Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sábado, 31 de março de 2012

Coisas de Valor


Praias, amigos, certo poema
Romances, recordações, cantigas
Família, pinturas, cinema
Coimbra, futebol, raparigas –
Quanto de ternura e de beleza
Vale, amor, a habitual tristeza?

Coimbra, 31 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.guiagrecia.com.]

Outras contabilidades (Três quadras sobre a mesma Dor)


Dedicado ao maior dos poetas meus contemporâneos, Daniel Abrunheiro (visitável em http://www.canildodaniel.blogspot.com).


1
A vida que me deu tanto
E a que me falta viver
É uma migalha de quanto
Havia em mim para ser.

2
Doem-me todos os lugares
Que perdi por não escolher
Tenho saudades dos mares
Que nunca cheguei a ver.

3
Parte da minha vida
É a vida que não vivi
Ou está não bem escondida
Nos poemas que escrevi.

Coimbra, 31 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.canildodaniel.blogspot.com.]

Correr, ser


Na manhã de sexta-feira, inesperadamente, revejo uma (como diria o Torga) rapariga do meu tempo, a Ana. Simpática como é seu hábito, elogiou a beleza sempre igual da MP e, sorrindo, disse de mim que também, só que um bocado “mais rechonchudinho”. Rimo-nos todos da evidência dita e do modo escolhido para a dizer. Mas, já em casa, desagradei-me dessa condição adiposo-mental que é fruto do frio, do trabalho e, sobretudo, desta espécie de preguiça filha do Desânimo (e filha de outra mãe que agora omito).
Comecei, pois, a correr novamente. Isto é, mexi-me, agi. Hoje: trinta e cinco minutos no Choupal (até escrever me dói nas articulações).
Reconcluo que agimos, muitas vezes, contra qualquer coisa. Eu, por exemplo, contra um adjectivo só aparentemente inócuo: rechonchudinho.

Coimbra, 31 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.blog.opovo.com.]

Arte poética (elementar)


Um só verso às vezes faz
À sua vontade o poema –
É quando o verso já traz
O ritmo, a luz, o tema.

Coimbra, 31 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.hortadozorate.blogspot.com.]

sexta-feira, 30 de março de 2012

Consulta para ver se está tudo bem


Porto, manhã, um dia destes.
Um homem e uma mulher à roda dos quarenta anos (talvez mais). Rostos - ambos - pálidos, ombros humildemente encolhidos, diálogo múrmuro, às vezes uma discreta carícia (dele, nela), às vezes uma espécie de suspiro lamentoso (nela, também nele). Em redor, outros rostos, outras humildades acabrunhadas, outros silentes esgares de medo ou (talvez, talvez) de esperança. Algumas batas perambulam - azuis, brancas, verdes: são, ali, a autoridade e, ao contrário do rebanho expectante, falam alto, riem-se, utilizam muito o sufixo inho (entre si e com os outros): um jeitinho, um instantinho, um lugarzinho, coitadinho, porreirinho. Roufenha, uma voz feminina interrompe a praça da alegria (RTP 1) e anuncia nomes próprios, especialidades, salas de consulta. É subitamente a vez da mulher de quarenta (talvez mais) anos. Levanta-se e, atrás de si, o homem. Rostos agora transparentes, os de ambos, como se um mesmo susto pudesse ter duas caras. Os ombros mordendo o pescoço, os passos trôpegos (mas obedientes, rápidos), ainda uma carícia (dele, nela) e de novo um lamento em forma de hausto mínimo (dela, talvez também dele). O médico lê vagarosamente um, dois, três relatórios. Leva uma radiografia ao néon da parede, toma apontamentos, põe os óculos, diz que está tudo bem e marca nova consulta. A mulher e o homem agradecem (ao médico, não bem ao médico) a graça concedida, carimbam uma espécie de caderneta no balcão de atendimento, saem para o sol. Há outra vez sangue residindo em seus frágeis rostos, os ombros de ambos distendem-se, dão-se as mãos, riem-se mesmo agora de certo transeunte que vitupera, na rua, um inimigo invisível. Vão tomar café, vivos (ele, ela, o par).
Quer-se dizer: é mais leve o presente, irmãos, quando nele sobrevive a possibilidade de futuro.

Coimbra, 30 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.elmundo.es.]

quinta-feira, 29 de março de 2012

Já fui mui...


De ósculos fui mestre mui sabido
E professor de amplexos mui portáteis
E tradutor de haustos mui sentidos
E apóstolo de sonhos mui voláteis

Coimbra, 29 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.harbra.com.]

quarta-feira, 28 de março de 2012

Coimbra de mim


A cidade é a minha mãe ao fundo
A minha filha amigos o meu lar
Querida gente antiga o grato mundo -
E eu o deus de mim neste lugar!

Coimbra, 28 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.rotadoperegrino.com.]

terça-feira, 27 de março de 2012

Reunião comigo (à moda de Bernardim Ribeiro)


Volta, outro de mim já sucedido
(Queria tanto, outro de mim, que aparecesses)

Não creio que pudesses ter morrido
(Não suportaria que morresses...)

Volta, meu irmão de outra idade
(Voltou ainda agora a Primavera...)

Volta, traz-me a antiga Novidade
(Era tudo novo, quando eras...)

Volta, ó eu espantado, e dá-me a mão
(Não finjas, pá, que não me vês...)

Sou tu, menino eu, de ti irmão
(Vamos começar tudo outra vez?)

Ribeira de Pena, 27 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.panoramio.com.]

segunda-feira, 26 de março de 2012

Discurso de passageiro frequente


Frequento o amor desde menino
(O amor é um barco impaciente) –
Já fui de si grumete, clandestino
Náufrago, armador, sócio-gerente.

Frequento o amor desde menino
(O amor é uma nervosa embarcação) –
Às vezes fico em terra e imagino
Que sai do cais de mim um coração.

Vila Real, 25 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.praiademira.com.]

Conversa toponímico-platónica com interjeição no fim


- Gosto de Vila Real.
- Claro. É uma cidade simpática. Tem tudo…
- Bom, tudo-tudo, não tem. É uma cidade pequenina.
- Claro. É uma cidade com a dimensão certa… Por isso há, no seu nome, a palavra “Vila” em vez de “Cidade”…
- Escuta, para ser perfeita, falta-lhe o mar…
- Tens razão. Mas também esse aspecto já está compreendido no nome, não achas?
- No nome?
- Sim, no nome: “Vila Real”. Não percebes?
- Não percebo o quê?
- Que o nome já fala dessa falta, pá: “Vila Real”…
- Mas que raio tem isso a ver com a falta do mar?
- Tudo. Se esta cidade tivesse mar, o seu nome seria “Vila… Ideal”!
- Ah!

Vila Real, 25 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (foto de Vila Real) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.rclamego.pt.]

domingo, 25 de março de 2012

Três notas infelizmente actuais


1.
Corrigi-me se estou errado. A maior parte dos portugueses, sobre os políticos que nos têm governado, diz: “São todos iguais.” Creio que a voz do Povo, às vezes, é mesmo a voz de Deus.
Ouvi, há alguns dias, o senhor primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, explicar candidamente que a subida dos combustíveis era aborrecida mas insusceptível de intervenção governamental – porque, sublinhou, as regras em curso eram as que estavam "na lei". Curiosamente, esse raciocínio não o impediu de privar trabalhadores dos subsídios de férias e de natal.
Agora, não sem espanto, ouvi a mesma personagem a insurgir-se contra a oposição que reclama melhores pensões e menos impostos. Exortou esses “irresponsáveis” a dizerem claramente onde arranjariam eles os meios para tal e como acomodariam a despesa (ou perda de receita) no presente orçamento. Ora, isto foi exactamente o que o ex-ministro das Finanças, Teixeira dos Santos (quando o primeiro-ministro era o mesmo de agora, só que com o nome de Sócrates), gritou na Assembleia da República, numa das suas últimas intervenções.
A política é (ou parece), de facto, nesta contemporaneidade esponjosa e lamacenta, um nojo.

2.
Deixai que fale agora de outro (?) assunto. A ética é muito importante. Deveria ser ensinada e cultivada desde cedo, na família, na escola básica e secundária, nas universidades, nas empresas. Há, como se vai vendo, gente absolutamente impermeável ao conceito e valor dessa ideia essencial. E é um problema nacional quando gente assim chega a lugares de poder. Pior ainda se, para além de desprovida de ética, esta espécie de indivíduos desconhece uma outra coisa chamada pudor. Quando isso acontece, o mundo tende a tornar-se um lugar irrespirável.
Se este texto fosse mais extenso, talvez me pusesse a falar do meu país. Ou, sei lá, do Zaire. Mas não.

3.
Morreu Antonio Tabucchi, autor de boa literatura, amante de Pessoa e da Língua Portuguesa. Lamento a sua partida. Vivam, lendo-se, os seus livros!

Ribeira de Pena, 25 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (fotomontagem com Tabucchi e Pessoa) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.estrelabinaria.com.]

Oitava de água e amor em redondilha maior


Um amor incipiente
Pode devir perdição:
Nuvens são água nascente
Em estado de ainda não –
De fios d’água no presente
Se chega à inundação.
Quem me dera água corrente
No meu velho coração!

Vila Real, 24 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (imagem do filme Amor de Perdição, de Manoel de Oliveira) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.amordeperdicao.pt.]

Quadra de cariz popular acontecida entre Vila Real e Vilarinho de Samardã


Luz e lixo é quanto tem
A vida para oferecer:
Quem não souber escolher bem
Nem sequer chega a viver.

Quase Vila Real, 24 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagrem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.skyrapercity.com.]

sábado, 24 de março de 2012

Poema à Mãe eterna


Algum tesouro espero desse futuro
Que ainda tenho, Mãe, no teu abrigo.
E o ouro essencial que aí procuro
É a breve eternidade que és comigo.

Ribeira de Pena 24 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

sexta-feira, 23 de março de 2012

Variações com mar


Vivo entre montes e lembrança
De outra vida com mar.
E o que mais a vista alcança
São as ondas por chegar.

Em outra vida esquecida
Quis ter casa junto ao mar;
Hoje dói-me a minha vida
Por nela não haver mar.

Eu vou de presente a mar
Num barco feito de enlevo;
Invento o mar no lembrar
Da outra vida que escrevo.

Ribeira de Pena, 23 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.puraexperiencia.blogspot.com.]

quinta-feira, 22 de março de 2012

Quadra contra o Tempo


Apetece-me Buarcos e o mar
Tremoços, cerveja, a tua mão;
Apetece-me outra idade, acreditar
Que o amor sim e a morte não.

Ribeira de Pena, 22 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.lifecooler.com.]

quarta-feira, 21 de março de 2012

Princípio de Príncipe


Dia preenchido, este: aulas (no Mercado Municipal e no Arco), "Oficina de Poesia" (por mim intitulada "Poesia - para que te quero?") na Biblioteca Municipal de Cabeceiras de Basto, palestra no Auditório Municipal de Ribeira de Pena sobre criação poética (em particular, sobre a obra O Menino, de Eurico Fragão)...
Sobre alguns aspectos do trabalho desenvolvido - sequência do meu apostolado da literatura, por assim dizer -, hei-de escrever talvez amanhã.
Por hoje, fico-me por uma ideia essencial que defendi apaixonadamente: a de que não há bons textos sem leitores dignos da coisa lida.
Falei-lhes da Bela Adormecida, uma maneira simples e, creio eu, eficaz de sublinhar a importância do leitor na construção dos sentidos e da beleza dos poemas. Em seu sono talvez eterno, a formosura da princesa é - convenhamos - pouco mais do que ausente, inócua, inútil. Para a beleza ressuscitar, de acordo com a história, é preciso um beijo. Não um simples beijo, atenção; um beijo de príncipe.
Isto é: a personagem (e o que ela significa) será resgatada daquela espécie de morte apenas por alguém excelente, alguém apaixonado, alguém único.
Trouxe para o território da leitura, em meu discurso, essa noção de um beijo digno. E julgo que fiz bem. Os bons textos precisam, para verdadeiramente se realizarem, de leitores igualmente portadores dessa delicadeza superior que salvou do sono a mais formosa das donzelas.
E a Bela Adormecida, aqui, são os sentidos do texto, a beleza do texto. Nós só acordamos essa luz, num poema (por muito bom que ele seja), se formos competentes, generosos, ousados, dedicados. Se formos, à nossa medida, príncipes.

Ribeira de Pena, 21 Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

terça-feira, 20 de março de 2012

Mar, isto é, algo novo


Quem me dera haver aqui o Mar
E ver quanto de novo já não vejo
Lavar de Novidade o meu olhar
Seguir a sombra aflita do Desejo!

Coimbra, 19 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.ile-madere.com.]

domingo, 18 de março de 2012

Não quero falar do Sr. Mexia


Era para falar do escândalo que os jornais noticiaram - os honorários dos senhores da EDP, com relevo para essa figura misteriosa chamada Mexia. Mas não. Vou falar de outra coisa, está bem?
Uma familiar foi atendida, hoje, nas urgências do Hospital da Universidade de Coimbra. Soube, escandalizado, que a taxa moderadora (assim designada por algum brincalhão da nossa Política) importaria em vinte Euros. No momento final do assalto, soube que não era bem aquela soma: no total, deveríamos pagar vinte e dois euros e essenta cêntimos. Quis saber porquê. O administrativo lá me explicou, generosamente: os dois Euros e sessenta cêntimos "a mais" resultavam do facto de à paciente ter sido aplicada uma injecção.
Isto é: pagamos impostos (também para a Saúde, claro); pagamos a taxa "moderadora"; e pagamos o "material" utilizado!
Em breve, talvez se leia à porta dos hospitais e centros de saúde: Pobre não entra. Ou: Se não tem dinheiro, não adoeça (e, se adoecer, tenha paciência). Ou: Portugal não é para si, miserável!

Coimbra, 18 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.cnotícias.net.]

sábado, 17 de março de 2012

Sobre a arqueologia pessoal


A ideia de ruína (ou ruínas) é frequentemente associada a decadência, tristeza, fealdade. Mas eu gosto, não poucas vezes, de ver as coisas do avesso e, se possível, por dentro.
Há um lado na ideia de ruínas que, acima de todos, aprecio. Falo da possibilidade de, por entre certa fenda da pedra ou de madeira, ir o nosso olhar até à intimidade de uma divisão, de um móvel, de um quadro, de uma família passada.
Uma casa, por exemplo. Uma casa é também o que lá tem dentro (pessoas e amores, memórias de pessoas e amores). Nos interstícios das ruínas, pode o nosso olhar alcançar esses segredos maravilhosos, isto é, a humanidade que ali houve (ou a humanidade que, pela lembrança ou pela especulação poética, ali permanece).
Um homem, por exemplo. Um homem é também tudo quanto, sob a casca cínica do tempo, existe de outrora e de querer ser. Olhando bem por entre as ruínas do rosto, das articulações, da sua voz talvez enegrecida, podemos ver pessoas e amores, quase sempre na versão a sépia da recordação.
Gosto de ruínas, sim. Sou, à minha maneira, arqueólogo de humanidades. Arqueólogo de mim.

Ribeira de Pena, 17 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.arabrandes-restaurando.blogspot.com.]

sexta-feira, 16 de março de 2012

Olá, como vais? (Três quadras com rima fácil e outra nem tanto)


Cá vou andando
Em meu labor
Desafiando
A dor

Cá vou andando
Na dura lida
Aguentando
A vida

Cá vou andando
Cumprindo a sorte
Recusando
A morte

Cá vou andando
Como que
Esperando-
-Te

quinta-feira, 15 de março de 2012

Eu em Manchester, pois claro


Treze jogadores de camisola verde & branca, calções pretos e um leão no peito foram a Manchester e, embora perdendo, eliminaram uma das mais poderosas equipas do mundo. Nenhum dos jogadores do Sporting me conhece, as minhas piores angústias e os meus mais brilhantes sonhos passam-lhes, naturalmente, ao lado. Mas eu estou feliz por eles, com eles.
A MP, a VL e eu sofremos como se a nossa felicidade pessoal estivesse, ali, em jogo (e estava). A um espírito puramente racional que, para cúmulo triste, não goste de futebol, estas emoções exacerbadas hão-de significar uma redonda loucura ou uma lamentável estupidez.
Mas esta alienação é um lado precioso da minha existência (e - feliz ou infelizmente - também da muita gente que me é querida).
Estou deliciado com os golos de Matías Fernandez e de Wolswinkel. Com a classe de Ismailov. Com o dedo milagroso de Rui Patrício. Com o rugido final de Ricardo Sá Pinto. Eles nem sabem que eu existo, é verdade. E então? Sabia lá o Yazalde (já falecido, meu Deus!) da incomensurável alegria que me deu num longínquo Domingo de 1976...

Ribeira de Pena, 15 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.uniaotomar.wordpress.com.]

quarta-feira, 14 de março de 2012

Mar (salgado na língua)


Dezenas de substantivos, quase todos avulsos e bisonhos, percorriam a praça fronteira ao Café. Eu vi-os e era como se eles não existissem. Faltava-lhes aquela chispa qualquer de vida que nos obriga a reparar na existência dos seres.
Depois, chegou o sol. A luz e o calor de Março incendiaram a praça. Os substantivos abriram a boca de espanto (ou de gozo) - e deram todos em dançar, cantar, dizer versos, como se aquele dia fosse, afinal, diferente dos dias normais. Dia, digamos, de festa.
Passaram pertinho de mim, os substantivos, não houve como não os ver. E assim, de perto, olhados com o sol sobre si, via-se que tinham, na maior parte dos casos, adjectivos agarrados ao cabelo (como flores), e às orelhas (como brincos), e aos narizes (como piercingues), e aos lábios (como beijos), e aos olhos (como o amor).
O último chamava-se Mar. Olhou-me e tinha na língua uma pedrinha de sal em forma de coração.

Ribeira de Pena, 14 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.anos60.wordpress.com.]

terça-feira, 13 de março de 2012

Elogio literário e pessoal da aldeia dinisiana


Gosto muita da aldeia
Do senhor Júlio Dinis;
Essa aldeia é uma ideia
Onde fui feliz.

Amo as histórias solares
Do senhor Júlio Dinis
E esses formosos lugares
Onde fui feliz.

Sou inquilino fiel
Do senhor Júlio Dinis –
Há países de papel
Onde sou feliz.

Ribeira de Pena, 13 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (do filme As Pupilas do Senhor Reitor, de Maurice Mariaud, 1923) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.amordeperdicao.pt.]

segunda-feira, 12 de março de 2012

O rosto verdadeiro do Teatro


Palestrei hoje sobre Literatura e Teatro. O meu público foi constituído por alunos de CEF (Cursos de Educação e Formação) da Escola Básica de Arco de Baúlhe e da Escola Básica e Secundária de Cabeceiras de Basto. Sobraram-me algumas notas. Ofereço-vo-las.
A máscara do Teatro faz-se a partir de um rosto verdadeiro - o rosto humano: olhos, nariz, boca, queixo, faces. Da máscara sai a voz, o gesto, o gemido, o suspiro, o murmúrio, até o silêncio. E tudo quanto sai da máscara é, afinal, verdadeiro.
Não ser a máscara o rosto de ninguém em concreto serve para, aos olhos de quem vê teatro, aquilo se tratar do rosto de quem se julga (ou se quer) ver, isto é, do rosto de todos os rostos.
A máscara do Teatro é, aliás, uma bela metáfora do espectáculo: o que está em palco não é, em rigor, o mundo, a vida; é uma representação da vida, do mundo. É, não a realidade, mas uma aproximação estética e ética à realidade (à realidade essencial) que a condição humana encerra.
Mas a máscara é ainda o convite, de certa forma mágico, ao mergulho na ilusão!
Entra-se no teatro como quem, de corpo e alma, entra numa ideia bonita. Uma ideia, também ela, com corpo e alma.
Ver teatro é (perdoai a violência da imagem) fazer amor com uma realidade superadora da nossa circunstância.

Cabeceiras de Basto, 12 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.ocairdamascara.blogspot.com.]

domingo, 11 de março de 2012

"A Literatura serve para quê?"



Alunos do 2.º ciclo de Ribeira de Pena e Cerva leram, ao longo de uma semana, uma novela minha intitulada Um Barco Chamado Sophia Loren. Isto é, a vida ofereceu-me, não sem um sobressalto provinciano que me é desculpável, a possibilidade de conversar com alunos sobre um livro meu e que eles, de facto, tinham lido e de que - glória, glória, aleluia! - tinham gostado.
Falei-lhes de Linguagem, como capacidade que nos distingue (nos deve distinguir) de outros seres e coisas sem alma; e de Língua, como instrumento fundamental para nos compreendermos uns aos outros e a nós mesmos; falei-lhes de Literatura, como representação artística, fundada na Língua, do mundo, da existência, da carne e dos sonhos de que somos feitos.
Falei-lhes, na foz do discurso, da Narrativa, como ordenação técnica-ética-estética da nossa vida (aquela que temos e a que podíamos ter) - e ilustrei esta última dimensão com a biografia de Um Barco Chamado Sophia Loren.
Uma espécie de intimidade linda caiu, acho eu, sobre o magnífico Auditório Municpal de Ribeira de Pena, enquanto conversávamos. À roda dos livros (sobretudo, à roda da Narrativa), elevámo-nos - por cerca de uma inteira hora - à condição de uma tribo amigável.
No final, houve tempo para algumas perguntas. A primeira a pôr o dedo no ar foi uma menina muito bonita, sentada na primeira fila, que estivera sempre atenta ao longo da minha exposição. A sua pergunta foi: "É verdade que o senhor foi professor da minha mãe?"
Um texto a haver fará deste momento um ponto de partida para uma narrativa. Recordo: há uns dezasseis anos, uma aluna foi, num distante presente de 1996, a futura mãe de uma aluna outra que, neste hoje amanhã de então, ouve a (não exactamente) mesma pessoa falando de contos, novelas e romances cheias de humanidade dentro.
Isto é: quem sou eu? O que é o Tempo, a Vida? Como somos nós?

Ribeira de Pena, 11 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

sábado, 10 de março de 2012

A prosa para sair da prosa


Poucas vezes é formosa
A vida de funcionário:
O dia faz-se de prosa -
Cansaço, deveres, salário.

Às vezes, na prosa escura
Súbito sol acontece
E esse brilho perdura
E aquece.

A própria prosa em si traz
Um caldeirão d'alquimia:
É da prosa que se faz
Poesia.

Ribeira de Pena, 10 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.globoesporte.globo.com.]

sexta-feira, 9 de março de 2012

Citrus reticulata (instantâneo)


Uma única clementina acende, vista do corredor, uma espécie de fogo na fruteira. A fruteira jaz ao centro da mesa, pontual depositária de um quadro talvez de Cézanne que, com o tempo, fatalmente apodrecerá. Namoro, por um minuto, a luz entardecida que aconchega as maçãs, as bananas e a clementina única. Sexta-feira, naquele instante, parece sempre.
Depois, gomo a gomo, eu roubo à fruteira o fogo. Dou ao fim do meu dia o sabor desse citrino doce. Restos de luz despedem-se da fruteira (Cézanne já desistiu, sem dúvida, da minha fruta doméstica). A clementina soube-me muito bem.
É muito breve a eternidade vista da minha cozinha.

Ribeira de Pena, 09 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem ("Natureza-morta com maçãs e laranjas", de Cézanne) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.casthalia.com.]

quinta-feira, 8 de março de 2012

Elas


A MP, a VL, a minha Mãe, a minha Irmã. Mas não apenas: tantas colegas, tantas alunas, tantas senhoras funcionárias com quem convivo na Escola, tantas encarregadas de educação (mães, avós, tias, irmãs). Ao longo da vida, o lado feminino do universo tem estado sempre ao meu lado – para óbvio benefício da minha existência.
Gosto pouco de dias convencionais, que são a artificial expressão de um reconhecimento politicamente correcto. Mas atrevo-me a esta excepção, desculpai: filho da Dona MD, marido da MP, pai da VL, irmão da MF, admirador de tanta gente inteligente-bela-corajosa em versão feminina, que posso eu fazer senão manifestar à Mulher a minha gratidão?
Amen.

Ribeira de Pena, 08 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (retrato de Catarina Eufémia) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.becre-esct.blogspot.com.]

quarta-feira, 7 de março de 2012

Comunhão


O meu coração tem o hábito de se pôr à janela dos meus olhos.
Às vezes, outro coração em outra janela passa na rua do mundo e acena.
E é assim que conversam, quase sempre, os corações: olhos nos olhos.

Arco de Baúlhe, hora d’almoço, 07 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (foto de João José Bica, 1.º Prémio ACERT – Tondela: Concurso Internacional de Fotografia, 1997) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.apena.rcts.pt.]

terça-feira, 6 de março de 2012

Sumário triste


Foi hoje a enterrar o Pai de uma amiga.
A história do nosso dia resume-se, no essencial, a esta forma máxima de violência.
Beijinho para a I.

Ribeira de Pena, 06 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, na wikipédia.]

segunda-feira, 5 de março de 2012

Quadras de Língua


Grato à língua portuguesa
Ao meu dicionário essencial
De alegria e de tristeza
De sonho e de real

Grato à língua de Pessoa
Por nela se inscrever esta verdade
Do pássaro que sou e do que voa
Fora de mim em liberdade.

Ribeira de Pena, 05 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (retrato de Pessoa, 1914) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.tertuliabibliofila.blogspot.com.]

domingo, 4 de março de 2012

Ser poeta


Nenúfar, fragilmente permaneço
À superfície perigosa do destino:
À mínima brisa estremeço
E ao mínimo sol me ilumino.

[A imagem (pintura de Monet) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.encostadomar.blogspot.com. ]

sábado, 3 de março de 2012

Na margem, à margem


Fatalmente sportinguista, mas também adepto do futebol em geral, lá televi - como fez maioritariamente o rebanho português - o jogo entre Benfica e Porto. Um grande jogo, diga-se, manchado pelo erro (inexplicável) do auxiliar que permitiu o terceiro golo da equipa azul & branca. Seria justo e bom, em meu entender, que houvesse um empate; logo, foi triste e mau que uma das equipas ganhasse, para cúmulo num lance de fora de jogo.
Que tem isto de relevante para eu lhe dar espaço e voz no "Muito Mar"? Tem: a circunstância de esta condição de sportinguista me tornar uma espécie de espectador extraterrestre, ali no meio do acontecimento sem ter nada que ver com ele. De, perante o evento mais importante do dia, eu estar, como Maicon, fora de jogo.
Nem sempre é mau residir numa rua marginal, atenção. Mas, muitas vezes, aborrece e cansa. Aborrece e dói.

Ribeira de Pena, 03 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, na net, via Facebook.]

sexta-feira, 2 de março de 2012

Mundo nos eixos


À mesa do Café por uma hora
Está o mundo nos eixos, a dor
suspensa o fim adormecido
os meus olhos mansamente detendo tudo
quanto do mundo cabe no verbo olhar
(incluindo o que não chego a ver)

Na parede sobre mim um relógio
funciona tão lentamente como se afinal não
e uma ou outra beleza cruza este espaço
(como eu ignorando o tempo passando)
Isto é, mulheres desenhando-se no horizonte
como estátuas vivas, retratos formosos
De pernas e outras perdições com carne e luz
Isto é, Senhor, o mundo nos eixos

A minha Mãe está doente (melhorzinha,
garantiu-me) mas prefiro ver por enquanto
o sol, a mansa cor de Março sobre a vila do Arco
a quase paz que é este arremedo de Mar com montes
e os minutos deste relevo como ondas dormindo

O mundo nos eixos, sabei, uma ideia minha
Talvez arredada (talvez) da realidade
da crua infelicidade fisiológica de sermos
humanos, da vida enfim em seu esqueleto mínimo
Do mundo sem sonhos

O mundo nos eixos (minha Mãe, falamos
mais logo), embora a hora passe e o relógio
sobre mim não leia poesia.

Arco de Baúlhe, hora d'almoço, 02 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.fotos.estadao.com.]

quinta-feira, 1 de março de 2012

Foste aumentado. Ai, não, desculpa - era engano


Telejornal das vinte horas. A notícia fala de um erro da Câmara Municipal de Setúbal que, em 2009, terá aumentado indevidamente cerca de 400 funcionários. O aumento foi, segundo percebi, de 40 Euros (mais ou menos). A Inspecção das autarquias exige que os trabalhadores devolvam um total que pode chegar, de acordo com testemunhos, a dois mil Euros. As pessoas, entre incrédulas e revoltadas, falam da impossibilidade de fazer face a esta "dívida" (de que não têm, note-se, culpa alguma). Para já, o vencimento passa de (creio) cerca de 620 Euros para cerca de 580. Um dos ex-beneficiários do aumento quer desabafar perante o jornalista e, devido a soluços e lágrimas, não consegue. Lá atira, numa espécie de sussurro, que não pode, que não consegue, que tem dívidas. Ao falar das dívidas, parece tapar o rosto, talvez com vergonha.
Passa-se tudo num país chamado Portugal. O mesmo país em que há certos públicos e certos público-privados a ganhar, mensalmente, mais de cinco-dez-quinze-vinte mil Euros.
Um país com o coração e a noção de decência daquele triste sadino arrepiaria caminho - ou, pelo menos, faria como fez o trabalhador: taparia, com vergonha, a puta da cara.

Ribeira de Pena, 01 de Março de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.futebolvsmulher.blogspot.com.]