Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (4)

Bem vistas as coisas


Sou professor de Português e Francês na Escola pública. Cumpro programas, planificações, horários, ordens. Não é sempre fácil nem gratificante. Mas a minha missão vai secretamente além dessa cartilha: quero oferecer a cada aluno o melhor da minha essencial humanidade. E gosto de pensar que, à minha maneira, os ensino a olhar para o mundo e a vida. Não necessariamente a ver, porque isso já não depende tanto de mim.
Há trinta e um anos, a minha filha nasceu com a amável mania da curiosidade. É essa, como se sabe, uma condição relativamente comum entre as crianças, ponto de partida – aliás – para a obtenção de preciosos conhecimentos.
A minha mulher e eu gostávamos muito de ver a miúda, aí pelos seus cinco-seis anos, em seu ofício observador do mundo, atenta a pormenores de um rosto, de uma rua, de um prédio, de um automóvel, do mar de Mira. Ela tinha o hábito de franzir o nariz enquanto observava o que observava – e eu, encantado, achava-a parecida com um coelho (de Lewis Carroll, atenção!, o das maravilhas verdadeiras).

Aos dez anos, o médico descobriu que a nossa filha sofria de miopia, razão (afinal) para aquela careta engraçada no durante de suas aventuras olhadoras: a menina semicerrava os olhos e franzia o narizito apenas porque queria fixar-se nos pormenores a ver.
Lembro-me de ela, já com óculos, ficar extasiada perante aquela festa de cor e vida que era um jardim próximo de nossa casa. E de se ter saído com qualquer coisa deste género: - Ó pá, agora percebo como vocês viam! É tudo tão claro e tão bonito! 
Eu, já vo-lo disse, sou professor de língua e literatura.      Gosto de pensar na minha profissão como um ramo da - digamos assim - oftalmologia poética. Quero dizer: uma luta contra a miopia. Uma luta contra as vistas curtas,

Coimbra, 01 de Setembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no jornal O Ribatejo, na edição de 03-08-2015.]

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