Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quarta-feira, 29 de maio de 2019

Pão nosso


Estive no funeral da Mãe de um amigo. Abracei-o, com a inteira solidariedade que há no facto de todos sermos filhos e de a morte daquela Mãe ser, no plano da percepção, a morte da nossa própria fonte.
A uns metros da descida final do caixão à eternidade subterrânea, um familiar do meu amigo falava da morte de uma outra senhora, contemporânea da que ali se despedia do mundo, e que na semana anterior falecera também, de forma inopinada. 
Guardei a narração num cantinho do meu coração: a senhora passara bem o dia, jantara com a família, deitara-se. De manhã, a filha estranhou o facto de tanto tardar o pão da manhã, trazido diariamente pela senhora sua mãe. Acabou por dar o pequeno-almoço ao marido com o pão duro restante do dia anterior. Passou uma hora, passaram duas. A Mãe não aparecia. 
A filha foi à casa onde a senhora vivia. Bateu à porta. Ninguém veio abrir. Usou a chave que tinha para ocasiões destas e assustou-se com o silêncio. No quarto, já memória, estava a sua Mãe, como se dormisse. 
Abracei o narrador, genro desta senhora, e segui para o meu carro. Batia-me na cabeça uma ideia muito triste e talvez poética: quando uma Mãe parte, perde-se-nos o pão de cada dia. 

Coimbra, 26 de Maio de 2019. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em https://www.sulinformacao.pt.]

sábado, 11 de maio de 2019

Amor vs. Inverno (Quadra sucedida durante o banho matinal)


Levo sobre o corpo o casacão
Contra a geada.
E levo-te, amor, no coração
Contra o nada.

Arco de Baúlhe, 09-05-2019.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem faz parte do belíssimo filme Casablanca, de 1942, com a realização de Michael Curtiz e com a interpretação superior de Ingrid Bergman e Humphrey Bogart.]

domingo, 5 de maio de 2019

Mãezinha



Como todas as Mães, ó minha Mãe 
A senhora é perfeita, como sabe: 
Leio nos seus olhos todo o bem 
Que há na breve vida que nos cabe. 

Ainda hoje a trato por Mãezinha 
Como se fosse ainda pequenino.
Sabe-me bem, contudo, a palavrinha 
E sou - palavra! - um eterno menino. 

Lembro-me de a Mãe, durante a lida 
Na casa encantada do passado 
Cantar Amália e de a nossa vida 
Ter cheiro a café e pão torrado. 

Gritava: “Zé Tó, Quim, Fatinha, Nelo! 
Cuidado, o mar não está de bom humor!” 
(Era em Mira, num tempo novo e belo 
E a Mãe era a praia do amor.) 

Soube, sob as suas asas, da mudança 
Consubstancial ao crescimento. 
Isto é: que o tempo passa, o tempo avança
E deixa para trás cada momento. 

Preciso, mãezinha, que me cante 
A Amália que cantava noutra altura: 
Traga-nos de novo cada instante 
Da felicidade nunca mais tão pura. 

Ribeira de Pena, 05 de Maio de 2019. 
Joaquim Jorge Carvalho
[A primeira foto regista a eternidade de um momento em que comecei a nascer: uma tarde de namoro com Mãe e Pai nos papéis principais. A segunda, de há alguns anos, tem outro amor em fundo - a amada Coimbra.]