi também a pertinência do que outros aduziam sobre o assunto.
Não é fácil conciliar estas posições, concedo. Recordo-me de um desfile, talvez em 1998, em que uma professora (portuguesa, mas durante muitos anos radicada no Brasil) se insurgiu, a meio do corso, contra anónimos alunos ou professores que a borrifavam, à traição, com jactos de água. Um colega mais velho recomendou-lhe que fizesse de conta de que gostava, caso contrário – garantiu – seria “pior”. A cada novo ataque com água ou papelinhos, a pobre docente gritava: “Estou adorando, gente!”

Dito isto, cabe-me reconhecer o facto de haver realmente quem goste do carnaval. Estou há vários anos numa vila (Arco de Baúlhe) em que a grande maioria das pessoas valoriza essa - chamemos-lhe assim - quadra. Aprendi a respeitar a circunstância e, não me mascarando de entusiasta, colaboro, na medida das minhas possibilidades e responsabilidades, com as instruções da Escola. Aqui me separo da posição inflexível do primeiro-ministro, Passos Coelho.
Não posso deixar de sorrir, com melancolia e (confesso) algum desprezo, a esta medida – mais uma – do governo no sentido da “produtividade”. Vários espíritos lúcidos (autarcas, sobretudo) já chamaram a tenção para a importância económica do “feriado” de terça-feira, cujo extermínio significará prejuízos avultados em matéria de restauração, comércio, hotelaria, turismo. Gente moderada, não regulada por razões político-partidárias, explicou à corja neoliberal que até economicamente esta medida representa vistas curtas, crasso erro. Mas o que me afligiu mais, no espectáculo de Passos Coelho a falar sobre o assunto na televisão, foi o ar de homenzinho severo que revelou assegurando que “o país não compreenderia” outra posição que não aquela.
Um presidente de câmara trouxe à reportagem que televi uma lufada de inteligência que o governo faria bem em aproveitar. Disse este senhor que, para além do equívoco económico da medida, havia um perigoso sinal dado pelos governantes: a repressão da alegria do povo.
A mim, que não gosto (pessoalmente) do carnaval, preocupa-me esta eventual falência da alegria em Portugal. Quem olhar para a fisionomia dura e mecânica de Passos Coelho desconfia de que este género de argumento nele não colhe, nunca colherá. Talvez o nosso primeiro-ministro seja simplesmente um triste.

Ribeira de Pena, 04 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (cartaz do carnaval da Mealhada) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.carnavalmealhada.com.]

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Passado [m]eu (Letra para um fado de Coimbra)


Ao passado só regressa
Quem nele inteiro viveu
Com licença, tenho pressa
De novamente ser eu.

Ao passado se regressa
Se o passado não morreu
Tenho pressa, não m’impeça
De eu voltar a ser eu.

Ao passado só regressa
Quem de si se não perdeu
Sou do passado, sou peça
De museu (assim sou eu).

Ao passado se regressa
Se no passado ocorreu
A vida que interessa
(O meu passado sou eu)

Passado amado, regressa
A quem nunca t’esqueceu
Vem, ó passado, depressa
Que só contigo sou eu

Ribeira de Pena, 03 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC]

Sol enquanto não


Veneráveis os minutos solares
Da manhã à roda da viagem
Admiráveis campos como mares
Mulheres como barcos na paisagem

Doce aconchego quente ainda
Avesso do Inverno que há-de ser
Minha leve luz lavada linda
Meu manso manto modo de viver

Arco de Baúlhe, 03 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (panorâmica de Arco de Baúlhe) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.cabeceiras_com_vida.blogs.sapo.pt.]

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Biografia de um ex-poeta


Era uma vez um poeta pobre. (Poeta pobre, numa narrativa portuguesa, é quase redundância, convenhamos.) Muito cedo órfão, ele vivera trinta e poucos anos às custas de uma avó remediada e, durante esse tempo, mais não fizera que contemplar o mundo e escrever versos se lhe apetecesse.
Quando a avó morreu, a necessidade de sobreviver obrigou-o a tomar novo rumo, porque da fome não estão dispensados nem os maiores líricos. Pediu emprego numa série de lojas, empresas, instituições e, para sua surpresa, ninguém pareceu reconhecer-lhe utilidade ou interesse, não obstante a qualidade da sua sintaxe e a variedade do seu vocabulário.
Até que conheceu uma engenheira loira, mulher linda linda que transportava em seus olhos a cor indefinível de certas manhãs primaveris. Era ela a líder dos recursos humanos na poderosa Transportex International e, tendo escutado do homem o pedido de trabalho, levou-o a sério.
Aquela donzela linda linda percebeu os motivos do interlocutor, mediu bem a urgência do seu discurso, tomou até como natural a profissão que ele afirmou exercer até aí: poeta.
- Que género de poeta? – quis saber.
Em resposta, o homem deu-lhe para a mão cerca de quinhentas páginas de versos – dísticos, quadras, quintilhas, sonetos, alguns parágrafos em prosa poética.
Competente, a linda linda dama foi para casa e leu um a um cada texto. A leitura levou uma semana e muito a emocionou a generosidade com que o artista ali tratava da violência da mortalidade, do desamor seguinte ao amor, da injustiça do mundo, da falência da esperança, das saudades de uma perdida meninice.
“Versos contra a passagem do tempo, contra o desconcerto do mundo, contra a imperfeição do universo”, pensou.
E mais pensou:
“E versos que compreendem tão bem a grandeza de cada gesto humano por mínimo que pareça, isto é, versos de lúcida bondade e de, digamos assim, consolação.”
Na segunda-feira seguinte, chamou o homem ao seu gabinete e ofereceu-lhe emprego.
Desde esse dia até hoje, o ex-poeta ficou a trabalhar na área de "apoio ao cliente – secção de reclamações e devoluções".

Arco de Baúlhe, tarde-noite de 02 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (depois editada e trabalhada) foi originalmente colhida, com a devida vénia, em http://www.catteryfernando pessoa.com.]

Pessoal, universal (isto é, poesia)

Não sei, irmão, nada de ti Das tuas dúvidas, das tuas dívidas Das tuas dádivas Das tuas mágoas, dos teus sonhos Das tuas saudades, das tuas urgências Dos teus mortos, dos teus versos preferidos Dos teus restos, dos teus rostos, dos teus rastos Dos teus impérios, das tuas misérias Das tuas epifanias entre a infância e o futuro Das estradas entre o que eras para ser E o que apenas (o que tanto) és Não sei nada dos teus segredos Dos teus sentimentos Dos teus ressentimentos Dos teus passos e cansaços Das tuas rotas velhas Das tuas novas rotas Das tuas derrotas Dos teus talentos Das tuas amadas canções que te fazem voar Não sei nada, irmão, de ti Sei só da minha pobre vida Minha Dos montes e vales e infernos Que percorro, andam por mim Nos intervalos de pouco céu Sei só da minha secretude particular Sei só do meu destino (E pouco sei do meu destino) Sei só do que fui, do que estou sendo Sei só do meu destino Só E contudo, irmão, não sei se nada sei De ti Porque de ti eu sei, pelo menos, que és meu Irmão Isto é, sei de ti este muito ou nada (Ou este quase nada, quase muito) Que sei, irmão, que pelo menos sei De mim. 

Arco de Baúlhe, 02 de fevereiro de 2012. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.sentimentosintimos.blogspot.com.]

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Livro falando contigo (com quadra final que involuntariamente sucedeu)


Não tenhas medo
(disse o livro)
Olha para mim
Toca-me
Olha mais para mim
Olha melhor para mim
Olha-me por dentro
(Olha por mim)

Caminha comigo
Dá-me um pouco de ti
(Talvez muito de ti)
E aceita quanto eu te possa dar:
Percebe-me e explica-me
E deixa-me também iluminar o que és

Descobre a minha música
Contando-me depois, isto é
Cantando-me depois
Com a tua própria voz
E dança comigo, companheiro
Leva-me ao ritmo de teus próprios passos
No sentido certo
Certo?

E não partas nunca
(Morro quando partes)
Ou, se não estiveres, lembra-te
De mim, de nós.
Eu dormirei enquanto não regressares
(Promete que me acordas)

Não tens que recear -
Vem cá ter
E deixa-te ficar
Até amanhecer.


Cabeceiras de Basto, 01 de Fevereiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (de um livro exemplar que estudei e amei, amo) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.livrosraros.com.]