Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (100)


Escutar para ver

Cresci a ouvir rádio. Na casa da minha infância, a manhã anunciava-se pelo odor a café com leite e o som da emissora nacional, minutos antes de a minha Mãe nos avisar das horas e ameaçar com um balde de água. 
Claro que a televisão me foi também importante. Tenho 54 anos, sou da geração que viu a Pipi das meias altas, o Vickie, o Bonanza, o Tarzan, o festival da canção, o anúncio (pelo grande Fialho Gouveia) do 25 de Abril, o crescimento da democracia (a preto & branco e a cores). Mas a rádio conservou para sempre um misterioso encanto, que nasce sobretudo – creio – do seu lado não corpóreo, invisível, aquém ou além das vozes e da música.
Em grande medida, a rádio é um meio de comunicação que se aproxima da literatura. O leitor recebe do enunciado alguns sinais, algumas pistas – mas depende da sua própria leitura a realização mais profunda da comunicação. Estamos todos cientes de que o livro, na maior parte dos casos, é mais interessante do que o filme feito a partir do livro, não é verdade? Neste último caso, o que vemos é apenas o que o realizador viu na história lida; num livro, ainda virgem de filme, todos os acontecimentos, cenários e rostos são os que o nosso próprio cérebro fabricou, a melodia emocional com que o nosso próprio coração reagiu aos estímulos da escrita.
A rádio, pois: como esquecer a rádio-novela Simplesmente Maria, o ruído de portas abrindo-se ou fechando-se, os passos de uma mulher caminhando à chuva, um carro derrapando rumo à tragédia? Por isso me pareceu sempre falacioso o axioma do “ver para crer” atribuído a S. Tomé. Não poucas vezes, eu vi mais claramente visto na rádio que na televisão um certo golo de Manuel Fernandes, numa tarde em que, percebido do meu quarto coimbrinha, o Jamor era bastante mais espectacular do que é se cruamente visto com os olhos.
No JN de 03-08-2017, vinha a notícia de um assassinato particularmente terrível: um jovem de 19 anos matou o seu irmão de 23, após discussão fútil. A mãe de ambos, invisual desde o nascimento do segundo filho (por complicações inerentes ao parto), ouviu a querela, os gritos e a consumação do fim. Uma velha tia saiu-se com esta exegese mística: Deus, omnisciente e misericordioso, pressabendo o que haveria de passar-se 19 anos depois de a mulher dar à luz o assassino a haver, cegara a parturiente, poupando-a ao pesadelo de ver o crime.
A mim, que sei do poder da rádio, não me convence a teoria. Aquela pobre mãe, senhores, viu-sentiu tudo como se não fosse cega, quiçá até mais profundamente do que se pudesse ver com os seus olhos.

Coimbra, 03 de Agosto de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.commons.wikimedia.org.]

Infância


O tempo da minha infância,
Senhor Gasset,
Não tinha circunstância
Nem tinha de ter.
Não cabia na filosofia
Nem tinha de caber.
Era sempre o mesmo Dia
O mesmo estar e ser.

Tocha, 09 de Agosto de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.imagui.com.]

domingo, 6 de agosto de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (99)


Tempo de qualidade

A meio da corrida higiénica, na sossegada periferia de Coimbra, avisto um pequeno campo de jogos, cercado por uma frágil rede. Sobre o piso de cimento, um homem já maduro brinca com um petiz de 7-8 anos, cada um lançando, à vez, a bola para o cesto de basquetebol do lado da estrada. São, talvez, sete horas da tarde. Ainda há luz e calor bastantes. Passo por esta cena à velocidade de quarentão tranquilo e pega-se-me ao ouvido um coro de gargalhadas: o riso do provável pai misturando-se com o riso do provável filho, gaiatos ambos.
Os anglófonos têm para este tempo – aparentemente inútil – que concedemos ao convívio com família ou amigos, à roda de uma mesa, de uma bola, de um animal de estimação, etc., quality time [tempo de qualidade, em tradução literal].
Não investir nestes bocadinhos do nosso relógio comum é, na maioria das vezes, triste e trágico. Os laços que, em adultos, sobrevivem à (inevitável) perda da inocência quase sempre decorrem da memória ternurenta e grata de certos instantes preciosos. Pais e mães, mesmo sem de tal terem consciência, oferecem-se momentos de felicidade pura e gratuita e garantem, sem disso terem consciência, a eterna proximidade das crias. 
A minha Filha e eu partilhámos, desde muito cedo, o amor pelos livros e pelo humor. Um dia perguntou-me quem era Deus. Eu levantei os olhos do meu Vergílio Ferreira e respondi-lhe: “É como o pai. Mas mais alto e com barba.” E ela riu-se com gosto, antes de regressar ao volume de Flores para Crianças que, há pouco, eu a mãe lhe compráramos.
Tenho saudades dessas horas (ou minutos, ou segundos) em que existimos simultaneamente, compinchas da praia, do Café, da livraria, do campo de jogos, de viagens, de passeios à beira do Mondego. Foi então, nessa nossa cumplicidade tão querida (extensiva à minha mulher, claro, para sempre a melhor amiga daquela menina), que construímos a delicada Casa da nossa confiança, co-inquilinos da cultura, da liberdade, da tolerância, do Sporting, da literatura, da família, do mar, dos amigos. Aqui ficámos a morar juntos, ainda que eventualmente afastados no mapa desmancha-prazeres da realidade.
Ao escrever “Quando eu morrer voltarei para buscar / Os instantes que não vivi junto do mar”, era de tempo essencial e valioso que a preclara Sophia Andresen falava. De tempo de qualidade.
É demasiado curta a vida para nos satisfazermos de amor, perdoai o clichê. E demasiado curta é uma crónica para dizer a urgência de não perdermos tempo. Mas não é com a bruta pressa que resolvemos este consabido problema de morrermos todos demasiado cedo. É, antes, digo eu, aproveitando cada oportunidade para estarmos com quem amamos, aceitando de cada dia o Sol possível, reclamando de cada segundo o digno sumo que urge beber antes que fuja ou se estrague. De preferência, ó contemporâneos e vindouros, com a sábia despreocupação das crianças, talvez num entardecer qualquer, na periferia do caos adulto a que chamamos sociedade.
A eternidade é o que para sempre fica. Coisa gasosa como os sonhos, fresca como água da fonte e saborosa como, digamos, uma meloa portuguesa. É a “memória do amor”, como narratologicamente chamou Agustina à ideia de ressuscitar os instantes que valeram (valem) mesmo a pena. Coisa aparentemente inútil, eu sei, como estarmos uma inteira tarde a olhar para o mar.

Coimbra, 30 de Julho de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.welovestar.blogspot.com.]

terça-feira, 1 de agosto de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (98)











Sobre um romance em estado de sonho

A noção de que estamos perante uma grande narrativa não resulta exclusivamente de uma avaliação racional. A própria natureza estética do fenómeno implica, à partida, uma dimensão emocional, frequentemente misteriosa e desconcertante. Tenho notado que, até para falar da beleza de um certo texto (ou de uma pintura, ou de uma música, ou de um filme), tendemos a convocar, para o nosso testemunho de admiração, certa linguagem poética, com recurso - talvez involuntário - a adjectivação expressiva, a comparações e metáforas incendiárias, a hipérboles que alcancem, pelo instrumental exagero, a exactidão apetecida.
Um leitor experimentado, coleccionador de romances magistrais, acaba por aperceber-se de um conjunto de características que, regra geral, estão presentes em cada livro amado. O problema, quando o leitor é também, por vocação ou ambição, escritor, está em contar as suas próprias histórias concedendo-lhes o brilho genial das obras maiores. Ainda que conheça uma espécie de receita para a escrita a haver, confirma depois, melancolicamente, que a grande literatura não resulta de preceitos ou processos industriais. De certa forma, como disse Sebastião da Gama ao falar de aulas, a coisa acontece.
Habituei-me à ideia de que os romances maiores têm de comum a edificação de um mui coerente mundo, semelhante ou não ao da nossa realidade comezinha. Este mundo funciona com regras – e cria nos leitores a ilusão da vida verdadeira a acontecer. Como defendia Eco (com outras palavras), sentimos o tempo a passar enquanto lemos. Isto percebe-se bem em obras como Os Maias, de Eça, Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, Memórias de Adriano, de Yourcenar, As pupilas do senhor reitor, de Júlio Dinis, David Copperfield, de Dickens, A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Ponto de partida: na basse e ao redor da intriga (do enredo), existe um contexto referencial estável, feito de repetição e de pressuposta normalidade, isto é, a diegese.
Quem não tem paciência ou jeito para construir boas (verosímeis) diegeses, deve limitar-se à – também nobre e bela – arte do conto.
Na minha pobre carreira literária, tenho viajado por todos os modos – narrativa, poesia, teatro, crónica. Mas sei muito bem que a casa principal onde verdadeiramente quero morar é a narrativa. Desde sempre, até a dormir me acontece imaginar ou (re)criar histórias. Dizem-me, às vezes, que sou um bom contador. Isso não (me) chega, infelizmente. Confesso: ando há uns bons trinta anos a ver se me acontece enfim a diegese ideal para o romance que sonhei meu. Até ver, hélas, com mais paciência que sucesso. Mas, tirando o facto de isto me ser insuportável, nenhuma gravidade há, senhores, a reportar-vos.

Coimbra, 22 de Julho de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho