Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (7)




Lugar do Caminho

Quase findo o jantar, à horinha de pedir café & conta, o meu amigo Francisco Botelho confidenciou-me: “Tenho leucemia.” Fora uma refeição divertida, aquela, até ao momento da brutal revelação: ele aduzira ideias para um livro, planos para a dinamização do roteiro camiliano em Ribeira de Pena, projectos turístico-culturais – e eu, a cada convite seu para colaborar, tinha dito que contasse (sempre) comigo.
Vinte anos antes, quando cheguei à vila transmontana de Ribeira de Pena, os colegas locais perguntavam-me com frequência: “Então? Já fizeste amigos aqui, Joaquim Jorge?” Eu dava-lhes uma resposta honesta: “Já me dou com bastantes pessoas. Mas um amigo, convenhamos, leva uns dez anos a fazer!”
Na verdade, foi preciso menos tempo para me aproximar do Francisco Botelho: primeiro, comecei a colaborar com o jornal que dirigia, o “Ecos da Ribeira”, escrevendo uma croniqueta, genericamente chamada “Lugar do Caminho” (que era o nome do meu endereço verdadeiro nesse primeiro ano de vida ribeirapenense); depois, ele quis agradecer-me pessoalmente os escritos e eu descobri, na sua pessoa, um magnífico cidadão do mundo, cultíssimo, generoso, cheio de sentido de humor, um pouco snob na elegância do vestir e do falar. Era também vagamente descendente de Camilo Castelo Branco e, talvez por isso (mas não só por isso), um dos mais inteligentes e sábios cultores da literatura camiliana que pude conhecer.
Camilo Castelo Branco casou-se, pela primeira vez, em Ribeira de Pena, com uma rapariga do lugar de Frúme, Joaquina de França. Embora tenha vivido pouco tempo nesta terra, muitas das suas novelas reproduzem memórias de lugares, gentes, costumes, lendas e eventos que o escritor então conheceu. Ciente do capital cultural e turístico que esse facto biográfico encerrava para o concelho ribeirapenense, o Francisco Botelho estudou, falou e escreveu muito sobre o assunto - e, entre outras iniciativas, veio a conceber um roteiro literário camiliano de altíssimo interesse para a divulgação da vila e para a dinâmica celebração da obra do escritor. Rapidamente, esse seu projecto ganhou adeptos, potenciou visitas, cresceu em alcance e dinâmica.
Sobreveio a doença, raios partissem a sorte. O Francisco Botelho soube que lhe restavam entre um e oito-dez anos de vida. O que faz um homem nestas circunstâncias? Eis: incrementou os jantares camilianos (cheguei a participar num deles, encarnando a figura do pai de Joaquina de França, num sketch que escrevi, a pedido do meu amigo); participou em muitos encontros literários; fez palestras; desempenhou o papel de cicerone nos roteiros que inventara. Mas fez mais, ainda: formou novos cicerones, entre jovens académicos locais, no pressuposto de que a morte de um indivíduo não poderia destruir-lhe um projecto tão válido como aquele.
A dita morte veio nem um ano depois da nossa conversa ao jantar. Nos anos seguintes, estive várias vezes com alunos meus em Ribeira de Pena, em visitas de estudo. E vi no terreno alguns formandos do Francisco Botelho, perorando com digno rigor sobre lugares, personagens e obras da literatura camiliana. Não tinham o brilho original do Mestre, é certo; mas eram, de certa divina forma, a sua amável continuidade.
Retenho desta evocação, para além da intransmissível saudade, uma lição existencial: a de que o nosso tempo tem o valor que lhe dermos. Não se trata apenas, sublinho, daquele clichê latino-modernista do “carpe diem”. Neste caso, significa sobretudo o dever do ser humano para com o Futuro: o meu amigo Francisco Botelho não deixou que a sua morte significasse o fim de um projecto formoso, ligado à (sua) terra e à figura de Camilo Castelo Branco.
Um grande poeta irlandês, Seamus Heaney, põe em questão – em certo poema de que nunca mais me esqueci – se não deveríamos, em vez de nos interrogarmos sobre o facto de haver ou não vida depois da morte, preocupar-nos com o inverso, isto é, se há ou não, bem vistas as coisas, vida antes da morte. Amen.

Ribeira de Pena, 21 de Setembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 23-09-2015. As fotos – datadas de 2007 – ilustram um dos jantares camilianos que o Francisco Botelho organizou.]

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (6)

O sentido da urgência



Em Agosto de 1970, na barrinha da praia de Mira, enquanto as mulheres da família dispunham o farnel sobre a mesa e os homens bebiam cerveja ou babavam a testosterona perante a anatomia estival de turistas bronzeadas e ruidosas, eu tentei, pela primeira vez, nadar de costas. Aprendera já a técnica e conseguira, numa aula da primária que tivemos num tanque (amovível) do Loreto, dar três ou quatro braçadas. 
De maneira que, sem aviso, entrei na água doce e pus em prática os preceitos estudados. O sucesso do exercício superou as minhas melhores expectativas (como se costuma dizer): em movimentos sincopados, regulares, competentes, senti o corpo afastar-se da margem, flutuando como um colchão de borracha. Ao fim de alguns minutos, cansado, pude perceber – naquela periclitante horizontalidade que era – a distância considerável a que estava já da minha família. Afligi-me e quis inverter a marcha. Não sabia como fazê-lo, mas já vira o modo como os remadores procediam para conduzir os barcos: suspendiam o movimento dos remos num dos lados e remavam exclusivamente para o lado pretendido. Adoptei essa técnica também, mas esqueci-me de continuar a bater os pés. E dei por mim submerso, à beira de morrer. Desesperado, mexi exageradamente os braços e as pernas. Queria sair dali. Queria salvar-me. Ao sentir o chão sob os meus pés, tentei impulsionar-me até à superfície para poder gritar por socorro. Consegui-o por umas três vezes, mas depois senti-me sem força e resignei-me. Recordo a tristeza que me invadiu, mas também uma sensação superveniente de serenidade absoluta que, à luz da catequese do Bairro do Brinca, talvez fosse a antecâmara do céu (ao invés de mui biológica reacção à falta de oxigénio).
De súbito, uma mão forte devolveu-me a este mundo. Era o meu pai. Alguém me ouvira pedir por socorro e ele, sem hesitar, lançara-se à água para salvar o filho. Adito-vos um pormenor: o meu pai mal sabia nadar, nunca o vi senão dar uns mergulhos fugidios e atabalhoados no mar de Mira. Mas esqueceu-se, ali, das suas insuficiências e foi-me buscar à morte. Alguns familiares disseram, depois, que ele – em terra - vomitou tanta água quanto o filho. 
Lembrei-me deste episódio durante uma conversa sobre os resultados da guerra que, nos últimos tempos, procuraram abrigo na Europa. Bem sei que os recursos dos países são limitados, que há problemas associados à entrada em massa de (i)migrantes, que há leis para observar e respeitar. Bem sei, por outro lado, que os próprios migrantes, ao demandar a Europa, se expõem a sofrimentos e perigos colossais. Mas eu nunca me esqueci daquela vez em que estive, no fundo da barrinha de Mira, à porta do fim. Nem do meu pai que, ignorando a sua própria segurança, foi salvar-me, sem pensar senão na urgência de agir.


Ribeira de Pena, 14 de Setembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 16-09-2015.]

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (5)

Certas palavras certas

Há uns 35 anos, a direção do Clube de Futebol União de Coimbra informou-me de que seria uns dos 3 juniores da equipa a subir a sénior. Tratava-se de uma altíssima distinção e eu andei durante todo aquele dia de Junho numa doce nuvem de felicidade. Felicidade quase perfeita, devo acrescentar. Porquê “quase”? Porque um dos meus colegas de equipa, frustrado com a sua exclusão dos eleitos, vociferou publicamente a indignação: achava que a decisão da direção fora errada e injusta. Eu, como lhe admirava o talento e sinceramente o estimava como amigo, quis dar-lhe uma palavra de consolo. Mas a minha atitude pareceu ofendê-lo (ainda mais): “Não leves a mal, pá, mas tu, em minha opinião, não passas de um óptimo jogador!” – disse-me ele.
Percebi que o tom do discurso era zangado, mas não deixei de agradecer (sem ironia) o adjectivo escolhido para o meu valor futebolístico: “óptimo”. Ele estranhou o meu agradecimento e reiterou a sua opinião: “Não leves a mal, a sério, mas é o que eu penso de ti: és apenas um óptimo jogador!”
Voltei a agradecer-lhe, sorrindo, e ele pareceu ficar fora de si. Rosnou entre dentes: “Não gozes, pá, estou a falar a sério!”
Até que alguém lhe perguntou: “O que é que queres dizer com óptimo, pá?” E a explicação veio: mui diversamente de superlativo absoluto sintético de “bom”, ele via naquele vocábulo um sinónimo de “mais ou menos”, “razoável”, “sofrível”.
Muito cedo aprendi o poder que há em saber e dominar as palavras. Em as articular com a competência e a oportunidade adequadas. Em as conhecer muitas e bem. Em as ordenar na gramática certa, no ritmo certo, ao serviço da retórica querida e necessária.
No romance Mares do Sul, de M. V. Montálban fala-se de um homem cuja importância se mede objectivamente pelo enorme volume de léxico que conhecia e utilizava em seu quotidiano. Em A honra perdida de Katharina Blum, de Heinrich Böll, encontramos o desconforto da protagonista face à corrupção que os seus depoimentos sofrem: os inspectores policiais trocam-lhe o substantivo “impertinências” [de certa personagem masculina, que ela abomina] por “ternuras”, traindo o sentido fundamental do enunciado; ou o adjectivo “bondosa” [aplicado a certa senhora que a ajudara] por “amável”, reduzindo a carga afectiva da descrição feita.
A minha professora primária ensinou-nos, aí por volta de 1972, que o sentido das palavras poderia, muitas vezes, explicar-se pelo contexto. Um dia, dei com um texto que falava da melancolia de certa personagem. Eu não conhecia, à época, a palavra melancolia. O contexto dizia-me que a palavra significava, ali, o mesmo que tristeza. Mas a docente, nessa ocasião, houve por bem explicar-me que, no caso da melancolia, se tratava de uma tristeza diferente, outra, misteriosa, que nem sempre tinha uma causa física, concreta, visível, conhecida.
E eu pude confirmar, nesse dia, que a minha tristeza secreta e profunda não bem era uma tristeza comum. Era, é melancolia - este eterno Outono em que, com breves interrupções, sempre vivi.

Ribeira de Pena, 06 de Setembro de 2015.
[Esta crónica foi publicada no jornal O Ribatejo, edição de 10-09-2015.]

Escrito


Escrevo do bom silêncio contra os silêncios maus.

Ribeira de Pena, 09 de Setembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto MP]

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (4)

Bem vistas as coisas


Sou professor de Português e Francês na Escola pública. Cumpro programas, planificações, horários, ordens. Não é sempre fácil nem gratificante. Mas a minha missão vai secretamente além dessa cartilha: quero oferecer a cada aluno o melhor da minha essencial humanidade. E gosto de pensar que, à minha maneira, os ensino a olhar para o mundo e a vida. Não necessariamente a ver, porque isso já não depende tanto de mim.
Há trinta e um anos, a minha filha nasceu com a amável mania da curiosidade. É essa, como se sabe, uma condição relativamente comum entre as crianças, ponto de partida – aliás – para a obtenção de preciosos conhecimentos.
A minha mulher e eu gostávamos muito de ver a miúda, aí pelos seus cinco-seis anos, em seu ofício observador do mundo, atenta a pormenores de um rosto, de uma rua, de um prédio, de um automóvel, do mar de Mira. Ela tinha o hábito de franzir o nariz enquanto observava o que observava – e eu, encantado, achava-a parecida com um coelho (de Lewis Carroll, atenção!, o das maravilhas verdadeiras).

Aos dez anos, o médico descobriu que a nossa filha sofria de miopia, razão (afinal) para aquela careta engraçada no durante de suas aventuras olhadoras: a menina semicerrava os olhos e franzia o narizito apenas porque queria fixar-se nos pormenores a ver.
Lembro-me de ela, já com óculos, ficar extasiada perante aquela festa de cor e vida que era um jardim próximo de nossa casa. E de se ter saído com qualquer coisa deste género: - Ó pá, agora percebo como vocês viam! É tudo tão claro e tão bonito! 
Eu, já vo-lo disse, sou professor de língua e literatura.      Gosto de pensar na minha profissão como um ramo da - digamos assim - oftalmologia poética. Quero dizer: uma luta contra a miopia. Uma luta contra as vistas curtas,

Coimbra, 01 de Setembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no jornal O Ribatejo, na edição de 03-08-2015.]

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Memória da menina mesma que faz hoje 31 anos



Na sala era já adormecida
A menina no sofá, com a cadela
Ainda não dormindo, à espera
De os pais da menina lá estendida
A levarem ao quarto seu (e dela)
Segundo a rotina percebida.

O pai até à cama carregava
A menina. E a mãe abria
Os lençóis. A cadela saltava
Para os pés da cama e adormecia
Cúmplice dos mundos em que entrava
Em sonhos que a menina ali tecia.

Durante a noite, os pais da princesa
Vinham ao quarto confirmar
A inteira paz do sono e a beleza
Da querida cria. E suspirar
Por não ser eterna esta leveza
E tão frágil ser o humano lar.

Coimbra, 02 de Setembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho

ZONA DE PERECÍVEIS (3)

Bolsa de Agosto

Passei o mês de Agosto em Coimbra, minha pátria natal. Acumulo este prazer filial com a praia, aqui a 40 quilómetros, pelo que muitas vezes viajei, nas últimas semanas, até à Tocha. Apesar da felicidade das férias, nunca consigo estar completamente em paz, tão profunda é a noção de que o tempo bom – mais do que o mau – passa tão celeremente. Ganhei, aliás, o hábito de, a cada ida à praia, trazer para casa uma concha, e de no seu interior inscrever a data da sua recolha: faço por acreditar que ali guardarei essas horas amáveis na companhia do mar.
Durante o mês de Agosto, sinto ainda mais em mim essa urgência de existir que poetas e emigrantes tão bem conhecem. Com a disciplina dos aflitos, habituei-me a deixar preparado, a cada noite, no terceiro degrau do meu duplex coimbrinha, o saco da praia: toalha, chinelos, peças de fruta, água, livro, caderno, esferográfica. E, acreditai, o método ajudou-me a optimizar horas preciosas.
No dia 24 de Agosto, cumpri a rotina do dito & amado Verão. Pelas dez da manhã, levantei-me, fiz a rápida higiene matinal (rosto, dentes, barba) e desci as escadas. Por misteriosa distracção, ou por confiança exagerada na minha capacidade de locomoção às escuras, prescindi de accionar o interruptor da luz daquele corredor descendente. Esquecido do saco colocado no antepenúltimo degrau, não o divisando em tempo útil, tropecei miseravelmente e caí de costas. Levei uns dois minutos a reerguer-me, dorido e confuso, gemendo lamentos e insultos à sorte.
Perdida a praia, coloquei gelo sobre a área magoada e, no entretanto do tratamento, liguei a televisão. Foi aí que soube, pelos vários canais de informação, de um dia terrível nas bolsas da Ásia, da Europa e dos Estados Unidos, com o valor das acções a cair de forma abrupta e torrencial. Um especialista financeiro conjecturava – salvo erro na Sic Notícias – sobre prováveis causas para o fenómeno. Lembro-me que referiu, logo a abrir o discurso, o abrandamento da economia chinesa. Mas acrescentou que estas situações resultam também de factores imponderáveis (que transformam em caos o que, há instantes, parecia harmonia e ordem) e, muitas vezes, de alguma confiança exagerada dos investidores.
Ouvi-o com moderado interesse, cheio de dores nas costas. Mas, com tantos locutores a falar de quedas - do Nasdaq, do Dow Jones ou do PSI 20 -, não deixei de notar o facto de a nossa existência doméstica ser, em boa verdade, uma vívida alegoria da política, das finanças e da vida em geral. (Alegoria – confirmar nos dicionários – é um encandeamento de metáforas.)


Coimbra, 27 de Agosto de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no jornal O Ribatejo, edição de 27-08-2015.]