Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (125)


O sucesso em forma de anedota

 Ouvi, há muitos anos, uma anedota que volta & meia recordo, já menos pela graça original que pela eficaz representação do conceito de absurdo. Conto-a, com vossa licença. 
 Um homem chega a casa e testemunha a infidelidade da esposa, envolvida com um primo seu (dele), sem roupa e sem vergonha, sobre um sofá cinzento que o infeliz comprara há pouco tempo. Resistindo – por não desejar o escândalo nem o fim do casamento - ao impulso de um acto violento, o homem retira-se discretamente do teatro de operações e vai para a tasca beber uns copos. Um amigo apercebe-se do seu nervosismo, da sua tristeza, do seu ar deprimido – e questiona-o (“Que se passa, pá?”). O marido defraudado desabafa, descrevendo-lhe a cena com pormenores dolorosos (a nudez conspícua, os sacramentos traídos, o sofá quase novo), pouco espaço deixando ao interlocutor para qualquer consolo conveniente. Uma semana depois, voltam a encontrar-se na mesma tasca e o homem vítima do destino não aparenta qualquer perturbação: conversa alegremente, ri-se ruidosamente. O amigo trá-lo para um canto e pergunta-lhe se “aquele problema” já está resolvido. A princípio, o outro nem percebe a pergunta; depois, após ter ouvido o confidente recordar-lhe, com cuidadosa escolha de palavras, a angústia da semana anterior, responde: “Ah! Está tudo resolvido.” “Perdoaste-lhe? Divorciaste-te?”, quer saber o perguntador. Responde o marido-novamente-feliz: ”Não. Vendi o sofá.” 
 Cruza-se-me com esta narrativa mínima certa notícia recentemente chegada aos meus ouvidos: o governo quer reduzir o insucesso escolar no ensino básico determinando um limite (pré-quantificado) de alunos que poderão ser retidos em cada ano de escolaridade.  
 Esclarecimento: eu simpatizo, naturalmente, com a ideia de combater o insucesso escolar. Costumo até dizer, a alunos, colegas e encarregados de educação, que o insucesso dos meus alunos é, em termos objectivos, o meu próprio insucesso enquanto docente. Mas o combate ao insucesso deveria significar, antes de mais, um magno esforço para elevar e aprofundar conhecimentos & competências dos alunos, e não simplesmente o reforço artificial de avaliações positivas. O sucesso conquista-se, como é bom (digno) de ver, com muito trabalho, envolvendo professores, alunos, famílias; com diversificação de estratégias, respondendo à especificidade de cada turma (e, se necessário, às características particulares de cada discente); com recursos (horas para apoio; tutorias; actividades lúdico-pedagógicas que contribuam para a estimulação e para a auto-estima dos aprendentes); com monitorização atenta e consequente da evolução de processos e resultados. Etc
 A ideia de que o insucesso escolar se resolve por decreto é uma ilusão perigosa e, convenhamos, ridícula. Espero bem que, na educação, se resista à tentação de, perante magnos e complexos problemas, se resolver tudo vendendo o sofá.

 Vila Real, 18 de Fevereiro de 2018.
 Joaquim Jorge Carvalho
 [Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 22 de Fevereiro de 2018. A imagem foi colhida, com a devida vénia, na net.]

domingo, 18 de fevereiro de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (124)


Rankings, Realidade & Excell

Aparentemente, a vozearia à volta dos rankings das escolas foi, desta feita, menor. A feira mediática parece ter-se cansado desse território e os tudólogos da pátria, à míngua de antena, encolheram os ombros. Como os pastéis de nata, dir-se-ia, os rankings acabam por enjoar – até os entusiastas ex-maoístas que, há décadas, ansiavam em lágrimas pela sua publicação. 
Lembro que em momento algum ministério, professores, direcções escolares e sindicatos desvalorizaram o tratamento sério, avisado e responsável dos dados resultantes de exames ou provas de aferição. A diferença estava em que essa análise, na opinião de quem estava – está - mesmo interessado no sucesso da Escola (sobretudo, no sucesso da Escola pública), deveria ser feita dentro do próprio sistema. Objectivo: encontrar estratégias para potenciar boas práticas ou corrigir falhas.
Já os arautos da exposição dos rankings viam na publicação ruidosa de classificações por escola a chave para a excelência deveniente: as escolas boas – maioritariamente associadas ao ensino privado – seriam reconhecidas e premiadas; as más – maioritariamente públicas – tornar-se-iam, por vergonha ou castigo, também boas ou desapareceriam. Na cave desta retórica, havia o ideal de uma Escola tendencialmente privada e, como acontece nos Estados Unidos da América, de uma desvalorização-residualização do ensino público, destinado apenas à população socialmente desfavorecida.
Quem estuda há muitos anos o fenómeno da educação sublinhou oportunamente, para escândalo dos entusiastas dos rankings, que países muito desenvolvidos haviam já experimentado essa prática e, depois, optado por tratar internamente os dados anuais relativos à avaliação dos seus alunos. Porquê? Porque entenderam que aquela exposição pública prejudicava mais do que beneficiava o sistema. Mais consideraram que os rankings eram, por natureza, falhos de rigor, injustos e contraproducentes, pois configuravam, na prática, a emergência de estigmas dificilmente reversíveis e a simplificação abusiva do mérito escolar e educativo das escolas.
Não me custa concordar com essa teoria: ao longo dos últimos anos, tenho assistido à substituição do estudo competente e produtivo dos resultados escolares por um ruído profundamente demagógico e politicamente enviesado. Cheguei a ler, em jornal de referência, um ex-maoísta a “explicar” que, com base nos rankings, as famílias iriam poder escolher as melhores escolas para os seus filhos!...
Já estive em escolas com bons resultados nos rankings – e eu era o mesmo professor que fui, depois, em outros estabelecimentos de ensino com piores resultados. Também já vi bons resultados num ano e menos bons no seguinte, tudo na mesma escola, com as mesmas práticas e os mesmos professores.
Há uns anos, a melhor aluna do 9.º ano da minha escola foi, no final do terceiro ciclo, prestar provas a um colégio privado para provar que merecia cursar aí o ensino secundário. Foi admitida. Esse colégio é dos que brilham, ano após ano, nos rankings. Na escola onde trabalho, atentai, admitimos todos os alunos, independentemente das qualidades intelectuais que revelem à partida.
Ainda uma pequena “anedota” (verdadeira): há uns dezasseis anos, a minha Filha e outros quatro ou cinco colegas do 12.º ano quiseram fazer exame nacional de Filosofia, de modo a poderem concorrer aos cursos universitários que almejavam. Ao longo do ano lectivo, essa disciplina não fizera parte do seu currículo, pelo que se auto-propuseram a exame. Eram, de modo geral, bons alunos e, graças ao estudo aturado (e à sua inteligência, claro), obtiveram excelentes classificações na prova. De tal resultou que o estabelecimento de ensino onde fizeram o 12.º ano ficou classificado, em termos de ranking, no top ten nacional, no que a Filosofia diz respeito. Tirando o facto de a escola (recordo) não ter essa disciplina no currículo, foi um momento de conspícua glória para aquela comunidade educativa.
No espírito mercantilista e futeboleiro dos rankings, talvez valesse a pena pensar nesta proposta, que ofereço de graça: cada escola - privada ou pública - escolheria os cinco melhores alunos para levar a exame (de Português, Matemática, etc.). Estou convencido de que, assim, a competição seria mais justa – e a percepção do sucesso escolar, tão artificiosa como a que actualmente se lê nas folhas de Excell, estender-se-ia enfim a todo o território português.

Coimbra, 11 de Fevereiro de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[Uma versão (mais curta) desta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 15-02-2018. A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.contra-facção.blog.br.]

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (123)

Elogio da rotina burguesa

O relógio tem esta paradoxal qualidade de, representando embora o controlo dos homens sobre o Tempo, ser um permanente aviso sobre o humano Fim. Na verdade, o relógio marcha contra nós, ó tristes, imparável e impassível como aquela esfinge que Baudelaire inscreveu no seu poema “La beauté”.
Contra a morte, que remédio senão viver-ir vivendo, como disse o poeta Célan? Que remédio senão o amor, como disse o poeta O’Neill? Menos grave e bela que as propostas da filosofia ou da poesia, ainda sei de uma outra forma de fugir (ou fingir que se foge) da morte: o culto da amável rotina.
A rotina não nos salva do Fim, naturalmente. Mas, no intervalo das doenças (próprias e alheias) e dos desgostos (havidos ou iminentes), eu simpatizo com a regularidade repetida dos meus dias burgueses. A sistemática lida da nossa normalidade serena e honesta representa, talvez, uma grata ilusão de imortalidade, que é, à falta de melhor oferta, um querido regaço muito à mão de semear.
O burguês é feliz estando em casa – a ler, a ouvir música, a conversar, a telever futebol, ou simplesmente estando em casa sem mais verbos.
É feliz cumprimentando vizinhos e amigos, lembrando o Pai junto de contemporâneos seus (dele) de há cinquenta anos. É feliz discutindo futebol, política, mulheres, entre gargalhadas juvenis e sem devir obrigatório. É feliz separando o lixo, substituindo as lâmpadas domésticas, pagando as contas dentro do prazo, resolvendo um problema de canalização na cozinha (assim contrariando, aliás, uma fama de desajeitado que o persegue na família há décadas), descobrindo a causa do mau funcionamento do aspirador (um fusível fundido que mais ninguém detectara), repondo o stock de vinho para oferecer aos visitantes, mantendo q.b. a casa com pão, fruta, leite, água engarrafada, guardanapos, papel higiénico, batatas, azeite, óleo, cenouras, detergentes.
É feliz assistindo a séries cómicas, quiçá à lareira, estendido no sofá como um desempregado feliz (no intervalo da profissão, que religiosamente cumpre para ser digno do que lhe pagam).
É feliz a correr no Choupal, sobretudo quando não anda assustado com misteriosas dores no peito, não tem dívidas impagáveis e, para cúmulo destas maravilhosas juventudes momentâneas, há Sol na sua cidade.
É feliz quando a família está bem - isto é, normalzinha da silva, isto é, razoavelmente viva, isto é, razoavelmente sã. É feliz quando a mulher e a filha estão em casa consigo, tão eternamente como em 1989, já depois da tropa, durante as férias estivais, muito pobres e muitíssimo felizes, na mítica Praia de Mira.
O senhor Marx que me desculpe, mas a burguesia é um belo lugar para se estar antes da morte.

Vila Real, 03 de Fevereiro de 2019.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 08-02-2018. A imagem (de Calvin & Hobbes, do genial Watterson) foi colhida, com a devida vénia, na net.]

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (122)



A observação como doença crónica

 Sonhei que um pintor famoso se cruzava comigo na rua e me oferecia um quadro. Vagamente, explicou-me que me vinha observando há algum tempo, e que, à minha custa, se comovera e rira já excessivamente. De comum, explicou-me, tínhamos a doença de sentir tanto e sempre, bem como a urgência, decerto doentia e patética, de nos exprimirmos abundantemente, como se precisássemos de confidenciar ao mundo o que profundamente vivíamos, para o mundo nos lamentar, nos consolar, nos perceber e, talvez, nos aceitar. 
O quadro estava cheio, sobretudo, de motivos marinhos. A expressão que me ocorreu foi a de “um aquário no mar”: água e peixes por todo o lado, mas também rochas, plantas, uma âncora ferrugenta, um navio sepultado em forma de vulto. E – aqui é que entrava verdadeiramente a senhora Dona Estranheza – pessoas: multidões à espera do autocarro, automóveis a passo de caracol (de caracol anfíbio, claro), agentes da polícia, vendedores de cautelas e de castanhas, pares de namorados trocando juras de amor em bolhas de ar, ambulâncias nervosas, familiares, amigos & conhecidos movimentando-se no sentido dos ponteiros do relógio, a minha Mãe levando a minha Filha à escola. 
O quadro era uma espécie de enxame de vida vária, vertiginosa, confusa, ruidosa, caótica. Fez-me lembrar, já depois de acordado, alguns episódios de febre por que passo às vezes e invariavelmente me acendem no cérebro uma avalanche infernal de rostos-objectos-acontecimentos a cem à hora. 
Mas onde estava eu ali, naquela voraz representação do (meu) mundo? Perguntei, então, por mim. O pintor apontou para uma extensíssima serpente, que – observado o panorama com maior atenção e mais apurado detalhe – começava no início da tela, ao canto esquerdo, e se estendia, em eles, esses e zês, até ao canto inferior direito. A serpente tinha uns olhos imensos (que a princípio me pareceram duas misteriosas medusas) e olhava, com absoluto espanto ou mortal medo, para cima. 
Perguntei-me por que razão a serpente (eu?) olhava para as mãos do pintor. Sem falar, ele retirou as suas mãos do quadro, e percebi que sob elas estava, até então tapado, o meu próprio rosto olhando para baixo. Isto é, para a serpente e para a vida dentro do aquário, em geral. 
Eu tinha muito mais para debater com o pintor, mas ele desapareceu-me – primeiro pelas sombras labirínticas do sonho, depois pelas esquinas palavrosas da sua gasosa evocação. 
O que ficou do que sonhei foi, portanto, aquela ideia de um aquário no mar comigo dentro e simultaneamente comigo a ver. Não é mau pecúlio, pois sonhos há que não nos deixam um cêntimo sequer do tesouro vivido (e vívido) por onde andámos. 
Dando-se o caso de, por estes dias, o cronista se interrogar sobre a missão do cronista, apeteceu-me pensar que o aquário representava talvez este homem de palavras com um pé no mundo e outro fora, no ofício de viver e reflectir acerca de quanto-como-para-por que se vive. 
Depois, como era Sábado, comprei o Expresso e fui lê-lo para a sala, inteirando-me confortavelmente das glórias e misérias deste planeta em que está (também) a casa arrendada onde leio e escrevo.

Coimbra, 20 de Janeiro de 2018. 
 Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 25-01-2018. A imagem (do grande Cesário, espécie de poeta-cronista), foi colhida na internet, com a devida vénia.]