Bússola do Muito Mar

Endereço para achamento

jjorgecarvalho@hotmail.com

Número de Ondas

sábado, 31 de março de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (130)



Balada do Sol comum

No primeiro dia oficial da Primavera, numa vila chamada Arco de Baúlhe (do concelho de Cabeceiras de Basto, distrito de Braga), houve mais um Sarau na Escola Básica local. A sala de convívio voltou a encher-se de crianças, jovens, adultos velhos e novos, num clima de fraternal festa que não cessa de me impressionar. O coração do evento é o livro, a literatura. Mas a dinâmica abraça a arte em geral: o desenho, a pintura, a dança, o teatro e o cinema dividem a atenção e o aplauso do público com a leitura expressiva (treinada semanas a fio) de poemas.
Para mim, como sempre, as semanas anteriores ao Sarau foram um misto de fadiga extrema e prazer profundo. Revejo-me nesta Escola que, transcendendo a dimensão puramente instrucional, se auto-obriga a oferecer Cultura a alunos e famílias locais. Os rankings e as percentagens de sucesso são importantes? Claro. Mas a nossa função vai (deve ir) para além dessa esfera. Concomitante aos currículos elementares, deve comparecer a educação literária e artística. Os nossos jovens têm o direito a conhecer grandes obras e grandes autores da literatura, mas também o de, pela via da própria experiência estética (como receptores ou intérpretes do corpus lido-estudado), se apropriarem dessa linguagem delicada e preciosa e de por essa via profundamente crescerem.
Encontro, muitas vezes, antigos alunos que me falam, com saudade (e, perdoai a imodéstia) com gratidão, dos nossos espectáculos teatrais, dos nossos filmes, dos nossos projectos de jornalismo, dos nossos encontros de poesia.
O Sarau do Arco fez-se sobretudo dos contributos de três Clubes: o Clube de Música, o Clube de Teatro & Cinema e o Clube de Artes. Durante duas horas, oferecemos momentos de poesia, de música, de teatro de cinema, num espantoso cenário feito dos desenhos e das pinturas de juvenis alunos e de uma maravilhosa professora de Educação Visual (Rosário Coelho).
Dei por mim ali a pensar no misterioso poder da Cultura, essa substância misteriosa que torna menos bestial a humanidade: gente habituada aos Big Brothers televisivos, aos clichês telenovelescos, à rotina violenta dos horários e das contas a pagar, à rivalidade cancerígena da política ou do futebol – ali estava ela rindo-se da comédia, comovendo-se com um pequeno filme, dialogando com os poemas ditos (mais do que declamados) por vozes jovens, batendo palmas ao ritmo da música chegada do palco. Noites assim tão luminosas, senhores, parecem manhãs. E passam depressa, sendo (afinal) a eternidade.
Última nota: pela primeira vez em dez anos, um dos poemas lidos no Sarau era – imaginai – cá do cronista. Foi maravilhosamente lido-dito por três alunas do oitavo ano. Ouso inscrevê-lo aqui, por representar aquela relação improvável, mas fatal, entre a cínica realidade onde sobrevivemos e a literatura que nos faz viver, ou (como brilhantemente me ensinou a Doutora Maria Irene Ramalho dos Santos, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra) a relação entre mundo político e mundo poético. Com licença:
Deixo a poesia num canto do quarto / E vou trabalhar. / Ela aparece-me por vezes em lugares inconvenientes / E ri-se do meu espanto ou indignação. / “Sai daqui”, digo-lhe então, embaraçado. / Ela ri-se e espreguiça-se, gaiata e trocista, / Sobre um rascunho de acta / Sobre uma grelha de critérios / Sobre um guardanapo de pastelaria / Sobre uma planificação séria. / “Sai tu daí”, grita, fingindo que me beija. / “Já aqui estava antes de ti”, reclamo eu. / “Parece-te”, diz ela. “Eu já aqui andava / Antes de existires.” / Lá acabamos por regressar a casa / Juntos como corpo e sombra / Filhos ambos do mesmo Sol.

O mesmo Sol, Amigos leitores. 

Vila Real, 25 de Março de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 29-03-2018. A imagem foi copiada, com a devida vénia, das dezenas de contributos que a minha Colega Rosário Coelho ofereceu ao Sarau.]

segunda-feira, 26 de março de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (129)

O chico-espertismo diplomado

A crónica que o leitor generosamente lê, hoje, foi esboçada há uma semana, na sequência do justo escândalo à volta do currículo académico de Feliciano Barreiras Duarte. Entretanto, o senhor demitiu-se, só para aborrecer o cronista. 
Para os que, por sorte ou falta de paciência, não acompanham a política nacional, vale a pena recordar que Barreiras Duarte é um destacado militante do PSD, recentemente escolhido para secretário-geral pelo novo presidente, Rui Rio. Para além da carreira política (que inclui o lugar de deputado à Assembleia da República), protagonizou um curioso percurso académico: 1 - obteve a licenciatura em Direito, com a média de 11 valores, após nove anos de matrículas; 2 - quis cursar um doutoramento antes de ser mestre, e lá conseguiu, com base no seu currículo político-profissional, uma abstrusa equivalência a mestrado, pressuposto para a sua admissão ao doutoramento. Li que o facto de ter sido, segundo reportava no CV, “visiting scholar” numa universidade americana foi determinante para a obtenção desta benesse académica. É aqui que “a porca torce o rabo” em matéria de decência ética e até de legalidade: o beneficiário nunca foi “visting scholar” na tal universidade, embora tenha abusivamente acrescentado esse dado às suas, digamos assim, habilitações. 
Resultado deste episódio trágico-cómico (que lembra outros recentes, como a licenciatura domingueira de um ex-chefe de governo, ou o jackpot de equivalências de um ex-ministro): Rui Rio começou torto a sua liderança laranja e, por dolorosos dias, deve ter suspirado pelo rebate de consciência do seu eleito, seguido da higiénica demissão – e talvez (digo eu) de um honesto pedido de desculpas de Barreiras Duarte. 
Questão: o que leva um homem maduro a meter-se em tamanho imbróglio? É demasiado fácil, creio, a mui paternalista e fleumática explicação de que tudo resultará de falta de inteligência e de escrúpulos, ou de permissividade (senão de coisa mais grave) das instituições universitárias hodiernas. 
Sem prejuízo de motivos mais conspícuos para este chico-espertismo, ouso acrescentar duas razões relevantes, que aliás vão muito para além do caso glosado: 
a) os chico-espertos da vida preterem intimamente o mérito académico (i.e., o saber e os conhecimentos resultantes do estudo) em favor do status, por acreditarem que os títulos universitários são apenas instrumentais passaportes para o reconhecimento social e para a carreira(zinha) profissional e política;
b) os chico-espertos estão convencidos de que “o crime compensa”, pois quem chega aos patamares superiores do poder estará, depois, longe da fiscalização pública e, por essa via, ganhará uma espécie de imunidade sagrada. 
Terríveis erros: 
a) nenhum título académico esconderá a ignorância dos ignorantes licenciados, pós-graduados, mestres ou doutores; 
b) quanto mais alto um indivíduo está na hierarquia do poder, maior visibilidade adquire, logo mais susceptível se torna de análise e crítica dos outros, seja na modalidade de reconhecimento de mérito (se o houver), seja na denúncia de defeitos (como tem acontecido neste caso, com o riso e o desprezo habituais do jovial zé-povinho). 
Já agora: tudo quanto vos digo é mais fácil de entender para quem ainda souber o que significa, de facto, ter vergonha na cara. 

Coimbra, 19 de Março de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 22-03-2018. A imagem (com a imorredoira Mafalda, de Quino) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.grupoconstruçaocoletiva.blogspot.pt.]

segunda-feira, 19 de março de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (128)



A arte de bem conversar 

Assisti, há dias, a uma extraordinária entrevista televisiva no Canal Q, conduzida pelo competentíssimo Aurélio Gomes. O entrevistado, um arqueólogo de – talvez – sessenta e muitos anos (ou mais), com um currículo extenso e variado na resistência ao fascismo, revisitou a sua biografia de forma ora divertida, ora dramática. Cada pergunta era, em regra, motivo para considerações e relatos cheios de vida e de graça. O principal mérito do entrevistador, ali, foi dar tempo ao entrevistado para discorrer sobre as suas memórias, as suas ideias, as suas emoções. 
Ocorrem-me, em contraponto, algumas máquinas-de-falatório que pululam pela pantalha generalista. Gente que vê o entrevistado como mera peça acessória do ofício entrevistador. Gente que quer brilhar, sem paciência para ouvir a profundidade de cada resposta. Sim, há um certo estilo esganiçado que assassina as entrevistas. Já testemunhei demasiadas vezes este tipo de crime, senhores: um entrevistado avisa, para nossa felicidade espectadora, que vai contar uma história; a jornalista, a rebentar de ego incontinente, não admite desvios e, atropelando a história que aí vinha, atira-lhe: “Mas o que é que vai mudar agora na sua carreira?” [Nota: nos cursos de jornalismo, deveria explicar-se aos futuros entrevistadores que, quando alguém vai contar uma história, dá-se-lhe tempo para o exercício narrativo.] 
Por razões de espaço e, já agora, de higiene retórica, omito nomes exemplares desta pulsão narcísica, inimigo(a)s recorrentes de conversas, capazes de reduzir à vulgaridade os verdadeiros tesouros que lhes chegam às mãos. Mas há duas figuras que gratamente elejo como modelos da conversação competente e invariavelmente interessante: Armando Baptista-Bastos (jornalista e escritor, recentemente falecido) e Júlio Isidro (decano da rádio e da televisão, ainda no activo). Lembro-me de Baptista-Bastos a entrevistar, na SIC, um português septuagenário que tivera de sair de Portugal por motivos políticos e vivera em França, durante décadas, até chegar o 25 de Abril de 1974. O entrevistado, ao recordar-reviver alguns episódios, chorava. Que fez Baptista-Bastos? Respeitou-lhe o tempo do pranto, dos suspiros, do próprio exercício da memória. Pontualmente, intervinha a propósito e com delicadeza. Resultado: uma entrevista inesquecível. 
Júlio Isidro mantém, na RTP Memória, um espaço de entrevista, normalmente dedicado a nomes mais antigos da música, do teatro, da rádio e da televisão. Bem preparado, culto, sensato, delicado, Júlio Isidro dá o palco aos entrevistados – e estes, sentindo-se confortáveis (em casa), vencem qualquer timidez ou medo de falar: são genuínos, espontâneos, sinceros, humanamente interessantes. Para o espectador, não tenho dúvidas, é um regalo. 
Saltemos, ó Leitor, deste domínio técnico-profissional (a entrevista) para a nossa vidinha de todos os dias. Quantas conversas se perdem por não se dar ao outro tempo de falar? Quanta novidade se deixa de receber por falta de paciência (ou humildade)? Sabei que, ao telefone comigo, a minha velha Mãe tende a interromper-se, a suspender a fala, ou porque se esquece do que dizia, ou porque há nomes-datas que tardam a chegar-lhe ao discurso. Eu aprendi a deixá-la respirar, sem pressas egoístas e contraproducentes. Depois, ouço-a gritar: “Ah! Já me lembro!... Ainda estás aí?”
Estou, Mãe. Estou a ouvi-la. É essa também a obrigação de quem conversa, não é? 

Vila Real, 11 de Março de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 15-03-2018. As imagens (Baptista-Bastos entrevistando o Professor Agostinho da Silva e Júlio Isidro entrevistando Madalena Iglésias) foram colhidas, respectivamente, & com a devida vénia, em www.ensina.rtp.pt. e em www.youtube.com.]

segunda-feira, 12 de março de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (127)

Pães nossos de cada dia

Passou no jornal da SIC, a 22 de Fevereiro, uma reportagem bem interessante. Em traços muito resumidos, os espectadores conheceram uma família brasileira ainda jovem (Pai, Mãe, uma Filha), gente culta, de estrato socioeconómico médio-alto, que veio radicar-se em Portugal. O motivo, está-se mesmo a ver, não foi a pobreza ou o desemprego, como acontece na maioria dos casos de emigração. Aliás, aquela Mãe tinha uma empresa bem-sucedida no Brasil, que agora continua a dirigir à distância, via internet. Pergunta: que motivo terá estado, afinal, na decisão (decerto dolorosa) de migrar? Resposta: a segurança.
Assisti a caso semelhante, há dois anos, na escola onde trabalho: já em pleno 3.º período, apareceu-me um novo aluno, de origem brasileira. Os pais sabiam que mês e meio era tempo insuficiente para o filho transitar para o 10.º ano, mas tranquilamente aceitaram a situação: queriam apenas que ele se adaptasse, de modo a, no ano lectivo seguinte, recomeçar o 9.º ano, plenamente integrada na realidade portuguesa. Porque vinham – acrescentaram - para ficar muito tempo, talvez para sempre. Motivo da vinda: a segurança da família.
Agora, um ponto de ordem: esta crónica não é sobre o Brasil. Creio que há várias e distintas realidades nesse país (ou, dito de outro modo, em todos os lados há Brasis de insegurança, incluindo em Portugal). O que aqui vos trago para reflexão é o valor da paz e da ordem, no contexto da ideia de felicidade humana.
Conhecemos casos de migrantes que procuram um lugar onde seja possível sobreviver no sentido mais básico de todos, i.e., de ganhar o pão de cada dia. E casos de migrantes que fogem de ditaduras, de racismo, de intolerância religiosa, i.e., que buscam um espaço de democracia, de tolerância e de liberdade. Nos últimos tempos, há também quem simplesmente aspire a um espaço onde seja possível ter os filhos na escola (pública ou privada) sem o risco de roubos-raptos-agressões-morte. Um espaço onde seja possível parar no semáforo vermelho sem que, de súbito, surja o assassino que para sempre enlutará a família. Um espaço onde seja possível levar a descendência à praia e regressar a casa, com todos vivos, para o almoço de Sábado.
É verdade que a emigração continua a significar, maioritariamente, um caminho para o pão. Mas a natureza do pão varia. Há, em síntese, o pão-comida (pão-pão), o pão-democracia e liberdade e o pão-segurança. Nenhum destes pães é individualmente bastante para vivermos felizes.
Eu abomino os clichês que fazem a apologia da resignação e da passividade, sobretudo pela via da relativização dos nossos males (“Conforma-te”; “Há quem tenha menos”; etc.). Queixarmo-nos faz parte da nossa condição e da nossa dignidade, ponto final. O meu ponto é outro, quiçá ingénuo: orgulho-me de viver num País que tem, hoje, para oferecer aos nativos e aos imigrantes, esse oxigénio vital da democracia, da liberdade, da tolerância e da razoável segurança. Não é mau.

Coimbra, 02 de Março de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 07-03-2018. A imagem (exemplo do melhorque háem Portugal) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.coimbraportugalguide.com]

segunda-feira, 5 de março de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (126)


Diário de bordo 

À semelhança do que sucede com alguns milhões de indivíduos, costumo andar pelos cafés-consultórios-reuniões-jardins desta vida com um caderno em que aponto entidades-referências-valores-prazos das contas a pagar, datas de aniversário, tarefas a cumprir (na escola e em casa), versos, historietas, nomes e contactos telefónicos, ideias para crónicas. Chamo a estes cadernos, com escusada pompa, “diários de bordo”, apondo sempre às respectivas capas a data em que neles começo a escrever. 
Estreei o mais recente com três apontamentos, quase todos barro para qualquer que fosse a olaria textual escolhida. Desaguarão, para já, nesta crónica. 
1. Desafiei os meus alunos do oitavo ano de escolaridade a analisar um belíssimo texto de José Gomes Ferreira, intitulado “Sou uma nuvem” (in O mundo dos outros – histórias e vagabundagens). A maioria dos jovens leitores percebeu logo o horror ali glosado – o de, pressionados pela necessidade de aceitação social, podermos alienar de nós próprios o que verdadeiramente somos. Isto é, de trocarmos a liberdade pelo comodismo. Isto é, a nossa voz individual pelo balido indistinto da multidão. Mas houve quem, na turma, reclamasse o direito a, no quotidiano feroz da escola e da vida em geral, uma pessoa se acomodar, sim, e corresponder à vontade dos outros (ainda que sacrificando a pessoal independência): uma menina, de olhar frágil e assustado, murmurou que “assim, sofremos menos e não chateamos os outros.” 
2. Tenho um cunhado (mais um) numa paliativa cama de hospital, à espera de partir para aquele lugar sem tempo que é (será) o de todos. A iminência inevitável convoca já, neste presente oncológico, súbitas e frequentes lágrimas, que hão-de continuar e crescer num futuro demasiado próximo. A espera tem enchido os meus dias familiares de mortalidade e de desespero, mas entretanto almoçamos, jantamos, trabalhamos, cumprimos horários, e vamos de manhã à janela ver o tempo que faz para escolher a roupa adequada.
3. Numa gaveta da mesinha-de-cabeceira, enquanto procurava comprimidos para a dor de cabeça, encontrei duas chaves não sei de que portas ou armários, portanto inúteis como o volante de um carro sem motor nem rodas. Encontrei também o coto de uma vela azul, resto obsoleto de alguma iluminação salvadora que me terá valido em ocasião passada. A minha mulher perguntou-me: “Encontraste os comprimidos?” Respondi-lhe: “Não. Encontrei duas metáforas tristes.” 

Vila Real, 25 de Fevereiro de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, na net.]