Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (122)



A observação como doença crónica

 Sonhei que um pintor famoso se cruzava comigo na rua e me oferecia um quadro. Vagamente, explicou-me que me vinha observando há algum tempo, e que, à minha custa, se comovera e rira já excessivamente. De comum, explicou-me, tínhamos a doença de sentir tanto e sempre, bem como a urgência, decerto doentia e patética, de nos exprimirmos abundantemente, como se precisássemos de confidenciar ao mundo o que profundamente vivíamos, para o mundo nos lamentar, nos consolar, nos perceber e, talvez, nos aceitar. 
O quadro estava cheio, sobretudo, de motivos marinhos. A expressão que me ocorreu foi a de “um aquário no mar”: água e peixes por todo o lado, mas também rochas, plantas, uma âncora ferrugenta, um navio sepultado em forma de vulto. E – aqui é que entrava verdadeiramente a senhora Dona Estranheza – pessoas: multidões à espera do autocarro, automóveis a passo de caracol (de caracol anfíbio, claro), agentes da polícia, vendedores de cautelas e de castanhas, pares de namorados trocando juras de amor em bolhas de ar, ambulâncias nervosas, familiares, amigos & conhecidos movimentando-se no sentido dos ponteiros do relógio, a minha Mãe levando a minha Filha à escola. 
O quadro era uma espécie de enxame de vida vária, vertiginosa, confusa, ruidosa, caótica. Fez-me lembrar, já depois de acordado, alguns episódios de febre por que passo às vezes e invariavelmente me acendem no cérebro uma avalanche infernal de rostos-objectos-acontecimentos a cem à hora. 
Mas onde estava eu ali, naquela voraz representação do (meu) mundo? Perguntei, então, por mim. O pintor apontou para uma extensíssima serpente, que – observado o panorama com maior atenção e mais apurado detalhe – começava no início da tela, ao canto esquerdo, e se estendia, em eles, esses e zês, até ao canto inferior direito. A serpente tinha uns olhos imensos (que a princípio me pareceram duas misteriosas medusas) e olhava, com absoluto espanto ou mortal medo, para cima. 
Perguntei-me por que razão a serpente (eu?) olhava para as mãos do pintor. Sem falar, ele retirou as suas mãos do quadro, e percebi que sob elas estava, até então tapado, o meu próprio rosto olhando para baixo. Isto é, para a serpente e para a vida dentro do aquário, em geral. 
Eu tinha muito mais para debater com o pintor, mas ele desapareceu-me – primeiro pelas sombras labirínticas do sonho, depois pelas esquinas palavrosas da sua gasosa evocação. 
O que ficou do que sonhei foi, portanto, aquela ideia de um aquário no mar comigo dentro e simultaneamente comigo a ver. Não é mau pecúlio, pois sonhos há que não nos deixam um cêntimo sequer do tesouro vivido (e vívido) por onde andámos. 
Dando-se o caso de, por estes dias, o cronista se interrogar sobre a missão do cronista, apeteceu-me pensar que o aquário representava talvez este homem de palavras com um pé no mundo e outro fora, no ofício de viver e reflectir acerca de quanto-como-para-por que se vive. 
Depois, como era Sábado, comprei o Expresso e fui lê-lo para a sala, inteirando-me confortavelmente das glórias e misérias deste planeta em que está (também) a casa arrendada onde leio e escrevo.

Coimbra, 20 de Janeiro de 2018. 
 Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 25-01-2018. A imagem (do grande Cesário, espécie de poeta-cronista), foi colhida na internet, com a devida vénia.]

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