Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (63)



Notícias da inactualidade
 
No ano de 1933, aí pelas oito da manhã, é possível que um casal alemão, ele e ela na idade sensata dos 40-50 anos, tenha adivinhado o horror iminente, no seu país e no mundo. Um homem que culpava as nações vizinhas pela crise alemã, que acusava uma raça da maiúscula Culpa de todos os males do planeta, que desprezava os direitos humanos, que ameaçava tudo & todos com perseguições e guerra em nome do nacionalismo mais primário, fora eleito.
Um belo livro de Bernard Schlink (O Leitor, Ed. ASA) explica o escândalo da eleição com um argumento pertinente, mas não completamente verdadeiro: ignorância e analfabetismo do povo alemão. Mas sabe-se que a ideologia nazi granjeou, à época, na Alemanha e em vários países ocidentais, adeptos muito bem informados. Houve políticos, militares, professores, artistas, filósofos, cidadãos pobres e ricos que aderiram às causas mais bárbaras e demenciais do Partido do Führer – e diligentemente participaram no genocídio deveniente, no esforço de guerra contra os outros países, na perseguição aos que, por não serem capazes de não pensar livremente, punham em causa o unanimismo da máquina nazi.
Um casal de alemães, dizia eu, aí pelas oito da manhã do dia seguinte às eleições, terá previsto o horror. Ele talvez tenha dito: “Nunca mais de lá o tiram!” E ela talvez tenha dito: “É melhor não falares em voz alta. Ainda te chamam comunista, ou judeu, ou traidor…”
Este casal residia (ficciono eu) num bairro popular de Berlim, onde conviviam, até aos primeiros anos da década de 30 do século XX, os ricos, os remediados e os pobres. Entre eles, haveria um homem que, por estar desempregado e ter a cargo um filho doente (vítima de gases na Primeira Grande Guerra), cantava agora a plenos pulmões uma cantiga xenófoba. E haveria uma mulher que, recentemente despedida de uma alfaiataria de um judeu, exaltava agora publicamente o orgulho de ser “uma verdadeira alemã”. E haveria quem, por não acreditar em ninguém, tomava agora por boa aquela alternativa ruidosa ao que fora, até aí, o seu mundo. E haveria ainda quem, por preguiça ou medo, fingisse acreditar no clichê anti-políticos muito em voga por ali – “que eram todos iguais, que tanto fazia um como outro, que tudo ficaria na mesma independentemente do que cada um votasse”.
Depois, foi o que se sabe. A verdade está nos livros de História, não obstante as dúvidas do inefável senhor Le Pen (pai daquela Marine que se prepara para ser presidente da França). 
 
PS: Era para escrever sobre a eleição de Donald Trump, mas já não há tempo. 
 
PPS (Nota aniversária): O Ribatejo faz 31 anos. Do lugar de onde o vejo, este jornal afigura-se-me o contrário daquele Berlim da minha crónica. Tem sido mesmo um orgulho escrever para este País de Liberdade que é O Ribatejo, sob a brilhante e sempre calorosa orientação do nosso Director, Joaquim Duarte. Parabéns, Companheiros, & muitos anos de vida! 
 
Ribeira de Pena, 11 de Novembro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 17-11-2016.]

terça-feira, 15 de novembro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (62)


Ir à bola com Assis Pacheco
 Esta crónica começa com um fait-divers: houve um polaco que, quando médicos e família já desesperavam, saiu do coma. O que alegadamente o devolveu ao mundo foram os golos de Cristiano Ronaldo, relatados por (creio) um locutor de Varsóvia.
Esta notícia contraria o que, nos anos 70 do século XX, era habitual ouvirmos sobre o futebol. Isto: que, como a religião e o fado, a bola servia para adormecer o povo, distraí-lo das questões verdadeiramente importantes.
Custou-me muito, na primeira adolescência, casar a paixão pelo futebol com as minhas convicções antifascistas. O meu vizinho Chico, que era (e é) benfiquista fervoroso, andou uns meses a falar-me nos três efes do fascismo – Fátima, Fado, Futebol. Já o meu Pai, pouco dado a fundamentalismos e com o gozo de, enquanto sportinguista, o contrariar, dizia-lhe que havia outro efe ainda mais relevante, fonte de prazer egoísta e garante da demografia pátria. Riam-se os dois e talvez eu, por instantes, julgasse que aludiam à palavra Felicidade.
De qualquer modo, sempre achei que o meu amado futebol valia muito mais que aquele labelo circunstancial. Nem de propósito, tive a oportunidade de reler, no passado (saudoso) Agosto, um livrinho de Fernando Assis Pacheco, intitulado Memórias de um craque. Trata-se de um conjunto de textos que aquele jornalista e escritor escreveu para o Record, há uns 40 anos, e que eu me lembro de, in illo tempore, mui gratamente devorar. Num dos capítulos-crónicas, ele lembra a saga da Académica de Coimbra até à final da taça, no Jamor, no ano heróico de 1969. Solidários com os colegas da universidade, os jogadores e os adeptos da Briosa ensaiaram, à época, uma espécie de 25 de Abril temporão, exemplar grito pela liberdade, pela educação e pela justiça. Ora, tal como na historieta do polaco ressuscitado, aqui o futebol serviu, não de manhoso embalo para o esquecimento, mas de despertador. No caso daqueles verdes anos coimbrões, de despertador – atenção ao adjectivo - ético.
Nota final: Fernando Assis Pacheco era, ao contrário de quem vo-lo recorda, adepto da Académica de Coimbra (eu sou do União) e do Benfica (eu sou do Sporting). Mas amava, semelhantemente a este pobre escriba, a futebol, a liberdade, os amigos e a língua portuguesa.


Vila Real, 06 de Novembro de 2016.
 Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 1º-11-2016.]

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (61)

João Lobo Antunes (De profundis)

A morte do médico-investigador-cientista-escritor João Lobo Antunes foi dignamente assinalada pelos média portugueses. Li e ouvi testemunhos de muita gente, a uma voz lamentando a perda do homem-amigo-cidadão. Desse coro resulta a imagem de um Português consensual, estimado e admirado para lá do ruído político-partidário, a salvo da espuma medíocre das tricas e invejas da vidinha. 
Eu gratamente contribuo para esta unanimidade invulgar- Habituei-me a reconhecer a elegância deste compatriota sereno, culto, viajado. Retive, entre discursos, entrevistas e textos de opinião, um prefácio que escreveu para o livro De Profundis, Valsa Lenta, de José Cardoso Pires. Sublinhava, nessa espécie de ensaio, o valor literário e científico daquela obra do escritor consagrado e, por acidente do destino, seu doente. A Valsa Lenta relata, de forma tão precisa que dói ao ler, a doença do autor de O Delfim, o qual subitamente se perdeu de si, tornando-se incapaz de reconhecer pessoas, coisas e objectos, de verbalizar pensamentos ou emoções, de comunicar. (A este fenómeno, os cientistas chamam, salvo erro, “afasia”.) 
Lobo Antunes, para além da estética fruição do testemunho de Cardoso Pires (que entretanto ainda teve tempo de reaprender a linguagem e pôde, assim, explicar, na sua tão limpa prosa, aquela sua saga radical), deu-se conta do tesouro médico-científico da obra: era, como bem esclareceu, uma maneira de leigos e especialistas visitarem, guiados pela luz do escritor, o corredor misterioso e tenebroso da consciência, da profunda Vida. 
Mas o que eu queria sublinhar, acima de tudo, na revisitação deste elogio nacional a João Lobo Antunes, era a gratidão de tantos cidadãos pelo (seu) médico. Desde menino que vejo, nos profissionais de saúde, uma espécie de anjos em missão terrena. Entregamos-lhes a nossa vida e inteiramente confiamos nos seus conhecimentos e nas suas capacidades (como, em devido tempo, fizemos com os nossos pais). Se a esta competência científico-profissional calha acrescentar-se a simpatia, a generosidade, o humanismo – que remédio senão vê-los como seres verdadeiramente maiores e exemplares, merecedores de todos os encómios e agradecimentos? 
Era para vos falar de uma médica bruta e irresponsável, uma avantesma com quem me cruzei há cerca de um ano, num centro de saúde do interior. Escuso de o fazer, assim ganhando - eu, a crónica e os leitores - em matéria de higiene e de bem-estar: bastemo-nos desta ideia de que o pior inimigo de um bom médico (ou de um grande médico, como o Dr. João Lobo Antunes) é um qualquer colega seu sem qualidades profissionais e humanas.
Naturalmente, isto também vale para advogados, professores, canalizadores, engenheiros, caixeiros, fiscais da câmara, políticos, jornalistas, carteiros, mecânicos, militares, etc. Os exemplos ajudam-nos a pôr tudo em perspectiva, não é verdade?


Coimbra, 30 de Outubro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 03-11-2016.]