Lugar do Caminho
Quase
findo o jantar, à horinha de pedir café & conta, o meu amigo Francisco
Botelho confidenciou-me: “Tenho leucemia.” Fora uma refeição divertida, aquela,
até ao momento da brutal revelação: ele aduzira ideias para um livro, planos
para a dinamização do roteiro camiliano em Ribeira de Pena, projectos
turístico-culturais – e eu, a cada convite seu para colaborar, tinha dito que
contasse (sempre) comigo.
Vinte
anos antes, quando cheguei à vila transmontana de Ribeira de Pena, os colegas
locais perguntavam-me com frequência: “Então? Já fizeste amigos aqui, Joaquim
Jorge?” Eu dava-lhes uma resposta honesta: “Já me dou com bastantes pessoas.
Mas um amigo, convenhamos, leva uns dez anos a fazer!”
Na
verdade, foi preciso menos tempo para me aproximar do Francisco Botelho:
primeiro, comecei a colaborar com o jornal que dirigia, o “Ecos da Ribeira”, escrevendo
uma croniqueta, genericamente chamada “Lugar do Caminho” (que era o nome do meu
endereço verdadeiro nesse primeiro ano de vida ribeirapenense); depois, ele
quis agradecer-me pessoalmente os escritos e eu descobri, na sua pessoa, um magnífico
cidadão do mundo, cultíssimo, generoso, cheio de sentido de humor, um pouco
snob na elegância do vestir e do falar. Era também vagamente descendente de
Camilo Castelo Branco e, talvez por isso (mas não só por isso), um dos mais
inteligentes e sábios cultores da literatura camiliana que pude conhecer.
Camilo
Castelo Branco casou-se, pela primeira vez, em Ribeira de Pena, com uma
rapariga do lugar de Frúme, Joaquina de França. Embora tenha vivido pouco tempo
nesta terra, muitas das suas novelas reproduzem memórias de lugares, gentes,
costumes, lendas e eventos que o escritor então conheceu. Ciente do capital
cultural e turístico que esse facto biográfico encerrava para o concelho
ribeirapenense, o Francisco Botelho estudou, falou e escreveu muito sobre o
assunto - e, entre outras iniciativas, veio a conceber um roteiro literário
camiliano de altíssimo interesse para a divulgação da vila e para a dinâmica
celebração da obra do escritor. Rapidamente, esse seu projecto ganhou adeptos,
potenciou visitas, cresceu em alcance e dinâmica.
Sobreveio
a doença, raios partissem a sorte. O Francisco Botelho soube que lhe restavam
entre um e oito-dez anos de vida. O que faz um homem nestas circunstâncias?
Eis: incrementou os jantares camilianos (cheguei a participar num deles,
encarnando a figura do pai de Joaquina de França, num sketch que escrevi, a pedido do meu amigo); participou em muitos
encontros literários; fez palestras; desempenhou o papel de cicerone nos
roteiros que inventara. Mas fez mais, ainda: formou novos cicerones, entre
jovens académicos locais, no pressuposto de que a morte de um indivíduo não
poderia destruir-lhe um projecto tão válido como aquele.
A
dita morte veio nem um ano depois da nossa conversa ao jantar. Nos anos
seguintes, estive várias vezes com alunos meus em Ribeira de Pena, em visitas
de estudo. E vi no terreno alguns formandos do Francisco Botelho, perorando com
digno rigor sobre lugares, personagens e obras da literatura camiliana. Não
tinham o brilho original do Mestre, é certo; mas eram, de certa divina forma, a
sua amável continuidade.
Retenho
desta evocação, para além da intransmissível saudade, uma lição existencial: a
de que o nosso tempo tem o valor que lhe dermos. Não se trata apenas, sublinho,
daquele clichê latino-modernista do “carpe diem”. Neste caso, significa
sobretudo o dever do ser humano para com o Futuro: o meu amigo Francisco
Botelho não deixou que a sua morte significasse o fim de um projecto formoso,
ligado à (sua) terra e à figura de Camilo Castelo Branco.
Um
grande poeta irlandês, Seamus Heaney, põe em questão – em certo poema de que
nunca mais me esqueci – se não deveríamos, em vez de nos interrogarmos sobre o
facto de haver ou não vida depois da morte, preocupar-nos com o inverso, isto
é, se há ou não, bem vistas as coisas, vida antes
da morte. Amen.
Ribeira de Pena, 21 de
Setembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O
Ribatejo, edição de 23-09-2015. As fotos – datadas de 2007 – ilustram um dos
jantares camilianos que o Francisco Botelho organizou.]