Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quinta-feira, 31 de março de 2011

A Palavra Vale


José Tolentino Mendonça é um excelente poeta, que é também professor, que é também padre. A ordem não interessará muito, neste caso. Este homem cruzou-se com a minha existência quando, em 2000, eu andava a estudar Ruy Belo, no âmbito de um mestrado em Estudos Portugueses. Soube, então que Tolentino Mendonça era um dos maiores especialistas da poesia de Belo e um seu prefácio a, salvo erro, Aquele Grande Rio Eufrates iluminou-me como uma manhã.
Soube também que é, como a minha mulher, natural de Machico e, finalmente, tive ainda a honra, já em 2010, de vencer o Prémio Literário de Poesia Francisco Álvares de Nóbrega, patrocinado pela Junta de Freguesia machiquense. Ora, do Júri que escolheu o meu voluminho A Palavra Vale fez parte este madeirense grande.
Comprei, no dia 26 deste mês, o jornal I apenas porque, na primeira página, se prometia uma entrevista de José Tolentino Mendonça à jornalista Maria Ramos Silva. Ainda bem, senhores, que fiz tal compra!
Da longa conversa (páginas 44-47), respigo algumas passagens que decerto contribuirão para tornar mais profundas e límpidas as águas do meu (nosso) Muito Mar. Por facilidade de exposição, recorro à numeração cardinal.

1. Sobre a ideia de conhecer
«A palavra “conhecer” quer dizer “nascer com” e o acto de nascer é sempre espiritual. Porque nascemos com vários sentidos, sempre. Esta hora para nós pode ser uma hora de nascimento, a hora em que o leitor está a ler estas palavras. Penso que a espiritualidade se liga, de facto, a uma procura de conhecimento, que não é unívoco, ou simplesmente empírico. É uma espécie de abertura, de colocar-se perante o aberto do mundo.»


2. Sobre acção e contemplação
«[Eu] não tenho essa ideia de estar envolvido num activismo, ou muito preocupado com a produtividade. Talvez porque em cada dia reservo um espaço significativo para a contemplação, para a escuta, para o silêncio. Isso gera, de facto, uma fecundidade na acção, mas que não é activismo.»


3. Sobre a atenção
«A atenção é a atitude espiritual mais importante. E muitas das coisas que aprendemos em si mesmas não têm um valor por aí além, mas servem para treinar para a atenção. Lembro-me de um texto de Simone Weil sobre o estudo escolar. Há muita coisa na nossa formação que se revela sem grande utilidade, mas naquele momento ajudou-nos a construir uma atenção. E isso é o grande valor que cada um de nós transporta. Acredito muito naquilo que os padres do deserto diziam, que o grande pecado é a distracção.»


4. Sobre o ofício da escrita e a noção de testemunha
«Há que organizar […] as sensações, e anotá-las. Mas penso que caminho no mundo como uma testemunha e que essa é a função de cada um de nós. Caminhamos não apenas como espectadores, mas como testemunhas, do sofrimento e do esplendor do mundo.»


5. Sobre uma ideia renovada de sagrado
«Acho que os textos sagrados não se esgotam na Bíblia. A Bíblia é um território sagrado, mas há novos textos sagrados. O poema [cita “Mesmo quando eu me esqueço de Deus / Lembro-me de Deus”] do Rui Belo é um texto sagrado.»


6. Sobre Deus e palavra(s)
«Estes dias dei comigo a pensar […]: o que é ter fé? É ter fé em Deus, mas também ter fé na palavra. É acreditar que uma palavra nova, [ou] uma palavra comum, pode estar inesperadamente investida de uma força maior. Quem diz uma palavra, diz um gesto. Um cumprimento entre duas pessoas…»


7. Sobre o ofício caminhante (literal e metafórico)
«São Francisco de Assis dizia que caminhar a pé é já rezar. Se for assim, já tenho rezado muito. Há itinerários de que gosto muito. O jardim das Amoreiras, Campo de Ourique. Lisboa é tão bonita e diversificada. Sempre um espanto que nos é oferecido. Nunca regressamos pelo mesmo caminho por onde partimos.»


8. Sobre o seu hábito de citar outros autores
«É um sentido de comunidade. Se for uma muleta, não gosto, porque gosto de ser original. Cada um deve ter um pensamento com consciência própria, mas ao mesmo tempo é importante o testemunho do que se vive em companhia. A Adília Lopes diz: “Eu sou uma obra dos outros.” Também sinto isso, por isso não me custa nada lembrar o que os outros disseram, porque também eu sou uma obra deles.»


Um dia, julgo (espero) eu, vou apertar as mãos deste conterrâneo da MP. Mas, antes desse dia, José, fica já inscrito este abraço cúmplice e grato.

Ribeira de Pena, 31 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

Mãos dos dias


Tenho reparado nas mãos que rodeiam o meu dia-a-dia. Em Vila Real, vi uma princesa passeando pelo centro comercial com as unhas sujas do trabalho rural. Em Coimbra, vi um sénior mal segurando a chávena do café, com a osteoporose chique dos reformados ricos. Em Penacova, vi certo gasolineiro cujas mãos pareciam, de calosas, uma superfície mais lunar que a da lua. E as mãos da minha mãe têm, por vezes, feridas porque ela sofre de diabetes e de tempo.

Ribeira de Pena, 31 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://webpholio.net.]

Beijo na cara


Por talvez vinte segundos, entre o Café da vila e o carro, recebo na cara o beijo limpo e ameno do Sol.
A carícia da Luz: não há, irmãos, maior astrologia do que esta!

Arco de Baúlhe, 31 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

quarta-feira, 30 de março de 2011

Duas Quadras Peregrinas


O bom viajante anota
Da rota o mais importante
E relendo cada nota
É mais vezes viajante.

Mais virá decerto quem
Sem nunca sair daqui
Fará das notas de alguém
Outras rotas só de si.

Vila Pouca de Aguiar, 30 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, na wikipédia.]

Ilha Encantada


Luis Sepúlveda é um dos autores que entra nesse belo projecto editorial chamado O Teu Nome Flutuando no Adeus (já referido neste “Muito Mar”).
Na página 128 do seu conto “A Ilha”, o chileno narra um encontro de certa personagem, na ilha de Sylt, com o amor da sua vida - e o passo é, de tão lindo, inesquecível. Reporto-vos, generosamente, essa epifania do senhor Kurt, forte o suficiente para o obrigar a mudar de estado civil:

«- Eu defendia o meu celibato como um espaço natural, do mesmo modo que Sylt continuaria a ser uma ilha até que o mar lhe arrebatasse o último bocado, mas eis que uma manhã no porto, enquanto observava os estivadores a descarregar bananas de um barco proveniente da Costa Rica, vi-a caminhar directamente para mim. Separavam-nos uns vinte metros que ela reduzia com os seus passos. E não se tratava de uma visão que fosse fruto da primeira bebida da manhã. Quis fugir, mas as pernas não me obedeceram e, quando ela se deteve à minha frente, pedindo-me trocos pois precisava de moedas para olhar pelo telescópio, corri, acredita em mim, corri como num atleta, até à loja de recordações marinhas e comprei o telescópio maior que lá tinha. Voltei numa corrida e entreguei-lho. Ela não percebia, e ainda menos quando lhe disse: “Tome, e tudo o que vir, seja o que for, é seu.” […]»


Um livro inteiro pode, só por um episódio destes, valer a pena!

Arco de Baúlhe, 30 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem de Gwineth Paltrow foi colhida, com a devida vénia, em http://www.actionnerds.wordpress.com.]

terça-feira, 29 de março de 2011

L'enfer c'est les autres (Sartre)


Lula

Ouvi ontem na rádio: Lula da Silva, um operário que chegou a presidente da República, disse que o FMI, ao invés de resolver problemas das pessoas, os agrava. Disse-o sem papas na língua (portuguesa) e os hipócritas anfitriões fingiram que aquilo não era importante. Mas, já agora, eu gostaria de lembrar, à boleia desta lucidez tropical, que muitas vezes é preciso distância – crítica e geográfica – para falar de assuntos momentosos. E que uma big picture também depende de uma big vision.

Modelo de avaliação de professores (I)

A (ainda) ministra de Educação está triste com o fim do modelo de avaliação, votado por toda a oposição na Assembleia da República. Diz que é pena, porque tudo estava a correr bem nas escolas. Tudo a correr bem? Vou academicamente partir do princípio de que a senhora acredita mesmo nesta enormidade. Generoso, esclareço-a: não estava, não está. Mesmo os que anda(va)m a tentar cumprir as regras deste modelo injusto (com prejuízo até da sua sanidade mental) respiram, por um momento, de alívio. Aleluia! Parece que, durante um inteiro período, os professores poderão dedicar-se ao mais importante da sua função – o ensino, o trabalho com os alunos. O que até aqui se passou foi, tenha a senhora paciência, tempo perdido. Ou, perdoai a piadinha fácil, uma triste aventura.

Modelo de avaliação de professores (II)

Miguel Sousa Tavares (uma espécie de Margarida Rebelo Pinto em versão marialva, literariamente, ou um Marcelo Rebelo de Sousa wannabe, no plano do comentário) voltou a falar, na SIC, dos professores. Sou franco: custa-me mais a má literatura do plumitivo do que as suas bacocas frases sobre a actualidade da educação. Mas não deixo de registar a facilidade com que, do cadeirão majestático em que se auto-imagina, opina sobre assuntos que manifestamente não domina. Como não se interroga este homem de má gramática e de má catadura sobre o singelo facto de TODA A OPOSIÇÃO (da esquerda à direita) achar que o modelo de avaliação em vigor é injusto, inexequível e estúpido?

Modelo de avaliação de professores (III)

António Barreto, que tem a vantagem – sobre Miguel Sousa Tavares – de ser um homem ponderado e de boa escrita, também falou, na TVI24, sobre a avaliação dos professores. Mas a sua posição é verdadeiramente extraordinária: confirmou, por um lado, que o actual modelo lhe parece errado e inadequado, mas acha “incompreensível”, por outro lado, que o PSD tenha votado a sua suspensão imediata. Percebemos, pois, que a sociologia, mesmo a mais chique, tem razões que a Razão desconhece…

Modelo de avaliação de professores (IV)

Francisco José Viegas, uma irrelevância literária da contemporaneidade, ouviu António Barreto nesse programa e, sem acrescentar uma só ideia que se aproveitasse, considerou também “incompreensível” o que o PSD fez. Serodiamente alcandorado a comentador político, este pobre escritor anda mortinho por dizer uma coisa original e forte, mas a coisa tarda…

Crisófagos

A crise existe e, para o caso de nos esquecermos da sua sombra tutelar e adamastórica, há todos os dias na televisão engenheiros, sociólogos, economistas, professores de finanças, esquerdistas e ex-esquerdistas, reaccionários e ex-reaccionários, deputados e ex-deputados, governantes e ex-governantes, corretores, editores de diários e semanários. Eles discursam, peroram, afirmam, reiteram, argumentam, explicam, aconselham, garantem, falam falam falam. São todos senhores da sua própria verdade e todos também, de forma geral, definitivos. Mas concordam num pormenor essencial: a culpa é “dos outros”. Sempre dos outros. Porque eles, os comentadores, bem nos avisaram, coitadinhos. A culpa é nossa, pá. Isto é, dos outros.

Ribeira de Pena, 29 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem de Lula da Silva foi colhida, com a devida vénia, em http://www.3bp.blogspot.com.]

domingo, 27 de março de 2011

Dia Mundial do Teatro


O palco o mundo dentro de mim
A plateia a teia de corações
Entre mim e o outro encenações
De realidade com perlimpimpim

Palavra gesto dança rendez-vous
Viagem comovida vida olhares
Música sussurros ais esgares
Silêncio sentidos sonhos luz

O Teatro, ó Zé -
Sei lá bem o que é!

Coimbra, 27 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (da peça O que diz Molero, original de Dinis Machado, versão dramática de Nuno Artur Silva, encenação de António Feio e interpretação de José Pedro Gomes e António Feio) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.tv1.rtp.pt.]

Sobre a raridade do ouro


Ao contrário do ouro, que é raro e se esconde, regra geral, em lugares recônditos (de difícil e moroso acesso), a porcaria parece nascer em todo o lado e disseminar-se com obscena rapidez e fartura.

Coimbra, 26 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.oiacapao.blogspot.com]

quinta-feira, 24 de março de 2011

Litoral, litoral!


Alguém se esqueceu do manual de História e Geografia de Portugal na sala de convívio. O livro, entreaberto pelo vento, borboleteia sempre a cada nova aragem. Talvez o dono do livro seja um dos petizes que, suado e absorto como um profissional da Champions, joga uma partida de futebol pela sua turma como Nun'Álvares pela glória. Um pedacinho de mar escapa-se de uma ilustração avulsa, a páginas sessenta e sete do manual. Detenho-me por instantes, invejando ali um certo vulto barrigudo, ao canto da foto turística.

A funcionária sorri-me:
- São uns malucos. Esquecem-se de tudo...

Eu estou no interior de Portugal há já dezasseis anos e nunca me esqueci da praia.

Arco de Baúlhe, 24 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

quarta-feira, 23 de março de 2011

Incolumidade


Quando eu era menino, assustava-me a ideia de não ser amado por toda a gente.
A idade traz-nos as dores nas articulações e a amargura nos corações, mas também aquele sábio olhar dos cães antigos sobre as pressas do mundo.
Ainda quero muito ser amado, hoje. Percebo, contudo, como fica tantas vezes melhor no curriculum ter esse desamor das víboras maldosas, dos vermes ignorantes, dos insectos hipócritas.
Melhor, por nós, que certa gente não goste de nós.
Estar na selva não tem de significar ser da selva.

Ribeira de Pena, 23 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.senado.gov.br.]

terça-feira, 22 de março de 2011

O Leão da Estrela


Não tem de ser racional a explicação de uma dor, pois não?
A morte de Artur Agostinho, como a de Fialho Gouveia e a de Raul Solnado, significa para mim um adeus a um tempo.
Bem sei, alguma coisa da história da televisão se cruza decerto com esta saudade que não consigo deixar de sentir.
Mas chegam-me à memória, sem esforço, outros ecos: relatos de hóquei em patins rádio-ouvidos em Setembro, na praia de Mira; gritos de goooolo do Sporting numa quarta-feira europeia, ali entrepercebidos à porta do Café Lusa Nova...
A morte dos que eram o mundo quando eu era tão mais lindo e limpo é já um pouco a minha morte sendo.
Eu gostava do Artur Agostinho. E acho que ele foi, à escala do que me lembro-sinto, um grande português.

Ribeira de Pena, 22 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

King Kong visto da terra


ó môdê zukékékilatreparócéu pá
safassakilali namepareçudiabo
émazéumonstrókaraça zópá kumóêtê
akilémazé umgandachimpanzé
ózéssaidaí ómômalandrão
rrrrrraçadoputopá pakékeuvimkontigó assolapadodokatan
ukobichokerékomêpá numvezabocadelaberta kumótúneldomarão não

vrrrrraaaauuuum fichfichfich zzzuuuummmmm
tufteftuf teftuftaf pingzing véum tóim toktoktok zepzapzep

zazuz obichakabakánochão kagentembaixesmagadinha katan
tátátátátá prepararotrarrajadajá mazagorórrostããã
tátátá tátátalto kuzelikópterozaindakaem katan

tchtchtch tchtch tufteftuftef taftaf ping zing véum tóim

aaaaaaaaaaaae ipáôpá fugefugekim katan fugezé kugajakabaporkairaki

trástróstrástumba tóimtóimtrum pofpápápás

tomaláképaprenderes kakinaterramandópovodaterrãpá
orora ikemmuitaltassobàbruta àsvezezékemkomaispressaterra
olhópá uzazareskakontecempá kavidémesmassimpá éônoé katan

inkoinkunk oinkunkink páspofpás pufpufpuf

lávaieleózé ochimpanzélávaipá
nãtinklineszagora katan kátankezapassaràbeirinhadagentózé
dákámãopá arrekéchhatorrapazã mazeudoutózé aidôdôzé
possipáfrentópai
támazékikietópá


Ribeira de Pena, 22 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.cinesemana.com.]

segunda-feira, 21 de março de 2011

Dia 21 de Março com o gajo da poesia


A palestra tinha a ver com a data: 21 de Março, Dia Mundial da Poesia.
Falei hoje do assunto aos alunos do CEF da minha Escola.
Muito resumidamente, o que lhes disse foi que cada um deles constitui um inteiro mundo e que precisamos de linguagem que diga, de cada um de nós, que somos um mundo inteiro.
Sublinhei, como pude, que a vida e a literatura precisam uma da outra.
E que, se outra razão não houvesse para a lermos, havia esta de o mundo poder ser infinitamente mais pobre sem versos, histórias, teatro.
Foi uma manhã útil, tanto quanto pude perceber. Com os alunos, a Dona Glória, as colegas Rosário e Elsa, li e discuti aspectos fundamentais da comunicação humana.
O público esteve em silêncio quando era preciso silêncio. Interveio quando foi chamado a intervir. E, frequentemente, riu-se (como também é natural quando se fala de literatura, senhores).
Sinto-me bem na pele desta espécie de apóstolo do texto literário, mais ainda quando - como é felizmente o caso - tenho cúmplices tão dedicados como eu. Cruzei-me agora à tarde com um dos rapazes que me ouviu de manhã. Ele sorriu-me, de forma simpática e bem humorada. Talvez dissesse para a colega caminhando a seu lado: "Aquele profe é o daquela cena d'hoje, na biblioteca, o gajo da poesia".
Não me importaria nada que isto (que imagino) fosse verdade. Um "gajo da poesia", ou "da literatura em geral" - não era má antonomásia para a pobre existência de um professor em Portugal.

Arco de Baúlhe, 21 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

domingo, 20 de março de 2011

O Teu Nome Flutuando no Adeus


Passei parte de Sábado e Domingo num encantamento grato. A minha colega Olívia Sofia Coutinho emprestou-me um livrinho intitulado O Teu Nome Flutuando no Adeus (Lisboa, Ed. Oficina do Livro, 2003). Traduzido por Luísa Diogo e Carlos Torres, o volume compreende histórias (supostamente autobiográficas e falando da intemporal questão de amor & perda) de nove eméritos escritores da língua espanhola: Alicia Giménez Bartlett (Espanha), António Sarabia ((México), Horácio Vásquez-Rial (Espanha), José Manuel Fajardo (Espanha), José Ovejero (Espanha), Luis Sepúlveda (Chile), Mario Delgado Aparaín (Uruguai), Mempo Giardinelli (Argentina) e Nuria Barrios (Espanha).
Nos próximos dias, deverei escrever novamente sobre alguns dos contos que o livro oferece. Por hoje, não resisto a falar-vos de “O musguinho na pedra”, de Antonio Sarabia. O autor reporta-nos lembranças da sua adolescência e, à boleia desse exercício, conta-nos a história de um amor por certa rapariga perfeita que tinha, entre outras especificidades, a notável qualidade de não existir.
Explico-me. O protagonista fartar-se, em certa tarde da sua juventude, de ver os amigos exibindo namoradas, e de os ouvir falar das suas proezas lírico-eróticas, e de lhes suportar questões sobre a sua (do autor) própria vida afectiva, sempre com remoques suspeitosos sobre a (in)virilidade de quem não namorava ainda. Um inferno! Por isso, decide inventar uma certa “Inés” - e da sua relação com a dita vai-lhes dando conta, dia a dia, aportando pormenores narrativos esforçadamente verosímeis.
O cuidado no fabrico da ficção vai ao ponto de o protagonista procurar, na cidade onde vive, uma casa ideal para Inés morar, e de também aí conhecer – ao longe – os pais da amada, o carro da família, o cão (a que chamará Matías).
De episódio em episódio, a narrativa evolui para um namoro sério, uma dedicação grande, uma paixão profunda. O autor, por não ser capaz de ultrapassar o que o decoro e o amor suportam, decide pôr um fim a esta relação: a amada fictícia partiria, subitamente, devido à transferência de seu pai para um lugar distante…
Para cumprir o seu papel de amador abandonado, ele vai ainda até à “casa de Inés”. Por ironia cósmica, o edifício está nesse dia fechado, as cortinas corridas, o carro e o cão ausentes. A realidade bate certo com a narrativa interior. E o jovem apaixonado acaba, senhores, por chorar lágrimas verdadeiras.
Não vejo este conto, sublinho, apenas como uma simples habilidade retórico-estilística. Entendo-o como uma confirmação do que profundamente defendo acerca da narrativa: a matéria narrada, mais do que um enunciado sobre a vida, é também – ela própria – vida tout court.

Ribeira de Pena, 20 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

Problema d'água


Uma flor na varanda de um prédio morre por não haver quem lhe dê água.
Também eu, por vezes, trago flores moribundas em meus olhos.

Ribeira de Pena, já 20 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (pintura de Van Gogh) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.ternaeanoite.blogsapo.pt.]

sexta-feira, 18 de março de 2011

Mãe imortal


Estive cerca de nove meses dentro da barriga da minha mãe. Reparto com a maioria dos mamíferos humanos esse aspecto pré-biográfico.
Depois, nasci. A minha mãe continuou a chamar-se a minha casa e, tirando alguns detalhes físico-químicos, manteve-se entre nós o sagrado vínculo umbilical.
Há quase quarenta e oito anos que é assim.
É verdade que a nossa cartografia doméstica nem sempre coincide. Mas onde eu estou, está a minha mãe. E em tudo quanto faço, desde muito menino, há sobretudo a secreta esperança de que a minha mãe tenha orgulho em mim.
Ela faz hoje setenta e um anos e eu dei-lhe os parabéns, via telefone, a 260 quilómetros do seu sorriso.
Já agora: sinto estes setenta e um anos como (apenas) um pormenor, porque a minha mãe é imortal enquanto eu andar por aqui a lembrar-me dela.

Ribeira de Pena, 18 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto foi tirada em 2006 e reúne, por feliz acaso, duas meninas queridas. A V. era, à época, quartanista de Direito e havia naquele preciso dia o desfile da Queima das Fitas.]

quinta-feira, 17 de março de 2011

Sino (a pensar em Thoreau)


Ao fim da tarde tranquila
Entra pela minha sala
O som do sino da vila
Que diz mais no que me cala.

Irónico, triste engenho
Que traz no tempo que dá
Não as horas qu'inda tenho
Mas outras que perdi já.

Ribeira de Pena, 17 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

Uma Recordação Indecente


Agustina Izquierdo é o nome da autora de um belo romance, Uma Recordação Indecente (Lisboa, Editorial Teorema, 1995, tradução de Magda Bigotte de Figueiredo). Descubro, só depois da leitura, que "a senhora escritora" é, afinal, não a escritora catalã que eu julgava que era, mas um escritor. "Agustina Izquierdo" trata-se de (leio) um pseudónimo de "um escritor francês".
O meu amigo Daniel Abrunheiro garante-me, muuitas vezes, que é capaz de, em 90% dos casos, saber se determinado texto literário é de um homem ou de uma mulher. Ora, eu fui gloriosamente enganado no caso de Uma Recordação Indecente. Embora a narrativa distribua o discurso por várias vozes, várias personagens (masculinas e femininas), eu juraria que ali havia - a tutelar demiurgicamente o enunciado - uma mulher escrevendo-se.
O romance trata das questões magnas do Amor e da Perda. Mas, pelo meio, há um admirável tratamento do Desejo ("esse cão", como escreveu Augénio de Andrade): estranhas e perturbadoras fantasias sexuais, ousadias de linguagem equilibrando-se entre o porco e o sublime, mistérios sobre o corpo (o nosso e dos outros) - eis de que é feito o ritmo (o frémito) essencial deste discurso narrativo.
Alguns passos pareceram-me antológicos. Deixai que vos ofereça dois pequenos excertos.
Na página 90, exprimindo o ponto de vista de um homem subjugado, em registo que (sei lá porquê) me lembrou A Dama das Camélias, de Dumas Filho, lemos:

"Todos os dias eram uma recusa. Eu nunca sabia que forma ia assumir a frustração nem em que momento o meu desejo,impedido, me iria levar a cerrar os punhos repentinamente. Mas sei agora como é impossível dominar o sofrimento que nasce da frustração; não há nada que o não piore; é praticamente impossível tentar abafá-lo no momento em que ele nos lembra mais uma vez a entrega e volta a mergulhar-nos no mesmo desespero de uma criança que deita os bofes pela boca tal a fome que tem. Sei como é ilusório tentar impedir que ele se estenda ao dia inteiro e até aos sonhos que o encerram, onde o desejo se vinga e onde a excitação, longe de se acalmar, aumenta, endurece, cristaliza."


Na página 110, a definição de Deus (da ideia de Deus), por Agustina Izquierdo, soou-me ao nosso Ruy Belo, e não é pouco elogio dizer-se tal seja a (e de) quem for:

"Deus é o que não cessa de cair. [...] O que é Deus? Que tenhamos nascido. Que tenhamos nascido de outras pessoas que não nós mesmos e a partir de um acto em que nós não estávamos presentes e esses outros estavam nus."


E agora, para que novamente se roam de inveja, aqui vai o (já habitual) apontamento de reportagem: o meu livro foi comprado no hipermercado do Jumbo, em Vila Real, e custou-me um Euro. Pois, pois.

Ribeira de Pena, 17 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

quarta-feira, 16 de março de 2011

Burocracia


A burocracia tende a inculcar-me ideias sucidárias. Vingar-me, desaparecendo.
O lado maior desta vingança seria o o Estado não poder condenar-me à morte. Bem feito.
Mas haverá decerto mangas-de-alpaca a tratar do assunto, neste preciso momento em que escrevo "Bem feito".

PS: O problema é que o suicídio me parece (mas não tenho a certeza) ainda mais estúpido que a burocracia.

Arco de Baúlhe, 16 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto (de Kafka, como se adivinharia) foi colhida, com a devida vénia, em http://matracacultural.wordpress.com.]

terça-feira, 15 de março de 2011

Fuga d'Aqui (com mote de Pessoa)


Grande é a Europa, a Alemanha, as Finanças
Mas o melhor de tudo são as crianças!

Ribeira de Pena, 15 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (o "Chico Bento", do grande Maurício de Sousa) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.tempusatempus.blogs.sapo.pt.]

segunda-feira, 14 de março de 2011

A Erva Amarga


Marga Minco, conheceis?
Por um eurinho, no hipermercado do costume, comprei o romance A Erva Amarga, desta escritora holandesa. Um achado!
É impossível ler o romance sem ter, como um eco d'alma, a leitura de O Diário de Anne Franck, de Se Isto é Um Homem (de Levi) ou de O Mundo em que Vivi (de Ilse Losa). Também aqui encontramos a ignóbil pata do nazismo trucidando indivíduos, obras, humanidade.
De singular, encontrei no romance (autobiográfico) de Minco um modo de contar muito hábil, que nos vai dando conta, pelos olhos inocentes de uma criança, das sucessivas transformações que a bestialidade impõe às existências simples. Aparentemente, o relato ocupa-se de aspectos demasiado triviais e, dir-se-ia, despiciendos (do ponto de vista da narrativa) do quotidiano de uma família: refeições, brinquedos, roupas. Mas essa é,afinal, a base da eficácia romanesca: percebemos, página a página, que a história contada virá a ser sobretudo uma espécie de narrativa de perdas. Marga perde a tranquilidade, a liberdade, a casa, a companhia dos mais queridos, a infância, a vida como era...
Isto é, o romance dá-nos conta, pacientemente, aturadamente, de uma normalidade. É a intolerância nazi que, depois, vai privando, hora a hora, objecto a objecto, a personagem principal dessa normalidade que era, voilà, a felicidade. Lendo o relato, sabe-se isto, sentindo-se isto.
No final da história, sabemos da provável morte (nos campos de concentração) dos pais e irmãos da autora. Mas, antes de termos a certeza de tal, conhecemos o tio (paterno) de Marga. Com o fim da guerra, este homem tornara-se um atento e obsessivo observador de eléctricos, e não conseguia, de manhã à noite, separar-se de uma certa paragem onde - achava, cria ele - chegariam de repente os familiares há tanto tempo não vistos. Mesmo quando tomava as suas refeições, este judeu procurava o ângulo certo da sala ou da cozinha para continuar observando o lugar exacto onde os eléctricos paravam...
O tio de Marga morreria sem que, infelizmente, se realizasse o doido sonho. A terminar a obra, a narradora despede-se da tia (mulher do sonhador) e caminha pela rua fronteira à casa. Dou-lhe, devolvo-lhe a palavra:

"Devagar, caminhei para a paragem. Já tinha visto que ainda não havia nenhum eléctrico. Mas havia chegado entretanto um do outro lado. // Fiquei a ver a pessoas que saíam, como se esperasse alguém. Alguém com um rosto familiar, ali na frente do meu. Mas faltou-me a fé do meu tio. Eles nunca mais regressaram: nem o meu pai, nem a minha mãe, nem a Bettie, o Dave ou a Lotte."
(Cf. Marga Minco, A Erva Amarga, trad. de Maria Clarinda Moreira, Lisboa, Editorial Teorema, 1997, p. 117.)

E o livro termina com esta certeza. Não há mais páginas, (porque) não há mais esperança.
Um grande livro, senhores, que valeu o meu Domingo inteiro.

Ribeira de Pena, 14 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

A questão nuclear


A tragédia japonesa dos últimos dias trouxe-nos informação altamente perturbadora e comovente. A globalização torna-nos vizinhos de qualquer guerra, de qualquer mistério, de qualquer tsunami. Estamos com o mundo, somos o mundo. É com os japoneses? É connosco.
A recente ameaça de uma catástrofe nuclear de proporções chernobylianas lembrou-me de uma circunstância, também, da contemporaneidade portuguesinha. Aí vai.
Alguns sábios e, sobretudo, senhores importantes da economia lusa vinham, desde há uns três anos, a sugerir a opção pela energia nuclear. Diziam, com a força dos seus cálculos financeiros, que era a opção mais inteligente e moderna. E, com cinismo, ofereciam o rebuçado retórico de se tratar de uma energia limpa, amiga do ambiente.
Perigos? Muito poucos, garantiam. Chernobyl tinha sido há muito tempo já, e fora consequência - sublinhavam - daquele período de transição para o capitalismo, durante o qual os russos se haviam deixado tomar pela incúria.
E, agora, o Japão...
Parece que, de vez em quando, a Mãe Natureza se serve dos mais violentos métodos para ensinar os homens.
Com todo o respeito pela dor dos nossos irmãos japoneses, não deixo de perguntar numa primeira ressaca do sucedido: por onde andarão, nestes dias mais próximos, os entusiastas portugueses da energia nuclear?

Ribeira de Pena, 14 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

sábado, 12 de março de 2011

Literatura, Cinema: Amores de Perdição


A (re)leitura de uma entrevista de George Steiner a Ramin Jahanbegloo, trouxe-me à memória algumas considerações que teci, oportunamente, sobre o trabalho de adaptação de uma obra literária ao cinema.
Em alguns casos, o resultado é pavoroso. Noutros, encontramos trabalhos brilhantes de reinvenção da narrativa, que acrescentam não poucas vezes luz e profundidade ao enunciado textual.
É o que acontece decerto com a obra Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco / Manoel de Oliveira.
Eu creio que o realizador de cinema é sempre um leitor (apaixonado, na maioria dos casos) de uma obra literária, só depois assumindo um outro estatuto, o de recodificador (ou transcodificador), que pretende traduzir para outro domínio semiótico aquilo que entende ser o essencial do que leu.
Quer o escritor, quer o realizador recorrem à função poética (ou, como aqui prefiro dizer) estética da linguagem, que é uma instância comum ao cinema e à literatura, no sentido em que liberta, nos dois casos, o discurso narrativo dessa pobreza e incompletude que há, regra geral, no chão factual da existência humana.
Ao debruçar-me sobre a questão da interpretação, ocorre-me o famoso poema de Fernando Pessoa, “Autopsicografia”, que tantas (algumas, boas; outras, disparatadas) leituras já motivou. Na primeira quadra, que sei de cor desde o meu 9.º ano, o poeta escreveu:
«O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.»


Não é por acaso que esta estrofe me vem ao espírito, quando penso na apropriação, pelo cinema, dos principais aspectos da obra literária. Com efeito, tal como nos versos pessoanos se explica, o que o criador literário faz é representar uma realidade pela via da sua transformação de facto (real ou imaginário) em arte. Não há aqui, obviamente, meros objectivos de mimese jornalística, aliás impraticável mesmo que o escritor o desejasse. Há, sim, a intenção de criar (ou recriar) o real, seja pela sua refundação, seja pela sua recusa ou superação. A única “dor” verdadeira, a que o leitor tem acesso (ou a que o leitor tem direito), é a que o poema seja capaz de nele - leitor - gerar.
Deixai, agora, que (hereticamente) eu mesmo reescreva a quadra de Pessoa, para vos/nos recordar o que fundamentalmente acontece ao realizador de cinema, enquanto sujeito receptor e emissor de arte:

O cinema é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir a dor
Que na escrita, lida, sente.


Ribeira de Pena, 12 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este texto faz parte de um longo trabalho de seminário que concluí em 2008, no âmbito do ano curricular do meu Doutoramento em Literatura Portuguesa. A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.films-sans-frontieres.fr.]

Inveja, segundo Caneças


No mesmo dia em que, por todo o país, decorria a manifestação da “Geração à rasca”, Lili Caneças aparece na revista “Vidas – Correio da Manhã” (p. 74) perorando sobre o problema maior do Portugal contemporâneo: «a inveja» [sic].
Permiti que contextualize…
Entre outras pérolas filosóficas, a vetusta senhora defende, numa entrevista à “TV 7 Dias” (citada pelo jornalista do CM, Leonardo Ralha), que um reality show envolvendo gente rica terá consequências previsivelmente positivas sobre o povo:

«Se virem pessoas que vivem bem, podem pensar que, se trabalharem, também podem ter uma vida assim.»


Depois, recorrendo ao seu (decerto) enciclopédico conhecimento do mundo, explica que o problema dos portugueses é serem «acomodados e invejosos», ao contrário do que sucede – aprendamos todos! – na Índia:

«Na Índia não há inveja; os pobres acreditam que foi Deus que os fez assim – e não invejam os ricos… Caso contrário, aquela imensidão de gente matava os marajás todos.»


Parece-me perigoso e injusto desvalorizar estas teses da mediática anciã. Com efeito, em vez de andarmos – com textos, manifestações, petições, moções de censura, votos, etc. – a aborrecer os marajás da vida, talvez devêssemos (também) acreditar que é tudo obra do Criador.
É verdade que, de um ponto vista meramente conceptual, a argumentação tem consequências pouco simpáticas para a figura de Deus, assim reduzido (convenhamos) a um sádico de primeira apanha.
Mas, do ponto de vista do quotidiano português, atenção, tem as suas vantagens: assim se salvaguardaria dignamente, talvez, a imagem, a tranquilidade e o bem-estar dos varas, dos mexias, dos bavas, dos loureiros.
E das lilis, claro.

Vila Real, 12 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto foi colhida, com a devida vénia, em http://www.inepcia.com.]

Manifestação da Geração com Toda a Razão


Estou convosco, espoliados-traídos-explorados-enganados-vigarizados-roubados.

Estou contigo, Vânia!

Ribeira de Pena, 12 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

Vida gloriosa do senhor Joaquim Antunes


O senhor Joaquim Antunes é funcionário dos correios, na baixa de Coimbra. A sua casa fica nem cem metros a norte da loja empregadora. É uma casa velha e modesta, de renda baixa, com as paredes saudosas de tinta e o soalho muito amante da humidade e do caruncho. Tem uma filha, que é advogada de razoável sucesso na Figueira da Foz. A esposa foi sempre doméstica e, tirando as dificuldades de visão, é uma cinquentona bastante saudável.
A rotina é, para o senhor Joaquim Antunes, uma boa amiga. Levanta-se todos os dias às sete e meia da manhã, toma o seu rápido banho, trata do hálito, das pilosidades e do cabelo (tudo em sete minutos), veste-se com vagar e rigor, toma um café e come uma torrada. Depois, passa ainda pela pastelaria Saturno e alimenta o sangue de uma chávena mais de cafeína, enfim começando, pontualmente, o serviço distribuidor às nove. Ao almoço, beija a mulher, vem com ela até à Praça 8 de Maio em passeio de namorados serenos, despede-se pela uma e meia da tarde e recomeça, com a mesma britânica disciplina, a sua lida profissional às catorze horas.
De tarde, passa pelo Núcleo Sportinguista do Arnado, bebe um, dois copos de vinho tinto, come (nem sempre) umas pataniscas de bacalhau, conversa e ri sobre a vida e, assobiando uma modinha da juventude, regressa a casa nunca depois das oito da noite.
Já teve carro, agora não. Era muita despesa e muita preocupação: gasolina, seguros, imposto de circulação, inspecção periódica, manutenção (travões, óleo, pneus, filtro de ar), e o dinheiro de um funcionário não estica. Pelos mesmos motivos, não tem cartões de crédito e há muito desistiu de contrair empréstimos - por isso lhe diz pouco, aliás, este rumor de pânico que parece acompanhar, nas pessoas e nos jornais, as notícias de juros subindo, de taxas euribor, de revisões de spread.
O seu luxo é, de vez em quando, meter-se com a mulher no comboio ou na camioneta e ir à praia: em Mira, na Tocha ou na Figueira da Foz, percorre longamente as marginais ao mar, com a sua namorada de sempre, numa espécie de eternidade provisória que mais ninguém, senão os amantes, poderia perceber.
Ao fim de semana, gosta muito de ler no pátio soalheiro que, em lugar inacessível aos olhos dos que passam na rua, circunda parte da sua casinha. Também, Deus lhe perdoe, escreve. Raramente se aventura na poesia, mas gosta de imaginar e, mais raramente, de escrever contos sobre detectives, marinheiros e crianças aventurosas.
Espera pouco da vida, por crer que tudo quanto tem é tudo quanto há para ter.
Quando a filha está com o casal progenitor, Joaquim Antunes sente-se completo como uma obra de arte.

(E este é o Joaquim que eu gostava tanto de ser.)

Ribeira de Pena, 12 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem da gravura é da autoria de Stuart de Carvalhais.]

sexta-feira, 11 de março de 2011

Discurso da Primavera improvável


Apetecia-me muito um país livre da mediocridade, da hipocrisia, da ingratidão e da estupidez. Eu sei, eu sei: também eu próprio habito, por não poucas vezes, alguns desses lugares da miserável condição humana. Mas lá o reconheço. Mas lá me arrependo. Mas lá me consumo de remorsos.
Sou, perdoai, um bocadinho diferente deste país geral. É nesse bocadinho diferente que está o meu desconforto quase todo. Eu estaria talvez melhor se conseguisse ser um bocadinho mais geral, não é verdade?
Apetecia-me um país melhor, eis tudo. Sei, sei: não há esse país, e se há não é aqui.
Isto, enfim, deve ser cansaço, isto é, uma pedra no coração.
Ainda há alunos que, no final do segundo período, não sabem conjugar o verbo être.
O senhor ministro das finanças diz que há mais medidas de austeridade prontinhas a servir.
Telefonaram a dizer que não podes.
O senhor primeiro-ministro diz que a educação está muito melhor.

O senhor presidente da República diz que os jovens, coitados, sofrem.

Uma pedra no coração, como vos disse. Não há aquele país, eu sei.
Cansaço. Invade-me o espírito uma volúpia perigosa - a de um abismo para onde, caindo, pudesse hibernar deste presente estúpido, desta vida à razão de juros, desta desilusão geral que governo e vida e mundo são.
Adeus, adeus.

Ribeira de Pena, 11 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A pintura ("Alegoria de Primavera", 1482) é de Botticelli.]

quinta-feira, 10 de março de 2011

Bem-vindo, João


No dia 24 de Fevereiro, nasceu-me um novo sobrinho chamado João. A data coincide com a da morte de meu pai, há quatro anos.
Isto é, a vida continua. Nós, mal permanecendo, vamo-nos.
É assim. Vivò João!

Arco de Baúlhe, 09 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

segunda-feira, 7 de março de 2011

Museu pessoal


Um grupo de alemães desce da Faculdade de Letras para o Museu Machado de Castro. É uma família: o pai tem barba ruiva, usa óculos de aros redondos, aconchega na barriga alguns litros a mais de cerveja e idade; a mãe (cinquentona como herr esposo) é loira, de olhos azuis, o vestido fica-lhe bem, apesar da bunda brasileira; as duas filhas andarão pelas idades indefinidas dos 16-18 anos, vestem como hippies de há quatro décadas, uma delas apresenta uma impressionante cartografia de borbulhas, a outra canta uma coisa qualquer em inglês.
Cruzo-me com estes turistas ali pela entrada lateral da Faculdade de Medicina. Eles vêem-me passar com duas malas muito pesadas e um saco a tiracolo. Devo parecer-lhes um marroquino transeunte, vendedor de tapetes ou de bijuterias. Nunca adivinharão que carrego difucultosamente, desde a Rua Padre António Vieira, vinte volumes de enunciado académico, mailos currículos e os cedês. Nunca adivinharão que aquele exercício violento cumpre a formalidade pré-terminal de um doutoramento (a)venturoso, que tem um bocadinho de épico, outro de lírico, muito (talvez) de patético.
Os alemães vão para o Museu Machado de Castro, oxalá o encontrem aberto ao público. Buscam, neste país a seus olhos estrangeiro, pedaços de Memória universal.
Eu, que elaboro na cabeça o meu museu pessoal, sorrio a caminho da Nissan Primera. Turista de mim próprio, admiro-me desta loucura iniciada há quase quatro anos, devoradora de dinheiro, de tempo, de dioptrias, de sangue.
Ao fundo da curva, está ainda não o fim, mas o meu carro.

Coimbra, 07 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.acabra.net.]

domingo, 6 de março de 2011

Homens da Luta


Os Homens da Luta ganharam o Festival da Canção. Alguns espectadores, escandalizados e sofrendo evidentemente de alergia burguesa à irreverência de Jel & Irmão, saíram da sala de forma abrupta. Abruptos, pois. À bruta.
A pior direita é malcriada e, como a pior esquerda, intolerante.
Eu, que não vejo o Festival da Canção desde (talvez) a vitória da Dulce Pontes, estou contente. Muto contente, pá!

Coimbra, 05 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

sexta-feira, 4 de março de 2011

Mesma canção


Dia confuso, corrido, fundamentalmente triste.
Deveria estar em Coimbra, com o Daniel, oferecendo-lhe o magro agasalho da minha presença, na hora da partida de sua Mãe. Mas...
Tinha, antes, de esperar pela impressão/encadernação da tese (2 volumes X 10 cópias = vinte volumes), em Vila Real, para entregar na segunda-feira, em Coimbra. E havia trabalho inadiável na escola. Sei que a minha filha esteve no funeral, e era eu também, no fundo, estando no funeral.
A verdade é que me senti, durante todo o dia, apesar das palavras magnânimas do meu Amigo (ao telemóvel), no lugar errado do mapa. Deveria estar em Coimbra. A sensação era a de estar praticando uma vil traição lesa-irmãos.
Pelas cinco da tarde, um grupo de alunos da Escola Básica de Arco de Baúlhe cantou "A Paixão", de Rui Veloso/Carlos Tê. Por segundos, emocionei-me. A letra tem aquela frase poderosa - "Não se ama alguém que não ouve a mesma canção".
A minha história com os que estimo tem a ver com essa ideia:
residi(r)mos na mesma música.
Gostava que o Daniel e o Fernando acreditassem nisso e me perdoassem.

Ribeira de Pena, 04 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

quinta-feira, 3 de março de 2011

Mãe do Daniel


Faleceu a Mãe do meu Amigo Daniel Abrunheiro.
Como se fosse comigo, curvo-me perante a sua Dor.
Corrijo: é comigo.
Abraço o maior possível para o Daniel, o Fernando, a Família da Senhora D. Hermínia Leite dos Santos em geral.

Arco de Baúlhe, 03 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto foi colhida no blogue do Daniel, http://www.canildodaniel.blogspot.com.]

quarta-feira, 2 de março de 2011

Beleza - efeitos secundários


Luz, levitação, leveza
Às vezes água.
Isso me faz a Beleza
Antes da mágoa.

Vila Real, 02-03-2011.
Joaquim Jorge Carvalho
A pintura de Claude Monet (“Mulheres no jardim”, 1866) foi colhida – com a devida vénia – na wikipédia.]

Parábola da repetição


Somos, digo-vos, repetições
De outras eras, coisas, passos.
Repetimos, por exemplo, corações
Desilusões, cansaços.

Olhai esta mulher rara
Comendo pão ao balcão –
Como Inês de Santa Clara
Roubando a Pedro a razão.

Entre a galega loira tão amada
E a minha de si pulcra tentação
Há aritmética, mais nada
Que humana se repete a condição.


[Ó tão incompleta eternidade
Este fascículo de estar vivendo!
Ó presente, feliz talvez, correndo
Rumo à bruta, a haver, saudade!]


Linda Inês, come o teu pão
(Também dele me alimento).
Sou Pedro d’ocasião:
Corra o sangue em vez do tempo!

Vila Real, 02-03-2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A pintura de Pierre-Auguste Renoir (“Mulher com sombrinha” , 1867), foi colhida – com a devida vénia na wikipédia.]

Pai cadente


Uma espécie de orgasmo de luz cruza o céu. Estrela cadente, talvez. Mas poderia ser um anjo (senão Alguém maior) cambaleando entre planetas, ébrio ou doido, involuntariamente iluminando o universo com a beleza luminosa da folia.
Apesar do frio teimoso, este dia 1 de Março de 2011 acaba num aconchego simpático de muita luz. Tantas são as estrelas interrompendo a noite da minha viagem que, por minutos, regresso a um Natal qualquer da minha infância.
Se a polícia se atravessar no meu caminho, faço de conta que tenho 47 anos e que sou uma pessoa responsável e cumpridora. Por dentro, hei-de rir-me como um anjo bêbedo, cabriolar entre Vénus e Júpiter, inseminar o universo do brilho puro que uma vez fui, fomos todos.
E agora me ocorre que a estrela talvez cadente, entre Cabeceiras e Ribeira de Pena, era o meu pai correndo atrás de mim, ou eu dele, agora e para sempre.

terça-feira, 1 de março de 2011

A primeira


Chegado Março, as andorinhas priam.
Isto é, fazem pri.
Isto é, dizem (já) a primeira sílaba da Primavera.

Coimbra, 28 de Fevereiro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, na Wikipédia.]