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Número de Ondas

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O Papão


Isto do "comportamento dos mercados" é, antes de mais, uma interessante metáfora. No ensino básico, diz-se que se trata de uma personificação. Talvez valha a pena olhar para a biografia semiótica desta realidade abstracta devinda ser em acção.
Um conjunto de barrigudos cínicos reúne-se com um conjunto de engravatados linfáticos e combina preços, margens de lucro, negócios. Começam por negociar com indivíduos, empresas, organizações, bancos. Depois, estendem os tentáculos a governos.
Nesta última fase, já não se fala do "Senhor A" (accionista maioritário de um Banco importante), ou do "Senhor B" (chairman de um Grupo Económico famoso), ou do "Senhor C" (consultor de uma agência financeira às ordens de certo barrigudo cínico e de certo engravatado linfático). Fala-se de "Mercado". De "Mercados".
A opção estratégica pela ABSTRACÇÃO (distinta de gente concreta como o JUDEU ou o ONZENEIRO do Auto da Barca do Inferno) permite que barrigudos e linfáticos exploradores escapem ao ódio e ao vitupério dos explorados.
Mas a evolução simbólica do conceito não fica por aqui. Segue-se ainda a construção (de cariz mítico-místico) de uma nova personalidade: o MERCADO TODO-PODEROSO. Trata-se de um produto deveniente da abstracção de que atrás falávamos, agora materializado nesta figura de bicho-papão terrível, monstro omnipotente e omnipresente, cujos caprichos são ordens e cujas razões não admitem, sequer, discussão. E é essa nova personalidade que legitima expressões como a que recordamos no início desta croniqueta. Como narrando uma fábula, os jornais referem -sem propósitos humorísticos - "o comportamento dos mercados."
Esta metamorfose semiótica não põe em perigo o bem-estar e a impunidade dos barrigudos e dos engravatados do início da história. Mesmo que nos sintamos agredidos pelos mercados, a verdade é que a culpa nunca se afigura de alguém em concreto...
Não vos admireis, pois, se em resposta aos vossos protestos pelas medidas recessivas e depressivas, os políticos vos dizem: "É o Mercado, esse monstro." Ou: "São os Mercados, esses monstros."
Aqui entre nós: os monstros são invenções de uma minoria para que a maioria não se revolte.

PS: E, já agora, o Mercado é PAPÃO porque PAPA muito, muito, muito.

Coimbra, 27 de Dezembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Verdade explosiva para dizer no Natal


Jesus Cristo, como a dinamite, foi uma bela invenção dos homens.
O problema está em os homens lhe darem, como fizeram com a ideia de Nobel, um uso indevido.

Arco de Baúlhe, 22 de Dezembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Outramo-nos, como dizia o Fernando António


Ai a cárie dos dias
Vai minando o Paraíso:
O outro eu que tu vias
Foge de nós, sem aviso.

Ribeira de Pena, 19 de Dezembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC]

domingo, 12 de dezembro de 2010

Conversas com Saramago


Li, numa pequena esplanada do Fórum Dolce Vita, Conversas com Saramago, de José Carlos Vasconcelos.
O livrinho é constituído por seis entrevistas concedidas pelo Nobel ao Jornal de Letras (em 1989, em 1991 e em 2006) e à Visão (em 2003, em 2004 e em 2005).
Não sendo propriamente um manancial de novidades ou surpresas, trata-se ainda assim de um conjunto de conversas interessantíssimas, dignas de atenção, entre duas pessoas muito inteligentes.
Retive, entre tantas frases dignas de nota, uma ideia de Saramago sobre a importância de, após a sua morte, se proceder a uma edição de cartas que leitores (de variadas origens e de variada condição académico-cultural) lhe foram enviando ao longo dos anos.
Igualmente me ficou, na memória leitora, uma formosa reflexão do escritor sobre a vida e a morte. Na página 113, lemos: «E, no fim, tudo volta ao princípio. Não lhe quero chamar o eterno retorno, não é isso, é estarmos metidos num beco sem saída, não haver saída para a vida a não ser a morte. A única resposta que temos para dar é o amor.»
Entretanto, chegaram as três meninas por quem habitualmente espero nos centros comerciais: a MP, a VL, a Mãe. Saramago e eu sorrimos, então, juntos e cúmplices.

Coimbra, 12 de Dezembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

Sermão para Enforcado


O socialista (?) Daniel Bessa disse, da sua cátedra, que o Estado social está a matar a Economia. A questão, já glosada por dignos comentadores e cartoonistas, poderia ser vista ao contrário: a Economia está a matar o Estado social.
Deixai-me desabafar.
Ando farto de políticos do centrão e de especialistas em défices, dívida pública, equilíbrio orçamental, juros, etc.
De cada vez que ouço um destes experts (ou chico-experts) a perorar sobre economia e finanças atribuindo, invariavelmente, a culpa da crise aos tristes que mal sobrevivem (com salários ou subsídios mínimos, sem mordomias), apetece-me perguntar-lhes:
Quanto ganhou você no ano passado?
Quanto lhe pagam por mês no(s) seu(s) emprego(s)?
De quantas reformas beneficia? (Em quanto importa cada reforma? Durante quanto tempo trabalhou para aceder a cada reforma?)
Quanto ganha em "despesas de deslocação"? E em "despesas de representação"? E em "despesas de residência"?
Quanto lhe paga(ra)m em - digamos - "subsídios de reintegração"?
Quanto costuma ganhar em bónus ou prémios?
O Enforcado vicentino (do Auto da Barca do Inferno) ensinou-nos que se percebe mal o sermão dos poderosos quando se tem o baraço ao pescoço...

Coimbra, 11 de Dezembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http:anove.wikispaces.com.]

Mercado versus Sem-Abrigo


Falando, na televisão, do mercado de arrendamento, o primeiro-ministro de Portugal disse que o governo iria agilizar os processos de despejo de inquilinos com rendas em atraso.
Esta medida - garantiu - melhorará o mercado de arrendamento.
Contentinho da silva, aquele improvável socialista nada disse sobre o destino dos que, por incumprimento das suas obrigações com o mercado, seriam tão celeremente despejados.
A criatura tem na boca, na cabeça, nos tiques - a luzir como árvore de natal num salão de bombeiros - uma só palavra e um só conceito (no singular ou no plural): mercado, mercados; mercado, mercados; mercado, mercados.
E o povo, pá?
E a humanidade, pá?

Coimbra, 11 de Dezembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

Linguagem demasiado polida


Leio no Correio da Manhã de 10-12-2010 (página 51): "CRIANÇA INGLESA [VÍTIMA DE BULLYING] SUCIDA-SE". Leio mais: «Bradley Wiseman, um menino britânico de 12 anos, aluno da escola de Edington, no Yorkshire, enforcou-se depois de ter sido ridicularizado e perseguido por colegas que não lhe perdoavam a linguagem "demasiado educada".»
É da natureza humana reagir à excelência com admiração pacóvia ou, em alternativa, repugnância e ódio.
A diferenta assusta a multidão (na infância, na adolescência, no mundo adulto). E é pior quando a diferença se torna uma evidência da mediocridade dos medíocres: a besta humana assusta-se e, com a força - bruta e avassaladora - do músculo e das maiorias, esmaga os bons. Esmaga os melhores. Objectivo dos agressores: que se perceba menos a porcaria que são.

Coimbra, 11 de Dezembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

sábado, 11 de dezembro de 2010

O que fica


Tão célere se some a Graça
Tão pouco fica de Agora
Tão magra se faz a Hora
De tão triste, porque passa.

Viagem entre Vila Real e Coimbra, 10 de Dezembro de 2010.
[A MP anotou o poema que, sem licença, viajou connosco.]
Joaquim Jorge Carvalho

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

What if...


E se isto tudo – Minho, Trás-os-Montes, Coimbra, Portugal, o planeta Terra, o universo – fosse apenas um centro comercial de dimensão razoável boiando no universo?
E se a Terra não fosse senão um hipermercado para deuses remediados e o Senhor Tempo (ou Cronos) não fosse senão uma espécie de Belmiro de Azevedo globalizado no bom sentido?
E se nós, homens e mulheres, animais, plantas, rios, mares, não fôssemos senão produtos de marca branca com o rótulo de “bens perecíveis”?
Por se aproximar a data limite da validade, eu já devo estar em promoção, com desconto mui generoso. É comprar agora ou nunca, porque depois azedo, estrago-me. A menina Afrodite não viu a publicidade, não?

Ribeira de Pena, 09 de Dezembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Imagine


John Lennon foi assassinado há 30 anos.
Celebramo-lo e choramo-lo, pois.
Celebramo-lo lembrando a obra e escutando eternamente os mais belos temas do pop-rock, quer os que compôs no aconchego dos Beatles, quer os que Yokofez depois.
E choramo-lo, também, residentes nessa ferida que é imaginar quanta beleza nos roubou o assassino de Lennon (sei o nome desse porco, mas não o escrevo). Imaginemos, por um instante, que a melhor canção de sempre estava para ser escrita ainda...
Choro Lennon no "Muito Mar".
Celebro-o na minha fiel Primera, curtindo um cd antigo, em viagem para Vila Real. "Imagine all the people", etc.

Ribeira de Pena, 08 de Dezembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Mãos


Uma mão só é um lugar vazio se nela o gesto de buscar outra mão é adiado ou ausente. Dá-se e recebe-se com as mãos. A própria mão que escreve é o corpo visível de um gesto. E a literatura que vale a pena dá-se e recebe-se como um alimento ou um aconchego. Com as mãos da inteligência. Com as mãos do coração.

Arco de Baúlhe, 19 de Novembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

Dara Perdida


A Dara viveu com a minha família durante cerca de 13 anos. Partilhou connosco os rigores invernosos de Ribeira de Pena, o majestoso areal da Figueira da Foz, os parêntesis com relva da minha Coimbra asfaltada, o enjoo das viagens entre Trás-os-Montes e a Rua Dr. Manuel Almeida e Sousa, a minha voz resmungando-ralhando, a Vaninha nos meus braços como bela adormecida, a lareira dos Dezembros crepitantes, o azulejo fresco da casa coimbrã, as gargalhadas, os silêncios. A Dara foi parte da minha família.
Morreu em 2008, após longo sofrimento que nos matou, também, a todos vendo-a morrer.
Às vezes, revemo-la sorrindo, numa fotografia, com aquele sempiterno ar de adolescente desvairada e ternurenta. É então que Dara significa, em nós, o que outras perdas preciosas significam: saudade.
A saudade é, portanto, uma cadela. É bonita. Apetece afagá-la. Lambe-nos. Ladra-nos. Uiva.

Arco de Baúlhe, 03/12/2010.
Joaquim Jorge Carvalho

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Never more


O meu pai apareceu-me, uma vez mais, num sonho. De manhã, além do frio, senti nos ossos a sua falta. Como o corvo de Edar Allan Pöe, cada pedaço do meu mundo grasna a ausência das suas mãos, da sua voz, do seu cheiro, do seu discurso, da sua graça: Never more. Nunca mais.
Houve muitas vezes em que, de menino a homem, estive com meu pai.
Mas houve sobretudo, também, tantas vezes em que não estivemos juntos. Tantas.
Agora?
Never more, merda.
Nunca mais.

Arco de Baúlhe, 30-11-2010.
[Para o Daniel, cujo pai habita o mesmo Planeta Dor.]
Joaquim Jorge Carvalho

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Xadrez da Inteligência


A Escola Básica do Arco de Baúlhe vai ter xadrez na Biblioteca.
Lembro: já houvera, antes, na Escola, um Clube dedicado a esta ginástica intelectual; agora, será uma das actividades disponibilizadas na Biblioteca.
Promovida pela bibliotecária, a colega Rosário Mendes, aos professores colaboradores da Biblioteca foi oferecida uma sessão de esclarecimento sobre o xadrez. Compreenda-se o objectivo: se os docentes estão ao serviço, em certas ocasiões, da nossa Biblioteca, natural será que dominem, entre outras competências, alguns segredos da arte xadrezística.
O professor Paulo Pinto - generoso visitante deste meu blogue - conduziu, com clareza e brilho previsíveis, a sessão. Eu, que já sabia um bocadinho do assunto, aprendi muito!
No devir da sessão, dou por mim a reflectir: não se ganharia também em que, como noutros países, se tornasse obrigatória a prática do xadrez, pelos nossos alunos, nas escolas do 1.º ciclo (e nas seguintes)?
Estou a pensar em benefícios óbvios, amigos: hábitos de concentração, desenvolvimento do raciocínio, reforço do sentido de perseverança, etc.
Pertinente, n'est-ce pas?

Ribeira de Pena, 25 de Novembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

Alegre


O problema de Manuel Alegre é sobretudo ter apoios partidários declarados. O Bloco de Esquerda acantona-o numa lógica de "enfant terrible" libertário mas não presidenciável. O PS de Sócrates tinge-o de neoliberalismo envergonhado e pessoalmente indecente.
Eu creio que foi sobretudo Sócrates que, apoiando publicamente Alegre, o condenou à probabilíssima derrota nas presidenciais.
De modo que Cavaco, quase de certeza, (re)triunfará.
Mas num país onde morreram o livre pensamento e a revolta, convenhamos, que escolha mais indicada para o poder maior do que uma respeitável múmia política?

PS: Tenho ouvido e lido referências venenosas a um putativo passado de desertor que impenderia, como mácula eleitoralmente conveniente, sobre Alegre. É tão ridículo, injusto e estúpido falar nesses termos como, por exemplo, chamar anti-patriotas aos alemães que voluntariamente se recusaram a colaborar com Hitler na 2.ª Grande Guerra.

Ribeira de Pena, 25 de Novembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Calendário Mental


I
Papéis, papéis, papéis, papéis, papéis.
Aulas.
Reuniões, reuniões, reuniões, reuniões, reuniões.
Casa.
Papéis, papéis, papéis, papéis, papéis.
Aulas.
Reuniões, reuniões, reuniões, reuniões, reuniões.
Casa.
Papéis, papéis, papéis, papéis, papéis.
Tudo tanta coisa. Tudo tão rotina & burocracia. Tudo tão quase nada.
Do que eu gostava mesmo, Mãezinha, era de ser professor.

II
Einstein sobre o infinito (cito de cor):
«Só há duas coisas verdadeiramente infinitas: o Universo e a Estupidez Humana. E sobre o Universo não tenho a certeza.»

III
Se toda a mediocridade fosse, antes, uma praia matutina, com o cheiro à maresia da Novidade verdadeira!

Ribeira de Pena, 10 de Novembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.topazio1950.blog.sapo.pt.]

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Sonho por Bernardo Soares


Eu tinha um sonho que ninguém via:
Era meu só; dizê-lo era perdê-lo
Porque a única razão, sabei!, de tê-lo
Era mais ninguém saber do que eu sabia.

Não se diz eu sei um sonho como quem
Diz eu sei um ninho que é só meu
(Mas era assim tesouro a que ninguém
Dava o valor do ouro que era o seu).

Agora, por ser velho, já perdi
O medo de o dizer, o revelar –
Trouxe o Tempo a luz e percebi
Que um sonho é um ninho por contar

E que morria o sonho desse medo
De eu dizer ao mundo o meu sonhar.
Ora, é pior a perda do segredo
Que o sonho ter morrido sem voar.

O sonho é mais, direi, que meu.
Por isso o solto, o grito, ai, no ar
Que este sonho-ninho só nasceu
Para eu próprio voar.

Ribeira de Pena, 09 de Novembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em www.http://louletania.com.]

Wild Life


Sempre gostei de documentários televisivos sobre a vida selvagem. Graças sobretudo à BBC, sei hoje muito mais do que, em teoria, deveria saber sobre os hábitos reprodutivos dos pinguins, as diferentes formas de veneno que há nas serpentes, ou as dificuldades de sobrevivência do urso polar.
Aprendemos, com esses vívidos relatos, que na selva vinga a lei do mais forte. Não raramente, esqueço-me de accionar o botão da piedade e dou por mim entusiasmado com a agilidade e eficácia da caçada dos leões, justamente premiados com a carne fresca de gazelas jovens. Nunca há ali questões de moral ou ética. É assim porque tem de ser assim.
Já todos vimos como os animais, em sua bestialidade sobrevivente, exploram sempre que podem a fraqueza dos outros. Um ser ferido, ali, tem normalmente a sua (má) sorte traçada – e é ele, entre todas as vítimas possíveis, a mais provável morte a haver. É assim. É a selva.
No mundo dos homens, não é assim.
Não?
Sabe-se que “os Mercados”, assim que lhes cheirou a sangue (i.e., a falência económico-financeira), apertaram com a Grécia e a Irlanda e, agora, apertam com Portugal.
Num mundo diferente da selva, os países em maiores dificuldades teriam maior tolerância dos mais fortes (em matéria de juros, por exemplo, no presente contexto).
Num mundo onde vigore a lei da selva, quanto maiores forem as dificuldades dos países, mais exigente e cruel é o tratamento dos banqueiros nacionais e internacionais.
Sucede que os países são constituídos, antes de mais, por pessoas. São elas que sofrem. Os pançudos nacionais e internacionais não querem saber disso porque não. Porque é assim. Porque é a selva.
Gil Vicente falou, com propriedade, dos onzeneiros infernais. Zeca Afonso falava dos vampiros que não deixam nada.
Senhores, escutai: o capitalismo (este capitalismo) não deveria ser o fim da História.

Ribeira de Pena, 08 de Novembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em www.fotosearch.com.]

domingo, 7 de novembro de 2010

Liberalismo(s)


Pessoa amiga deu-me a ler um livrinho precioso intitulado Alguém Diz Tu - Quatro Conversas com Óscar Lopes (Porto, Ed. Campo das Letras, 2000). Trata-se de um conjunto de entrevistas ao insigne intelectual (co-autor da monumental História da Literatura Portuguesa, da Porto Editora) conduzidas por Manuela Espírito Santo, José Viale Moutinho e Francisco Duarte Mangas.
O livrinho tem apenas 81 páginas (incluindo-se já, neste limite, um prefácio do galego Méndez Ferrín). Mas soube-me muito bem. É uma espécie de oxigénio isto de privarmos com um grande nome dos estudos literários, beneficiando tão intimamente da sua inteligência e lucidez.
Para além de revisitarmos, pelo seu discurso, grandes nomes da escrita, curiosas memórias, peripécias singulares e temas reactuais como o (des)Acordo Ortográfico, há ainda a possibilidade de gratamente nos reencontrarmos, à esquina de um parágrafo, com o livre pensamento livre.
É o caso da opinião que Óscar Lopes corajosamente avança, muito ao arrepio da moda dos opinion makers do nosso medíocre presente, sobre o chamado "liberalismo" ou "neoliberalismo" (pp. 17-18):
«De um modo geral, eu mantive sempre o culto das liberdades individuais, portanto é sobretudo o liberalismo económico que me choca. Há um autor português que exerceu muita influência em mim, na minha geração. Trata-se António Sérgio, que fazia essa distinção muito clara entre o liberalismo económico, que é a concorrência, a caça ao lucro, e o liberalismo político, que é a defesa das liberdades essenciais. Estas duas coisas acho que são coisas diferentes. É muito importante a consolidação e até o desenvolvimento do liberalismo político, mas não acredito no liberalismo económico - por isso sou socialista.»
Assim não pensam, de certeza, os Sócrates, Passos Coelhos e quejandos espíritos da nossa praça - tão veneradores que são dos míticos "Mercados".
Também eu vou, aqui, pelo António Sérgio, embora não me atreva a achar-me, como Óscar Lopes, socialista. Lamento, mas dou-me irremediavelmente mal com rótulos.

Ribeira de Pena, 07 de Novembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

Sono, Sonho


A perturbação do sono tem a ver com a idade, diz-se.
Não me custa percebê-lo, não me custa aceitá-lo.
Mas a perturbação do sonho? Tem a ver com quê? Diz-se: com a morte da ingenuidade; com a morte da esperança.
Não me custa percebê-lo. Custa-me aceitá-lo.

Vila Real, 06 de Novembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC/2010]

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O segredo da escrita


Estrangeiro do presente, sigo pela estrada
No avesso da infância, cansado de viver.
No devir de tudo, conheci o nada
Sigo, estrangeiro, a estrada de morrer.

Aprendi bem a arte de desistir
À força de perder sonhos seguidos.
Creio pouco agora no porvir
Por vir de tantos sonhos falecidos.

Esperar já foi emprego dos mais nobres
Mas hoje é uma noite que se adensa -
Afiz-me, assim, à puta indiferença
Que é a aspirina dos mais pobres.

Sou um rei mago cego, desistente
Da estrela-luz, do deus menino.
Devim só este fim inconsequente:
Escrevo, ai, por não haver destino.

Ribeira de Pena, 5 de Novembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem é uma criação de Van Gogh ("Sorrow", 1882).]

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Incontinências


Sabemos o desconforto que há num desarranjo intestinal: a vida parece abandonar-nos, dolorosamente, sobretudo na forma líquida. Estamos sempre quase a desmaiar, que é (deve ser) parecido com estarmos quase a morrer.
Há muito tempo que não sou sujeito a incómodos desses. Mas há outras formas de tortura que lembram as agruras viscerais da digestão desregulada. Falai, por exemplo, com Directores de Turma do século XXI português e sabereis do que falo. Nunca como agora se assistiu a tal incontinência burocrática. Vão-se salvando da loucura alguns mais resistentes e outros que, lá no íntimo, talvez até apreciem esta fúria legisladora e regulamentar por nunca terem gostado desse pormenor, cada vez mais secundário, de dar aulas.
O professor burocrata vive de grelhas, de estatísticas, de "listagens", de estratégias, de competências essenciais & transversais, de níveis de desempenho, de metas, de critérios e percentagens, de projectos disto & daquilo. Interrogo-me: que tempo lhes resta para a leitura de um artigo de jornal ou de um livro? Que tempo lhes sobra para se tornarem pessoas mais interessantes? Que tempo lhes fica para se cultivarem e oferecerem aos seus alunos a novidade?
É proibido falar de cansaço. "Quem se cansar dá a classificação a outro" (poderia dizer o senhor Miguel Sousa Tavares, conhecido Catão e espécie de escritor de grande sucesso). O sistema, hoje, tende a castigar os renitentes, os tais saudosos do tempo em que a principal ocupação era trabalhar com os alunos.

Senhor, quando se arranjará remédio para este desarranjo?

Ribeira de Pena, 04 de Novembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

Eles sabem o que fazem


O Daniel Abrunheiro é o melhor escritor português vivo. Já o disse. Repito-o enquanto não morrermos (eu ou ele).
É sobretudo um Poeta. Mas escreve (irremediavelmente bem) noutros territórios. Isto inclui a crónica.
Soube agora que o Daniel foi censurado por um jornal ribatejano por - alegadamente - se atrever a opinar sem apresentar "factos".
O único facto que se percebe nesta história fedorenta é que o país anda a morrer à míngua de higiene e de vergonha. O país todo. Na televisão, o espectáculo resume-se ao parlamento; mas a falta de cerviz não é exclusiva dos anões mediáticos: anda pela província, passeia-se por repartições modestas, esgueira-se por redacções da terrinha, diz adeus ao fiscal autárquico e olá ao senhor industrial das obras públicas.
Pouca gente ainda conhece o Daniel, o que é uma desgraça nacional. Mas lanço um desafio a quem me ler por aqui: imaginai que o Manuel António Pina via barrado um texto no canto superior do JN. Pois o que sucedeu é isso - com esta a diferença: o Daniel tem menos dinheiro e conhecidos que o (também) grande escritor-cronista do dito diário.

Ribeira de Pena, 04 de Novembro de2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Nota: é muito importante continuar a visitar o blogue do Daniel. Ao fundo desta página, ofereço-vos o precioso link. Seguir http://www.canildodaniel.blogspot.com.]

A vulgaridade interrompida


Em Pamplona, Espanha, comemorou-se o Dia Europeu da Ópera com um maravilhoso concerto não anunciado, a cargo de grandes vozes interpretando sucessos musicais, no improbabilíssimo contexto de um bar espanhol (muito semelhante ao Café Santa Cruz da natal Coimbrinha).
Naquele pic-nic de burguesas e burgueses, portanto, houve uma coisa simplesmente bela: a Música irrompeu pela tarde e iluminou bebedores anónimos de vinho ou café, comedores monótonos de tostas mistas, fumadores fugazes de tabaco barato, gente cumprindo a tarde funcionária de uma Primavera qualquer. Visto isso daqui, eu estava lá.
A Beleza interrompeu a rasteira existência de circunstantes habituados a nada.
Isto é, a Beleza interrompeu o Nada. Isto é, Tudo substituiu, por minutos, o Nada.
No final, sobre os aplausos comovidos (decerto gratos) dos beneficiários, alguns dos cantores levantaram cartazes celebrando a Ópera. Um deles dizia singelamente: "Vês como gostas?"
Eu tenho no meu coração, também, um cartaz assim, sempre pronto para mostrar aos meus alunos, aos meus amigos, à minha Mãe. Às vezes, no exacto instante do fulgor de um poema, de uma história, de uma música, de um filme, de uma visão cheia de céu, saco do meu cartaz em forma de palavras ditas, ou então de sorrisos, ou então de silêncios, e digo-lhes: É ou não é bonito?
Atentai, distraídos: a vida só vale a pena porque de vez em quando é visitada pela Beleza. Acontece aliás que, em tais momentos, Ela - a vida - se torna maior. E que, em vez de apenas estarmos, somos.

Ribeira de Pena, 3 de Novembro de 2010 (após ler E-mail precioso do Daniel remetendo para o Youtube).
Joaquim Jorge Carvalho

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

In Memoriam Arménio



O meu colega Rovira, que jogou comigo no União de Coimbra há 18 anos, disse-me tristemente:
- Morreu o Arménio.
O Arménio era guarda-redes. Pouco alto para a função, com um ar rural mais do género Bento que do género Damas, tornava-se um gigante e um acrobata corajoso durante a hora e meia da função futebolística.
Era gago e brincava, sem complexos, com isso. Era simples e generoso. Era um homem com a franqueza e a grandeza genuína do campo português.
Gostaria de ter estado no seu funeral.
Joguei com ele no Luso, quando subimos, sob a batuta do mister Filipe, à 2.ª divisão nacional. Reencontrei-o no União, às ordens do mister Niza. Em qualquer dos lugares e em qualquer dos tempos, o Arménio era aquela enorme competência a defender as balizas e, simultaneamente, uma das gargalhadas mais puras de toda a nação futebolística que conheci.
A morte do Arménio é mais uma numa época que começa a ser, na minha vida, uma espécie de Outono final de tudo. Na minha rua, uma língua de alcatrão está onde eram duas árvores à entrada da Escola do Casal Ferrão. As fotografias dos meus álbuns são maioritariamente de gente que já partiu. O calendário tem apodrecido muitas coisas belas que há não muitos anos eram a formosura maior do mundo. O União de Coimbra já não tem futebol sénior. Para cúmulo, a minha filha cresceu e estamos, em minha casa, muito mais sós. A Coimbra que eu queria está, agora, a muito mais dos 260 quilómetros rodoviários. Talvez nunca mais lá chegue, afinal.
O tumor do Arménio e o resto: tudo lapsos de fim. Tudo fim.
Hoje, no regresso a Ribeira de Pena, muito desiludido com a profissão, com a vida, com isto tão pobre que foi feito de mim, aterrou no meu carro uma imagem terrível, digna talvez de piedade ou troça: eu num barco, à proa, olhando em frente; atrás, o meu pai, o meu cunhado José Manuel, o meu sogro, a minha tia Rosário, duas colegas, o Arménio. Ouvia bem os gritos deles, o terrível chamamento deles, mas em frente, pensava eu, é que estava a vida. Não me apetecia nada olhar para trás. Ou, mesmo que apetecesse, temia olhar. Contudo, o cabrão do barco inclinava-se para a ré, puxava-me para a ré, reclamava-me para a ré, tal o peso dos mortos.
O Arménio defendia a baliza das suas equipas como poucos. Estou aqui a recordá-lo forte, sólido, confiante, destemido, prático, eficaz, risonho – mas não me consigo libertar desta imensa pena de não haver defesa para a puta da mortalidade.

Ribeira de Pena, 12 de Outubro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, no blogue dos Veteranos do União de Coimbra.]

domingo, 10 de outubro de 2010

Gabriela Mistral: Impressões de um Encontro


Encontrei inesperadamente, no Centro Comercial “Fórum – Dolce Vita”, uma senhora chilena que poucamente conhecia até hoje. Fui grata vítima do seu encanto, feito de palavras e de visões muito lindas, ainda que muito tristes, sobre a vida e sobre a escrita. A senhora chama-se Gabriela Mistral e recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1945. Foi diplomata ao serviço do seu país e, nas curvas da sua biografia, esteve também em Portugal por algum tempo. Ao receber das mãos do sueco rei Gustavo V o prémio, não deixou de dizer: «Graças a uma felicidade que me transcende, sou neste momento a voz directa dos poetas da minha raça e a indirecta das muito nobres línguas espanhola e portuguesa.»
Gabriela Mistral (nome literário de Lucila Alcayaga Godoy) faleceu oficialmente a10 de Janeiro de 1957. Digo “oficialmente” porque, ao contrário do que atrás refiro, a senhora está viva e falou comigo, seduzindo-me com graça e brilho bem notáveis.
Encontrei-a sob a forma de uma Antologia Poética , na mesa circunstancial de uma mini-feira do Livro, ao irresistível preço de 3 (três) Euros. O livro, com selecção, tradução e apresentação de Fernando Pinto do Amaral (Lisboa, Ed. Teorema, 2002), revisita a – curta – obra da autora e foi para mim, nessa noite de 9 de Outubro, uma espécie de regresso ao Verão.
Dou-vos a saber alguns dos pedaços de encontro que obtive com Mistral.
Nas páginas 13 e 14, a autora explica um pouco da sua arte poética. Para além de defender, desde logo, a importância da memória para um escritor («escrevo no meio de uma emanação de fantasmas» - p. 13) e de a busca da perfeição formal implicar muito e humilde esforço («Corrijo mais do que as pessoas julgam […].», p. 14.), Gabriela Mistral diz-nos que este ofício de escrever não se faz em linha recta: «Vim de um labirinto de colinas e alguma coisa desse nó fica em tudo o que faço, seja verso, seja prosa.» (p. 14.) Que a escrita responde a uma necessidade sobrevivência (de quem escreve e de quem lê), consubstanciada na urgência de um território amigável, uma pátria essencial onde se possa verdadeiramente estar: «Escrever […] É a sensação de ter estado por umas horas na minha pátria real, no meu costume, no meu desejo à solta, na minha liberdade total». (p. 14.)
Lembra também que escrever é uma forma de dar ordem às coisas, ao mundo: «Gosto de escrever numa sala arranjada, embora seja uma pessoa desarrumada. A ordem parece oferecer-me espaço, e esta ânsia de espaço têm-na a minha vista e a minha alma.» (p. 14.) E que, nessa unidade espaço/tempo que a vida humana é, o próprio passado se pode reunir ao presente, nomeadamente pela recuperação da infância: «A poesia é em mim muito simplesmente um resíduo, um sedimento da minha infância submersa.» (p. 14); «Alguns países eu recordo / como recordo a minha infância.» (“Água”, p. 68.) A própria Natureza recupera entes e circunstâncias de outrora, presentificadas no discurso poético: «A ovelha diz-lhe “Mãe” / e o vento diz-lhe “Amada”.» (“Patagónia”, p. 113). A poesia aporta, afinal, os mil pormenores vistos, aprendidos e sentidos na Infância – e o que fica é, por paradoxal que tal se nos afigure, o contrário da ausência: «o rio dentro do meu sonho.» (“Camponeses”, p. 105.)
Curioso é o facto de a autora defender a condição primacial da linguagem poética, da qual o mundo se vai tragicamente afastando. A Poesia parece ser a voz da Verdade: «Talvez o pecado original seja apenas a nossa queda na expressão racional e anti-rítmica à qual desceu o género humano […].» (p. 14.)
A leitura da poesia mistraliana está, eu vos garanto, cheia de pedras preciosas. Ofereço-vos algumas das que me mais e emocionaram. Exemplos, portanto.
Gabriela Mistral diz-nos (lembra-nos) que o Amor nos obriga a (querer) ser melhores: «Se olhares para mim, eu torno-me formosa». Dito de outra forma: o Amor torna urgente a necessidade de nos (re)avaliamos e de nos tornarmos mais dignos da Beleza que o Amor requer: «Agora que vieste e que me viste / dei por mim pobre e senti-me despida» (“Vergonha”, p. 26.)
Revemos, em boa medida, Garrett num discurso que admite, sem remédio (mas com graça) a coexistência de Céu e Inferno no Amor: «Dá-me Tu o final desta lenha / em fogão que não deixe de arder;» (“Nocturno da Consumação”, p. 61); «Aprendi que um amor é terrível / e me corta o bem cerce o prazer: / já ganhei o amor do vazio, / o seu desejo de nunca voltar, / a vontade de ficar na terra, / mão na mão e mudez com mudez, / despojada do meu próprio Pai, / já ceifada de Jerusalém!» (“Nocturno da Consumação”, p. 60.)
Um pouco semelhantemente ao que defende Saramago em Jangada de Pedra (quando diz de um encontro amoroso tratar-se da fundação de um Indivíduo novo, feito dos dois que se unem), a chilena sugere que um encontro de eus funda um novo Eu, uma espécie de dança una e harmoniosa: «Chamo-te Rosa e eu Esperança; / mas o teu nome esquecerás, / porque seremos uma dança / sobre a colina e nada mais.» (“Dá-me a mão”, p. 33.)
Fundamental, contudo, é que o Amor exista, por grande que seja o preço a pagar em sofrimento(s). O Amor permite-nos a sobrevivência de um motivo para acordarmos e nos levantarmos todos os dias: «Chama-me onde estiveres, ó minha alma, / e anda ter comigo, companheiro.» (“Canto que amavas”, p. 72.)
Sensível e lúcida como um Alberto Caeiro que viajasse para a Patagónia, Gabriela Mistral olha enlevada para uma (bela) criança adormecida. Quer ensinar –lhe, como a um anjo limpo, o ouro de se manter pura: «Quero ver se lhe ensino / o sono que esqueci». (“Sono grande”, p. 37.)
Eu tenho uma filha já com 26 anos e sabe Deus como me dói que ela cresça, me fuja. Manuel Alegre diz que a certa altura uma filha «não cabe já no berço» (Cão Como Nós, cito de cor). Mistral clama: «Não quero que esta menina / se transforme em andorinha.» (“Medo”,p. 38.)
A escrita é pessoal, em primeira instância. Mas é universal por destino. Nasce-se, como ensinou o nosso António Vieira, num lugar definido e concreto. Mas vai-se depois morrer, sublinha Mistral, num «país sem nome». (“País da Ausência”, p. 53.)
É ofício do poeta buscar resposta para a grávida incompletude do mundo visto por dentro. Isso explicará querer-se sempre o que não há, ou o que não é imediato nem óbvio – mas que é sempre o essencial: «Eu amo as coisas que não tive / tal como as outras que não tenho:» (“Coisas”, p. 54); «Procuro um verso que perdi, / e que aos sete anos me disseram. / Uma mulher a fazer pão / e cuja santa boca eu vejo.» (“Coisas”, p. 54); «Torna crianças os sentidos; / procuro um nome e não acerto, / cheiro a atmosfera ainda em busca / de amendoeiras que não vejo.» (“Coisas”, p. 55); «Ou o rio Elqui da minha infância / que ainda subo e atravesso. / Eu nunca o perco; e peito a peito, / como crianças, abraçamo-nos.» (“Coisas”, p. 55.)
É preciso reagir. É preciso actuar. É preciso fazer, criar. È preciso podar (n)a vida: «eu podo-a com um amargo brio / pra lhe dar o aspecto de um meu filho / até que se me torne criatura.» (“Sonetos da Poda – III – Filha da Árvore”, p. 85.)
Num belo poema intitulado “Pão”, Gabriela Mistral lembra-me o narrador de Aparição, de Vergílio Ferreira (nessa ideia de recolhimento, silêncio, paz e plenitude que o início e o fim daquele romance estrategicamente edifica). Escreve a chilena: «Como esta casa está vazia / fiquemos juntos, reencontrados / nesta mesa sem carne nem fruta, / ambos assim, neste silêncio humano, / até que os dois sejamos outra vez um só / e o nosso dia tenha terminado.» (“Pão”, p. 65.)
A rematar, retenho o que Gabriela Mistral diz para explicar o sentido que pode haver num simples gesto, na assunção de um movimento, na coragem de uma visita ou de um encontro voluntário: «Pude não voltar – voltei.» (“A Desprendida”, p. 83.)
Ainda bem que (me) voltaste, Gabriela. Ainda bem que te encontrei, nos encontrámos.

Coimbra, 10 de Outubro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://poetsseers.org/nobel_prize_for_literature/gab/gabp.]

sábado, 9 de outubro de 2010

Quadra Militante


Não deixes que o caminho te escureça
Não deixes que alguém te colonize
Não sejas de quem te não mereça
Não queiras ser o chão de quem te pise.

Coimbra, 08 de Outubro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC.]

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Filosofia Mínima


A ética é também uma coisa estética.
Quero dizer: legalidade interior, legalidade com formosura, bem em forma de cartografia moral, passos voluntários para dignamente andarmos.
A deontologia pressupõe a ética, ou – dito de outra forma – mora na ética.
É como se a casa da profissão ficasse na rua da ética. Casa, portanto, em lugar justo, harmonioso, ecológico.
A ética é um conceito mais profundo, embora singelo de tão claro: ser para (bem) estar na vida.
A deontologia é talvez mais sofisticada em sua enunciação, mas não deixa de ser redutível a uma forma simples: estar para (bem) ser.
O ter, o obter, o parecer, o bem-estar e o pràquistar são outras coisas - nem sempre más, nem tão-pouco necessariamente boas.
A vida (viva o velho clichê) é um jogo. A ética e a deontologia tornam-no mais limpo, aliás, mais humano, aliás, mais humanista.

Coimbra, 27 de Setembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (o filósofo Sócrates – o verdadeiro!) foi colhida, com a devida vénia, na wikipedia).

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Deus é que sabe (parábola)


Era uma vez isto. Era uma vez nós. Era uma vez o país em crise.
Governo e oposições confessaram-se impotentes para resolver o problema. Veio o FMI (que é, como se sabe, anagrama de FIM). Contudo, em vez de solução, houve mais reticências e angústia.
Alguém perguntou, em desespero, ao famoso FMI: Que havemos de fazer, FMI?
O FMI respondeu: Só Deus sabe…
Com desespero redobrado, o país dirigiu-se ao próprio Deus e perguntou: Que havemos de fazer, meu Deus?
Deus quis saber ao certo qual era o problema de Portugal. Falta de dinheiro, informaram.
Façam mais, sugeriu Deus, naquela sua adorável ingenuidade.
Explicaram-Lhe que no mundo terreno as coisas não se podiam fazer assim, que era complicado, que havia regras, que tinham de viver com o dinheiro existente, autorizado, legal, apenas e só com esse dinheiro.
Foi nesta altura que Deus, quase impaciente, suspirou um tsunami por toda a eternidade e disse: Pois então, se só há esse dinheiro, deveis distribui-lo melhor.
Palavra do Senhor.

Porto, 23 de Setembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (“O nascimento de Adão”, de Michelangelo) foi retirada, com a devida vénia, de http://www.girafamania.com.]

Morte & Vida


Fez-me muita impressão que o meu avô Manuel, pai do meu pai, morresse. O tio Zé Melo deve ter percebido a minha incapacidade de lidar com o fim e disse como se respondesse a algum comentário:
- A morte é o diabo.
Notei, na missa fúnebre, a quantidade de chapéus-de-chuva, a lama nos sapatos das senhoras, os olhos vermelhos da mãe e das tias. O padre teceu sobre o passamento um longo murmúrio e, algures na retórica lamentosa, assegurou à família que a este acidente biográfico do avô se sucederia o princípio da verdadeira existência. Afiançou-nos:
- Deus é a vida.
Na minha cabeça, por anos, o tio Zé Melo e o sacerdote discutiram sobre o assunto. O José Régio, no amargo “Cântico Negro”, participou no debate. O Vergílio Ferreira, no “Em Nome da Terra”, esmurrou o clero. O Mário de Carvalho, no “Deus passeando na brisa da tarde”, foi elegantemente ambíguo. O José Saramago, no “Evangelho segundo Jesus Cristo”, riu-se escandalosamente da ficção bíblica.
Eu, por razões de sanidade mental, gosto de fingir que não há morte. Mas, oh Deus, quando a realidade desmente essa ilusão, há sempre uma voz que repete dentro de mim:
- Oh diabo! Oh diabo …

Ribeira de Pena, 22 de Setembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.ultrapassandobarreiras.blogspot.com.]

domingo, 19 de setembro de 2010

Sábado sabadinho


Dou-me conta desta fortuna livre de impostos: é sábado, há o tépido sol beijando-me a pele, vivo a paz universal em versão ribeirapenense, estou num presente ainda tão meu!
Entre mim e o sol, há vegetação arbórea muito verde. A luz empresta um brilho de ouro à calçada. Esparsos viajantes cruzam a rua Camilo Castelo Branco. No Ali Babá, nos arredores de uma maravilhosa chávena de café, corre placidamente a liga inglesa de futebol.
Milionário da rotina, é o que sou - e tão simples, irmãos, é a minha riqueza: está, hoje, tudo normal em Coimbra e na Madeira; é tudo tão presente, tudo tão vida; tudo tão magnífica continuidade.
Ou seja, uma fortuna!

Ribeira de Pena, 18 de Setembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC.]

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Já não o Verão


Por ser Outono
Deus toca ao piano dos céus
Uma sonata triste.
A cada nota, folhas d’árvore
Uma a uma caem
E a Terra
Como se fosse mãe
Acolhe-as
Como se fossem filhas.

Ribeira de Pena, 17 de Setembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[O desenho – da autoria de Júlio Pomar e incluído na obra de Mário Dionísio, O Dia Cinzento e Outros Contos - foi colhido, com a devida vénia, em http://www.centromariodionisio.org.]

Tempo


O Tempo é um fidalgo prepotente
Fumando a minha vida até ao fim.
O fumo ascendente e vertical
São cósmicas palavras que por mim
Lamentam a cinza indiferente
Caindo sobre a terra horizontal.

Ribeira de Pena, 17 de Setembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC.]

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Despesa Social


Ouvi o Dr. Miguel Beleza, eminente economista da nossa contemporaneidade, perorar, na TSF, sobre a lusa crise de finanças públicas. Segundo o especialista, a solução passa por cortar na chamada "despesa social". Bondosamente, o ex-ministro disse que bem sabia da dor que tal causaria nas camadas mais desfavorecidas da nossa população, mas - hélas - não via alternativa.
Eu estou de acordo com este exemplaríssimo senhor, de um ponto de vista fonético. Também eu acho que o segredo passa por cortar na "despesa sucial".
Reparastes? Escrevi voluntariamente "sucial", e não "social".
Porque me parece mais justa e eficaz a medida de cortar nessa despesa que uma "súcia" obscena de privilegiados representa para o Estado: falo dos beneficiários das reformas milionárias (às vezes, duplas e tripas, quase sempre precoces) de altos funcionários, das mordomias de administradores glutões, dos bónus pornográficos de altos gestores, da fuga offshórica aos impostos, dos impiedosos juros cobrados por bancos. Etc, etc, etc.

Sumário: cortemos na despesa sucial, sim - e já!

Ribeira de Pena, 15 de Setembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.universohq.com.]

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Ricardo Reis no lugar do morto


Salva da névoa o rosto amado
Não deixes devir nada o mor de ti
Ignora o presente sem passado
Ama aonde fores o que é aqui.

Oferece ao já sonhado guarida
(o mor do mar é mais que mil marés)
Rebusca em ti o coração da vida
Encontra no que eras o que és.

Ribeira de Pena, 15 de Setembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[O primeiro verso aconteceu-me em viagem, pelas 08h10m. O resto deu-se-me à tarde, por nesta quarta-feira não haver reuniões.]

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Recado antidepressivo


Às vezes, a meta não é ainda no final desta curva. Aparece, como se nascesse de um qualquer cinismo superior (muito fora da graça de Deus), curva outra ainda. Mais: a planura prometida é novamente chão íngreme e irregular.
Às vezes, é isto. É assim, também, a vida. Às vezes, somos Sísifo: que fazer senão carregarmos a pedra (ou a cruz) que nos cabe, desacreditando embora de algum dia a nossa viagem ter direito a chegada?
O contrário seria não estar, não sermos.
Continuamos, logo, existimos.

Ribeira de Pena, 10 de Setembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida - com a devida vénia - em http://www.blogdainseguranca.blogspot.com.]

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Corai, Contemporâneos


Vi, no dia 7 de Setembro de 2010, na RTP2, um excelente documentário sobre a vida de Tito de Morais. O programa poderia ter-se chamado “No tempo em que a Ética era mais do que uma palavra”.
Tito de Morais foi um antifascista de grande carácter, que sacrificou desde muito novo o conforto pessoal em favor da luta pela liberdade e pela justiça. Esteve preso, foi torturado pela PIDE, sofreu o exílio e o opróbrio. Veio a ser um dos fundadores do PS e, já depois do 25 de Abril, elegeram-no deputado e presidente da Assembleia da República.
Os amigos e os filhos unanimemente o recordam como um exemplo de honra e de teimosia. Um pormenor biográfico-doméstico ajuda a fazer luz sobre a personalidade deste português. Alguns conhecidos e camaradas, cientes por um lado das suas qualidades académicas e profissionais, e por outro da sua frágil situação económica, propuseram-no para um cargo de administrador de uma grande empresa. Tito de Morais recebeu o convite com bonomia, informou-se sobre as funções a desempenhar e, enfim, quis saber em quanto importava o salário.
Salário e mordomias concomitantes eram, globalmente, uma fortuna. Aquele socialista abriu a boca de espanto e confessou-se obrigado a recusar. Era demasiado dinheiro – sustentou então – num país onde o ordenado mínimo não ultrapassava os “30 contos”!
Se os políticos do nosso tão pobre presente se olhassem a este espelho…

Ribeira de Pena, 08 de Setembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Condutores sem carta


Parece que a lei castiga os cidadãos apanhados a conduzir sem carta de condução com a impossibilidade de, durante algum tempo, poderem inscrever-se numa Escola habilitada a passar tal documento.
Isto é: o crime de conduzir sem carta, segundo percebemos, é legalmente castigado com o adiamento (talvez sine die) da obtenção da licença para conduzir.
Não se afigura inteligente, convenhamos, tal solução.
A minha filha V. sugere que estes indivíduos, muito ao contrário do que hoje se passe, sejam obrigados a tirar a carta num determinado prazo! A mim parece-me bem – e atrevo-me, já agora, a aditar alguns aspectos.
Os cidadãos apanhados a conduzir sem carta deveriam pagar, como pena para o seu crime, o valor de pelo menos duas vezes o custo da carta de condução. Deveriam igualmente ficar obrigados a frequentar aulas e a ir a exame dentro de um determinado prazo (curto). A não observância desta ordem determinaria a perda do valor já pago pelo cidadão e a concomitante obrigatoriedade de (novo) pagamento das aulas e exames (três vezes essa importância, desta feita), bem como de – dentro de um superveniente prazo – obter a licença de condução em falta.
A ideia (da V. e minha) será enviada, como sugestão, à Direcção Geral de Viação e ao Ministério da Administração Interna.
Que vos parece?

Arco de Baúlhe, 06 de Setembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Vanovska


Fascista, o tempo pode, quer e manda. Não por mal, decerto, porque o tempo não tem a ver com moralidades. É assim. Assim se cumpre.
O tempo corre. O tempo, correndo, é. Mas de tão ininterrupto e fluido, às vezes parece que não anda.
As efemérides - boas e más - tendem a revelar a brutalidade de o caminho entre o presente e a morte se fazer sem pausas. "Já passou tanto tempo", dizemos nós, sem remédio, nessas ocasiões.
A coisa é triste. Pois.
Mas hoje é dia de festa, cantam as nossas almas. A Vaninha faz 26 anos.
Para os seus pais, que nela vêem uma espécie de eternidade, a Vaninha é o contrário da morte. Flores, ó menina nossa!

Coimbra, já 02 de Setembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho & MP (Pais ba-ba-ba-bados)

D'Arte


Posto que é uma porcaria
O mundo todo em geral
Saudemos com alegria
A beleza excepcional
Do mundo que a arte cria.

Coimbra, 01 de Setembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Pintura (fotografada) de Guida Ornelas.]

sábado, 28 de agosto de 2010

O Sol é de quem


Este sol é meu, disse o senhor Fidalgo, cioso da luz recém-nascida.
Tementes do poder aristocrático, os velhos faziam de conta que não sentiam os dedos solares beijando-lhes graciosamente a velhice.
Uma criança, contudo, saiu daquele bolor obediente e gritou (repetindo o murmúrio do próprio avô): O sol é de todos.
O senhor Fidalgo hesitou entre o silêncio e o escândalo da indignação verbal. Optou por soprar como um touro poderoso e seguir o seu caminho, na pose proprietária de quem mede o seu tesouro pessoal, ameaçando com o olhar quem se atrevesse a usufruir do sol.
À passagem do o auto-proclamado dono da luz e do calor, a criança repetiu: O sol é de todos - e soltou até um traque admirável para tão jovem organismo.
Os velhos não se contiveram e por toda a praça se escutou uma gargalhada antiga e livre. O senhor Fidalgo disse: Que pouca vergonha, que pouca vergonha.
E os habitantes da vila regressaram, sem medos nem pudores, ao aconchego daquele sol.
O sol, não sei se vós já percebestes, é (mesmo) de todos.

Machico, 25 de Agosto de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, co a devida vénia, em http://blolog.globo.com.]

domingo, 22 de agosto de 2010

Ilhas Desertas Vistas de Longe


O velho turista vê, da praia, as Desertas. São como três folhas de papel amarrotado e deitado ao mar. O homem vê-as há mais de 30 anos. A nitidez com que as divisa depende, desde sempre, da claridade do dia. Hodiernamente, depende também das dioptrias amovíveis que socorrem o ofício olhador.
Entretanto, o tempo. Cada vez se torna mais improvável, para o turista anual, pisar uma vez que seja aquelas ilhas vistas de longe.
Talvez não seja mau. Talvez haja lugares que se amem melhor assim, livres dos nossos pés concretos e dos nossos olhos excessivamente conspícuos.

Funchal, 19 de Agosto de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

Amiga



Na 4.ª feira, dia 18, estivemos no Funchal, com uma amiga de mais de vinte e cinco anos. Jantámos em sua casa e, num repetido milagre que anualmente sucede, demo-nos como condóminos da lida diária. Espantoso o à-vontade. Espantoso o atrevimento familiar das curiosidades, dos lutos, dos desabafos e das piadas. Encontramo-nos como que não se vê desde ontem, e como quem se voltará a ver não daqui a um ano, mas amanhã.
Infelizmente, não estava a Teresinha, filha desta amiga. Tão-pouco estava a Vânia. Mas foi como se estivessem, porque os filhos dos nossos amigos são parte dos nossos amigos. Falámos delas, orgulhámo-nos, preocupámo-nos, suspirámos.
Esta amiga é uma eterna sonhadora, que a vida não conseguiu tornar amarga ou cínica. Gostamos do seu sentido de humor, do seu desassombro, do seu bom gosto, da sua inteligência.
Dormimos em sua casa. Custou-me, como sempre, adormecer – e li, de empréstimo, Uma Noite não são Dias, do amável Mário Zambujal (boa escrita, história fraquinha; muito melhores foram a Crónica dos Bons Malandros e as Histórias do Fim da Rua).
Pelas nove, o Funchal era todo sol, já. Manhã tão formosa no terraço, com o oceano em fundo. Conversa novamente fluida, cheia de confidências, sorrisos, silêncios cúmplices.
A nossa amiga chama-se Salvina. É um tesouro grande haver amiga(o)s assim.

Funchal, 19 de Agosto de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

(In)Sguros de Vida(s)


A morte existe. Os que julgam saber esta verdade só verdadeiramente a sabem quando ela os atinge por dentro, nas vísceras.
A partir desse momento, o verbo morrer passa a fazer parte do quotidiano e convive, num paradoxo irreprimível, com a ideia de permanecer.
Permanecer como?
Numa seguradora próxima, um casal assustado trata de pormenores da apólice, ramo Vida, e calcula a receita que resultaria da súbita morte de ambos. A verba reverteria a favor da descendência.
O ser humano é eterno. Mas a eternidade é uma coisa tão frágil!

Machico, 20 de Agosto de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://olhares.aeiou.pt.]

Ao sol


No largo da igreja de Machico, à irregular sombra de centenários plátanos, velhos, taxistas, crianças e párias avulsos disputam os bancos disponíveis. Coube-me, hoje, um em sorte. Aproveito por minutos o beijo travesso do sol. Recolho, até, da madeira onde estou sentado, a quentura diferida que quase me queima os braços.
Sou, por inteiros segundos, daqui.
No atlas do Tempo, o presente é o melhor lugar para se viver.

Machico, 15horas de 20 de Agosto de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http:www.3m2.blogspot.com.]

Solilóquio de Ema Bovary durante o sono de Charles


Segreda-me cicia-me sussurra-me
Sibila-me segura-me sucede-me
Ressuma-me resume-me resulta-me
Assalta-me assoma-me acede-me
Caça-me coça-me cobre-me
Devassa-me desgraça-me abraça-me -
Sossega-me, sim?

Machico, 18 de Agosto de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Elogio da Rotina


Confirma-se: amo a rotina. Tanto que a construo a meu modo, como se no meu dia eu fosse o próprio Deus fazendo as estações, o atlas quotidiano dos passos, os cenários, os actores contracenantes de mim.
Levanto-me nunca antes das 11, às vezes mais tarde. Cumpro a ginástica e a higiene, cumprimento quem vive à minha roda (isto inclui os mortos) e sigo, só, para o centro da cidade. No edifício Perestrelo, compro o jornal, tomo um garoto e como um curto bolo para desjejum.
Leio exaustivamente notícias, crónicas, anúncios. Saco, a seguir, de um capítulo da tese e re-vejo, re-corrijo, re-re-revejo, re-re-recorrijo, num ofício de formiguinha míope que combate gralhas, verborreia, redundâncias e repetições.
Pelas 14h30m, já caminho rumo à praia. Levo na mochila o a habitual garrafa de água, a queijada madeirense e um livro (à falta de outro combustível, alimento-me da obra camiliana que gostosamente revisito).
Antes de a MP se me reunir, hei-de ter tempo de um ou dois mergulhos no mar, de telefonar para a minha Mãe, de me oferecer alguns capítulos romanescos, de um ou outro verso trazido pela brisa.
Pelas seis e meia, regressamos a casa, talvez parando no Café junto à igreja para um sumo. A meio do caminho, entramos no Pingo-Doce e recolhemos pão, água, fruta.
À chegada, conversa em família, na sala (ou nas escadas, para aproveitar os últimos dedos do sol morrente). Pelas oito da noite, ouço os títulos do telejornal e saio para correr durante vinte minutos.
Segue-se o banho e, pelas nove da noite, o jantar. E, nem meia hora após, um tranquilo passeio até ao Café para a “bica” nocturna.
Serão adentro, a televisão-lareira: “Conta-me como foi” ou “Aqui não há quem viva”, numa primeira etapa; o “5 para Meia-Noite”, em conclusão.
Até madrugada, o computador: dactiloescrevo as correcções na tese e, mais raramente, consulto email e actualizo o “Muito Mar”.
Nunca adormeço antes das 3 da madrugada.
O dia seguinte, se os céus deixarem, há-de ser como este. E isso nunca é, visto do lugar onde me encontro, mau.


Machico, 18 de Agosto de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi recolhida, com a devida vénia, em http://www. joaokepler.blog.com.]

Olívia Empregada e Olívia Patroa


Soube que Manuela Moura Guedes está (ou estava) a banhos no Algarve. Desde que a TVI, para alívio do PS e do meio ambiente, acabou com o “Jornal de 6.ª”, a senhora está “de baixa”. Maleitas de cariz psicológico (adivinho, confio eu) certamente autorizarão a sua falta prolongada ao trabalho.
Ouso questionar: se Manuela fosse professora, que pensaria a Manuela jornalista de tanto tempo de baixa por razões (digamos) de amuo?


Machico, 18 de Agosto de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Horizonte (popular)


Voa tão longe o olhar
Tão para lá de onde estou…
Quem dera poder voar
Para além disto que sou!

Machico, 16 de Agosto de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida – com a devida vénia – em http://germinai.wordpress.com.]