Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Contemporâneo




O rio descemos juntos, meu irmão
E juntos somos parte da paisagem;
Talvez haja mar no fim, ou não –
Mas, ai, juntos somos a viagem!

Arco de Baúlhe, 28 de Setembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (a lembrar a viagem de Huck, escrita por Twain) foi colhida, com a devida  vénia, em http://www.fotosearch.de.]

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Fotografias antigas (Notas a sépia) - 3

Muito Bom

Percebi muito cedo que copiar um texto para o caderno, como fazíamos na escola primária, não era já bem copiar um texto. Era mais experimentar certo mesmo caminho, de letras e sentidos, que outra pessoa fizera; sentir nos dedos e na cabeça (às vezes também no coração) as mesmas ideias que outrem sentira; fazer uma cúmplice ginástica de sintaxe e de melodia, irmanado no mesmo ofício da comunicação que alguém (por si, por mim, por nós, connosco) inaugurara.
A minha caligrafia, aí pelos oito anos, era já tão formosa como poderia jamais ser. (A lembrança é ainda mais dramática quando hoje dou por mim a inscrever gatafunhos ilegíveis nos meus diários de bordo!) De modo que, em 1971, a professora (dona Angélica) fez-me uma festinha no crânio e cumprimentou-me publicamente pela perfeição caligráfica, num elogia público que despertou sorrisos na menina Manuela João, a mais bonita (a par da Beatriz) das condiscípulas. A classificação da professora – “Muito Bom”, mãe! - ficou no lado direito da folha como uma certificação de excelência olímpica. Mas o mais importante, soube-o logo, era depois eu lembrar-me para sempre de algumas palavras estranhas e rigorosas, bem como de inteiras frases lindas sobre Portugal, tudo tesouros que o texto copiado me ensinara.
Não só tal, confesso. Numa espécie de continuidade poética, permaneceria também o orgulho da minha mãe e, mais distraído, do meu pai.
E ainda aquele sorriso da Manuela João em tudo quanto eu para sempre visse nos dias seguintes à glória de bem escrever.

Arco de Baúlhe, 25 de Setembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Fotografias antigas (Notas a sépia) - 2

O primeiro dia

Chego à escola pela primeira vez. É em Lavacolhos, Fundão. Hei-de por lá ficar durante duas semanas, modo encontrado pelos pais para contornar a impossibilidade de matrícula em Coimbra, na Escola do Casal Ferrão. A professora, Dona Angélica, tinha dito que só no ano seguinte seria possível o meu ingresso no mundo dos livros: havia muitos alunos inscritos em Coimbra e eu só completava os seis anos em Abril...
Lavacolhos é a terra do meu avô materno, António dos Reis Mateus. Há por lá ainda tios e primos afastados. A terra afigura-se-me, à primeira vista, um planeta estranho, rude, frio. Minha mãe, carregando ao colo a Fátima (irmã mais nova, quatro anos apenas), lá tenta despedir-se, mas eu agarro-me desesperadamente à sua mão.
- Tem de ser - assevera.
Choro. A professora desta escola iniciática chama-se talvez Natália. Nós diremos sempre, em vez do seu nome, "Senhora professora". É uma mulher já antiga, pouco afectuosa. Puxa-me com vigor para a segunda carteira da direita e sugere à minha mãe que volte ao meio-dia.
Vejo as lágrimas da minha mãe através das minhas próprias lágrimas. Há mais gente como eu e a minha mãe naquela manhã de Outubro. E há mais lágrimas como as nossas. Os meus colegas, conhecidos já uns dos outros, miram-me com curiosidade trocista.
A minha mãe parte. Experimento a solidão mais triste de todas. É como se me obrigassem a nascer outra vez e não houvesse à minha espera qualquer aconchego compensatório.
Depois, a professora desenha no quadro: a e i o u. Nós repetimos e os sons vão-se casando, na minha memória, com as letras, até se tornarem - letras e sons - coisas unas, indissolúveis, lógicas.
Com isto, uma felicidade instala-se e troco as lágrimas do início por um sorriso grato.
Ao almoço, mostro à minha mãe o que aprendi. A minha mãe acaricia-me. Decido-me a saber mais e a fazer mais para outras (futuras, novas) carícias merecidas.
Desde aí que a minha vida é um pouco construída nesse sentido: mostrar-me à minha mãe, ser digno das suas carícias.

Arco de Baúlhe, hora d'almoço, 20 de Setembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Quadra contra desistir


Some-te de mim, Saudade!
T’arrenego, Depressão!
Só perdi a Mocidade –
O resto, não!


Ribeira de Pena, já  18 de Setembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.umpovoarasca.blogs.sapo.pt.]

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Fotografias antigas (notas a sépia) - 1


A Cópia

O Tó estava a fazer não sei o quê com um caderno e um livro na mesa da sala. Era talvez Dezembro de 1968, não mais que cinco da tarde. O irmão do Tó perguntou-lhe:
- Não vens, Tó? Eles já estão à nossa espera.
Verdade. Os nossos amigos (Luís, Rui, Helder, Júlio, Mário, Zé Paulo, Jaime …) estavam no campo da Escola do Casal Ferrão, ali onde é agora o Lidl. O Tó disse-me:
- Vou já. Só me faltam duas linhas.
Impaciento-me.
- Mas o que é que estás a fazer?
- Uma cópia – respondeu o Tó.
- O que é uma cópia?
- É passar estas palavras para o caderno.
- Ah! – quase percebi. – Tens de pôr no teu caderno a mesma coisa que está no livro?
- Tenho.
Pus-me a reparar melhor no movimento do lápis fraterno. Detectei diferenças entre as letras impressas e as que manuscreviam.
- Mas o que estás a escrever não é igual ao que está no livro …
- É, pois. Só que a gente escreve a mesma coisa de maneira diferente.
Fiquei-me ali a pensar. Como é possível escrever-se a mesma coisa à nossa maneira?
Depois, o Tó leu em voz alta para a minha mãe e eu encantei-me com uma história simples que envolvia uma casa e uma menina a falar da sua escola. Era uma história, digamos assim, de outra pessoa contada como se fosse a do Tó ou, num futuro qualquer, a minha.
Eu tinha cinco anos e acabara de provar o fruto, apetecido para sempre, da literatura.
A seguir, fomos enfim jogar futebol e a minha mãe tratou da sopa com a habitual serenidade.

Ribeira de Pena, 17 de Setembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

[Ando a escrever (demoradamente) um romance. Entretanto, apeteceu-me  iniciar um conjunto de notas biográficas a que decidi chamar “Fotografias antigas (Notas a sépia)”. Ilustrarei, em devido tempo, estas linhas com fotos dos mundos que fui vivendo. Provisoriamente, ficará a ilustrar o texto esta foto colhida, com a devida vénia, em http://www.envolverde.com.]

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Novos Contos do Vigário


Agora, rouba-se de modo mais sofisticado, moderno, eficaz. Gentilmente, engravatadamente, publicamente, anunciam-nos a forma, o montante, até a data da extorsão.
Os velhos metralhas, comparados com os novos metralhas, eram afinal uma cambada ingénua e razoavelmente inócua.

Ribeira de Pena, 11 de Setembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.paduacampo.com.]

Manuel António Pina


A (ainda viva) RTP 2 ofereceu-nos, nesta noite de 10-09, um magnífico documentário sobre o escritor Manuel António Pina (trabalho com realização de, salvo erro, Ricardo Espírito Santo).
Manuel António Pina é um dos grandes artífices da Língua Portuguesa moderna, brilhante em quase tudo quanto se mete a fazer em matéria de literatura – poesia, claro, mas também teatro, mas também narrativa. Eu gostava que ele se decidisse a escrever um romance! Se ele um dia o fizesse, seria decerto um grande romance.
Quem conhece a literatura de Pina, percebe como a boa escrita se funda fundamentalmente no uso certo e belo da linguagem e, em concomitância fatal, na (re)invenção constante da linguagem. O real é para aqui chamado: é no regaço do mundo que se percebe a gente; é nos sonhos de cada um que se percebe que o sonho é sempre o mesmo, embora plural (sair-se de nós e voar); e é nos lábios das pessoas que afinal cada verso nasce, que cada verso se diz (ainda que tudo nasça do silêncio anterior à enunciação).
Um dos amigos do escritor sublinhava o facto de Manuel António Pina, apesar de ser uma fonte constante de lucidez, graça e encantamento, nunca se levar a sério. Esse desprendimento, que me parece natural no poeta de Nenhuma Palavra Nenhuma Lembrança, pode enganar-nos, isto é, julgar a gente que ele é, na nossa contemporaneidade, apenas mais um, e em boa verdade tratar-se de um vizinho de nós que já é imortal.
Hoje à tarde, uma estimável senhora confessava-me o seu apreço pelo “escritor” José Rodrigues dos Santos. Eu descuidadamente chamei, ao escritorastro, “vendilhão”. Perdoai-me, não era bem isso que queria dizer. Mas ocorre-me comparar o telejornalista a Manuel António Pina (e a Mann, e a Daniel Abrunheiro,  e a Vergílio Ferreira, e a Saramago, e a Mário de Carvalho, e a Italo Calvino, e a Luísa Costa Gomes, e a García Márquez…). Vista a coisa deste ângulo, o rapaz dos telejornais escreverá, sim, mas aquilo não é bem literatura.

Ribeira de Pena, 10 de Setembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (de um belíssimo livro intitulado Nenhuma Palavra Nenhuma Lembrança) foi colhida, com a devida vénia, em http://paginaliterariadoporto.com.]

domingo, 9 de setembro de 2012

O Processo


Roubam-me e explicam-me despudoradamente a bondade do roubo.
O meu país está dentro de um romance de Kafka.

Ribeira de Pena, 09 de Setembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.linkedbooks.blogspot.com.]

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Café Mundo


 O mundo cabe todo num Café do Arco. Eu aqui mais o que vejo, o que sonho, o que leio, o que sinto e, até, o que escrevo. O mundo todo, acreditai: barcos e mesas, cadeiras e mares, mãe e pai, infância e História, canções e silêncios, coisas ditas e coisas por dizer, aqui e Coimbra.
Atravesso a estrada, cai-me uma esferográfica, baixo-me para a recuperar. Um velho mira-me com ar trocista. Grito-lhe do outro lado da rua com o olhar: Sorri, à vontade, amigo! Sorri, meu caro conterrâneo de ocasião! Sorri! Conheces-me decerto...
Como certamente sabes, eu sou o mundo.

Arco de Baúlhe, entre reuniões, 06 de Setembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem ("Mesa de café", óleo sobre tela de Ernst Ludwig Kirchner, 1923) foi colhida, com a devida vénia, em http://www2.uol.com.]