Bússola do Muito Mar

Endereço para achamento

jjorgecarvalho@hotmail.com

Número de Ondas

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (105)


Notícias da civilização


Não sou de me lamuriar acerca do país onde nasci e vivo. Gosto muito de ser Português, da nossa História, da nossa Língua, do nosso Sol, do nosso Mar, dos nossos Eça, Dinis, Camões, Pessoa, Ruy Belo, Sophia, Pina, Amália, José Afonso, Dulce Pontes, Paula Rego, Eusébio, Ronaldo.
Mas falei, em Agosto, com um velho conhecido, emigrante há mais de vinte anos num país do Norte europeu. Ele confessou-me as saudades da terra natal, do bacalhau, dos jornais em português, da família e dos amigos, da luz portuguesa. E obtemperou:
- Nem tudo é mau, claro.
A começar, como se adivinha, pelo bom salário. A continuar, por certas regras e costumes que o impressionaram e ele abraçou com gosto - e que são, para quem vê a novidade do lado de cá, um espelho de civilização. Falou-me, por exemplo, daquele escândalo dos submarinos, que alegadamente envolveu portugueses e alemães:
- Na Alemanha, já houve acusação, julgamento e culpados. Em Portugal, parece que nada se passou.
Depois, falou-me dos dejectos caninos que abundam pelos passeios das vilas e cidades de Portugal; e do barulho feito pelos cães dos vizinhos a alta horas da noite; e da impunidade de maridos violentos; e do perigo de automobilistas broncos e irresponsáveis:
- Ali, a polícia actua, pá!
Disse-me também que é obrigado pelos médicos a fazer exames regulares (à próstata, ao cólon, etc.), no sentido de prevenir males eventualmente irresponsáveis, e que pouco ou nada paga por isso; e que os alunos do ensino básico e secundário, para participar nas aulas de Educação Física, têm de obter previamente uma autorização clínica; e que, enfim, a assistência na saúde, ali, nem se compara à do berço pátrio.
Atenção: este meu amigo está muito entusiasmado com a iminência da reforma, que lhe permitirá o regresso a Portugal, mas já se vai mentalizando para a perda (ou degradação) de muitos dos direitos sociais e profissionais a que se habituou. À mulher, mais nova do que ele, falta-lhe cerca de um ano para o fim da carreira contributiva, ainda assim cerca de quatro anos menos do que teria de cumprir à luz da lei portuguesa.
Eu fico feliz por sabê-lo bem, lá longe, no estrangeiro. E confesso-lhe que ouvi-lo falar assim da 1ª divisão da Europa soa, em muitos dos exemplos enunciados, a algo verdadeiramente estranho. Mas estranho e estrangeiro habitam, como se sabe, o mesmo regaço etimológico.

Vila Real, 23 de Setembro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 28-09-2017. A ilustração foi colhida, com a devida vénia, em http://www.maedecachorro.com.]

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (104)



O último ano de Monsieur Burel

Passou na RTP2, no passado dia 12 de Setembro, um documentário intitulado “Mon maître d’école” (com o título “Adeus, meu professor”, em português). A francesa Émilie Chérond teve uma ideia luminosa: acompanhou, com uma câmara de filmar, o último ano de carreira do seu velho professor primário, recolhendo en passant impressões, comentários e desabafos deste seu maître, Monsieur Burel, acerca da escola, da profissão, das gentes da vila, da humanidade. A realizadora reconhece, aqui e ali, práticas pedagógicas que, no seu tempo de menina, a impressionaram já – e revê-se na cúmplice felicidade dos petizes do século XXI, por exemplo na construção de um desenho colectivo, ou na possibilidade de cada aluno recorrer livremente à “caixinha das perguntas” e questionar o docente sobre astronomia, leis, História, flatulências, superstições.
O documentário, embora reflicta a dinâmica variegada e ruidosa de uma turma de meninos e meninas em estado de ebulição contínua, compreende a lentidão própria da existência rotineira e serena, feita de repetições e de regras (formais ou tácitas). E, na verdade, não há nesta dicotomia qualquer contradição: o senhor Tempo é, por natureza, um compósito de continuidade e variação, como amplamente já nos ensinaram Bergson ou Thomas Mann (entre outros sábios).
A noção de que o velho professor cumpre o seu último ano de profissão empresta a cada gesto e a cada frase um extraordinário peso simbólico. Convenhamos: o valor da existência humana tende a inflacionar-se perante a iminência do fim a haver. Explica o senhor Burel, a dado momento, que a reforma representa “o fim de uma viagem, de uma aventura, de uma paixão”.
Pelo meio, o professor viaja com os alunos até Paris, proporcionando-lhes a primeira viagem de metro, a primeira subida à Torre Eiffel, a primeira (quiçá única) entrada no parlamento. Os alunos ajudam-no a ver a Novidade com a virgindade própria do olhar primeiro – e, entre risos e frases descontínuas, garantem a utilidade desta visita de estudo, “pois serviu para aprendermos e para nos divertirmos” (cito de cor).
É ainda o velho instituteur a fazer as honras da casa, recebendo a colega que o substituirá e apresentando-a aos alunos. (Há aqui uma coincidência poética: a nova docente está grávida, como é próprio de uma metáfora sobre o porvir).
No final, a vila despede-se, numa festa muito familiar e singela, do professor Burel. Pela primeira vez, vemo-lo chorar, de olhar assustado e triste. E eu, que tenho esta eterna doença de sofrer excessivamente com a passagem das horas, e que ainda por cima sou um Monsieur Burel perdido por Trás-os-Montes, chorei também. Adeus, senhor professor. Até já.

Vila Real, 15-09-2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 21-09-2017. A foto foi colhida, com a devida vénia, no site da RTP.]

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (103)


Humildade, palavras e espanto, segundo Pina

Durante o saudoso Agosto, um Amigo ofereceu-me uma prenda maravilhosa: um livro com 10 entrevistas feitas a Manuel António Pina, com o título Dito em voz alta, organizado por Sousa Dias (Coimbra, Pé de Página Editores, Lda., 2007). Por cósmica coincidência, Pina é um dos meus poetas preferidos – e o ofertante, que deixo aqui por nomear, é talvez, hoje, o maior poeta português vivo.
O livro devora-se numa tarde. Durante a leitura, costumo sublinhar o que mais me fere a atenção e o entendimento, e dei por mim a assinalar, frase sim - frase sim, as palavras do genial entrevistado. Da entrevista a Maria Augusta Silva (páginas 57-77), trago-vos algumas das ideias do poeta, que ainda me ecoam, como música, nesta ressaca do Verão.
À pergunta “Que levou para a literatura o jornalista que é?”, o escritor responde: “Jornalismo e literatura trabalham com a mesma matéria-prima, as palavras (fiz jornalismo de imprensa). No meu caso, aquilo que de mais importante o escritor terá aprendido com o jornalista foi a humildade. Um jornal, como dizem os velhos tipógrafos, serve no dia seguinte para embrulhar peixe…” Maria Augusta Silva parece estranhar tal certeza e interpela-o: “Esse é igualmente o destino da arte literária?” Pina não duvida: “Da literatura também; se não no dia seguinte, no ano seguinte ou no século seguinte, não há diferença qualitativa entre um dia ou um século. O destino de toda a literatura e de todos os escritores é esse, o esquecimento. […]”
À pergunta “Ao jornalismo que deu o escritor?”, responde: “O jornalista aprendeu com o escritor, fundamentalmente, o respeito pelas palavras. As palavras não são malas de transportar sentido, são seres vivos e volúveis, a umas pessoas dizem umas coisas e a outras coisas diferentes (e a algumas não dizem coisa absolutamente nenhuma). E se não formos capazes de manter com as palavras uma relação simultaneamente de familiaridade e de respeito, de autoridade e de amor, elas acabarão por nos arrastar pelo nariz e nos pôr a dizer o que muito bem entenderem, ou então, infelizes e amedrontadas, calar-se-ão para sempre.
Finalmente, à pergunta “Quando escreve para crianças, sai de uma idade real para reinventar o espanto?”, reage com duas perguntas e, pelo meio, uma afirmação poderosíssima em forma de dúvida: “O que é uma idade real? Talvez a única idade verdadeiramente real seja a do espanto. Que idade temos quando perdemos a faculdade do espanto senão a da morte?
Com Setembro, regressou o ruído nacional – das eleições autárquicas, do orçamento para 2018, das arbitragens futebolísticas, dos processos judiciais mais conspícuos. Entro por este mês com um mal disfarçado medo, ansiando já por um novo Verão que me liberte do caos habitual das nossas vidinhas. O Inverno a haver (e a atravessar) é uma espécie de casulo triste, no interior do qual não bem vivo, apenas duro. Conto com Manuel António Pina e outros sábios para me trazerem (ou anunciarem) alguma possibilidade de Sol.

Coimbra, 09 de Setembro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 14-09-2017.]

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (102)




Cavaco ex-tudo, Cavaco ex-nada 

O ressurgimento de Cavaco Silva trouxe-me à memória cenas tragicómicas do anterior regime: Salazar, já destituído da presidência do Conselho, falava com ex-subordinados e dava ordens como se ainda mandasse – e, por secreto medo ou piedade pura, os interlocutores do santacombadense alinhavam na paródia. 
 A mui comentada sanha cavaquista não surpreende, na verdade, quer no ataque à esquerda, quer no asco pelo seu sucessor à presidência, Marcelo Rebelo de Sousa. Tão-pouco espanta o seu desprezo pelas ideologias. Detenhamo-nos em cada uma das situações. 
 A forma – atabalhoada – como Cavaco misturou a expressão “revolução socialista” com referências ao governo de António Costa (sem nunca usar nomes, para não fugir ao habitual) decorre da desilusão mortal que é, para si, ver o sucesso económico de um projecto em tudo contrário ao que ele defendia. Previsão: no dia em que a situação piore, dirá com o sorriso dos totobolistas de 2ª Feira à noite: “Eu avisei…” 
 A crítica – mal velada – a Marcelo é Cavaco em todo o seu funéreo esplendor: aflige-o que um homem culto, descomplexado e com mundo seja tão conspicuamente apreciado pelos portugueses (à esquerda e à direita). Para cúmulo, o Professor Aníbal tem a noção de que os seus dois mandatos são vistos pelos compatriotas como um parênteses tacanho e triste da nossa História recente. Toma essa ingratidão como uma ofensa à sua pessoa e, à falta de melhor argumento, culpa quem, pelo humanismo e pela inteligência da sua intervenção, concita a admiração de ricos, pobres e remediados. Chama-lhe verborreia. Enfim, o homem não perdoa a Marcelo que seja tão melhor presidente do que ele foi. 
 Na “Universidade de Verão” do PSD (deixo a outros a glosa desta designação ridícula), Cavaco defendeu a inutilidade das ideologias. Para um tecnocrata sem conteúdo (cultural, político, humanista), a retórica bate certo com o que dele já sabíamos. Este foi o homem que se doutorou em Inglaterra, antes do 25 de Abril de 1974, e não se deu conta (segundo se sabe) de que em Portugal existia então uma ditadura; o democrata que não sentiu necessidade de se indignar perante a censura, a Pide, as eleições viciadas, a miséria social; o político que passou a vida a acusar os adversários e os correligionários mais brilhantes de serem “políticos”. A sua aversão tout court a ideologias entronca na sua própria vacuidade de homem sem o sentido da utopia, sem sonhos genesíacos, sem o atrevimento visionário dos grandes estadistas. Hoje, a sua irrelevância justifica mais a piedade do que os vitupérios. 
O cronista de Zona de Perecíveis deseja saúde e longa vida ao cidadão Aníbal Cavaco Silva, e lamenta que ninguém o tenha informado ainda do seu falecimento político. Que descanse em paz. 

Coimbra, 04 de Setembro de 2017. 
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 07-09-2017.A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.topimagem.com.]

sábado, 2 de setembro de 2017

Imagens do quarto do meio (para a VL, que faz anos)


“O quarto do meio” – é assim que chamamos à divisão coimbrinha que está entre o quarto dos Pais e o quarto da Filha. É lá que se encontra grande parte das nossas fotos de família, em papel, à antiga: por ruas de Coimbra, de Machico, de Ribeira de Pena; em viagens, em férias, celebrando o Natal.
Fui ao quarto do meio e juntei quatro fotos. Há uma em que aparece a formosíssima Mãe, MP, e a Novidade-para-sempre, dita “a menina” (então com um ano, talvez). Há outras três que datam, salvo erro, de 1997, incluindo uma em que celebramos o aniversário da amada cria, no pátio da Avó Fina, no exacto dia de 02 de setembro de 1997.
É bonita aquela em que estamos no Piquinho, Machico, descendo para “a vila” (como ainda se diz por lá), na companhia do Mestre João, uma espécie de santo que nunca morreu de nós.
Gosto em particular daquela em que a menina se me agarra ao braço direito. É isso que lhe ofereço desde que a vida me abençoou com a sua chegada: o braço com que escrevo, com que a protejo, com que a seguro, com que a aviso ou repreendo, com que a felicito ou a acaricio.
Vanovska, gostava que, mesmo depois de um dia eu partir, me visses-sentisses sempre como o teu braço direito.
Eu e a tua Mãe gostamos muito da Família, dos Amigos, da Literatura e do Sporting. Mas tu é que és mesmo o nosso grande amor!
Vida longa e felicidades, miúda!

Coimbra, 02 de Setembro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (101)



Agosto (in memoriam)

Uma vez por ano, a vida autoriza-me o regresso ao aconchego da minha cidade natal. Por trinta seguidos dias, sou abençoado com a companhia de Coimbra-Mãe, ando pelas ruas antigas com a felicidade de um soldado de visita a casa, em licença prolongada, e rapidamente abraço os bocadinhos novos de paisagem impostos pelo progresso – um Café, um hipermercado, um quiosque, uma oficina de reparação de automóveis, um jardim, um prédio, um auditório a estrear, uma empresa ligada a medicamentos, um centro lúdico (para crianças & pais), súbitas árvores, semáforos que um velho vizinho reclamava há anos.
O problema desta felicidade, como séculos de literatura e de aforismos nos ensinam, está em que se acaba. De forma discreta, o cínico Outono envia mensagens: que é senão isso esta aragem mais fria à hora do jantar?
A minha existência não se contabiliza por anos civis, e talvez por isso me signifique tão pouco aquele ritual das doze badaladas no fim de Dezembro. É a cada ocaso estival que me acrescento de velhice e da ideia - sempre absurda - de deslizarmos, sem remédio, para a morte (Marguerite Duras: “La vie est un chemin vers la mort.”)
Mais do que o recomeço da lida profissional, custa-me a partida de Coimbra. Como se as obrigações me arrancassem dos braços da amada Cidade-Mãe. Há, convenhamos, uma profunda ironia naquela espécie de eufemismo que arranjaram para o verbo “trabalhar”: ganhar a vida. Ganhar, senhores?! 
Mas isto que vos digo é decerto pouco (quase nada) se comparado à dor hiperbólica de quem labuta fora do seu país. Despedi-me, ainda agora, de tio e tia, emigrantes há vinte anos na Alemanha, ambos sexagenários já. Falta-lhes um ano e três meses para a reforma e, claro, o regresso final. Despedem-se com as costumeiras lágrimas e piadas de circunstância. Também há Morte nas despedidas, mesmo que a conspícua Cabra não venha já.
Ainda não me passou a tão grande tristeza de me, neles, despedir do Verão, murmurando votos de para o ano estarmos todos ainda por cá. Mas o objectivo está definido: durar até ao fim do iminente-eminente Inverno, e depois voltar a viver.


Coimbra, 28 de Agosto de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.travel_in.pt.]