Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

segunda-feira, 14 de março de 2011

A Erva Amarga


Marga Minco, conheceis?
Por um eurinho, no hipermercado do costume, comprei o romance A Erva Amarga, desta escritora holandesa. Um achado!
É impossível ler o romance sem ter, como um eco d'alma, a leitura de O Diário de Anne Franck, de Se Isto é Um Homem (de Levi) ou de O Mundo em que Vivi (de Ilse Losa). Também aqui encontramos a ignóbil pata do nazismo trucidando indivíduos, obras, humanidade.
De singular, encontrei no romance (autobiográfico) de Minco um modo de contar muito hábil, que nos vai dando conta, pelos olhos inocentes de uma criança, das sucessivas transformações que a bestialidade impõe às existências simples. Aparentemente, o relato ocupa-se de aspectos demasiado triviais e, dir-se-ia, despiciendos (do ponto de vista da narrativa) do quotidiano de uma família: refeições, brinquedos, roupas. Mas essa é,afinal, a base da eficácia romanesca: percebemos, página a página, que a história contada virá a ser sobretudo uma espécie de narrativa de perdas. Marga perde a tranquilidade, a liberdade, a casa, a companhia dos mais queridos, a infância, a vida como era...
Isto é, o romance dá-nos conta, pacientemente, aturadamente, de uma normalidade. É a intolerância nazi que, depois, vai privando, hora a hora, objecto a objecto, a personagem principal dessa normalidade que era, voilà, a felicidade. Lendo o relato, sabe-se isto, sentindo-se isto.
No final da história, sabemos da provável morte (nos campos de concentração) dos pais e irmãos da autora. Mas, antes de termos a certeza de tal, conhecemos o tio (paterno) de Marga. Com o fim da guerra, este homem tornara-se um atento e obsessivo observador de eléctricos, e não conseguia, de manhã à noite, separar-se de uma certa paragem onde - achava, cria ele - chegariam de repente os familiares há tanto tempo não vistos. Mesmo quando tomava as suas refeições, este judeu procurava o ângulo certo da sala ou da cozinha para continuar observando o lugar exacto onde os eléctricos paravam...
O tio de Marga morreria sem que, infelizmente, se realizasse o doido sonho. A terminar a obra, a narradora despede-se da tia (mulher do sonhador) e caminha pela rua fronteira à casa. Dou-lhe, devolvo-lhe a palavra:

"Devagar, caminhei para a paragem. Já tinha visto que ainda não havia nenhum eléctrico. Mas havia chegado entretanto um do outro lado. // Fiquei a ver a pessoas que saíam, como se esperasse alguém. Alguém com um rosto familiar, ali na frente do meu. Mas faltou-me a fé do meu tio. Eles nunca mais regressaram: nem o meu pai, nem a minha mãe, nem a Bettie, o Dave ou a Lotte."
(Cf. Marga Minco, A Erva Amarga, trad. de Maria Clarinda Moreira, Lisboa, Editorial Teorema, 1997, p. 117.)

E o livro termina com esta certeza. Não há mais páginas, (porque) não há mais esperança.
Um grande livro, senhores, que valeu o meu Domingo inteiro.

Ribeira de Pena, 14 de Março de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

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