Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

5 Quadras & 1 Sextilha (tudo por amor)

  


O meu amor é concreto, literal
Terreno e corpóreo. E tem
Cheiro, pele macia, algum sinal
Um certo paladar que sabe bem.

Não posso descrevê-lo por figura
De estilo esquisita, burilada:
O meu amor não quer senão ternura
E ri-se da paixão metrificada.

Ai, o meu amor é tão moderno!
Por exemplo, eu constipo-me amiúde
E adiamos beijos no Inverno
Por puros motivos de saúde.

Amo em meu amor quanto ele tem:
O olhar sereno-doce, ou a voz rouca
Gosto de sentir a sua boca
Na minha, sem saber qual é de quem.

Nunca lhe falo de eterna paixão
Por ser algo abstracto o sentimento;
Amo o meu amor neste momento
Como é de quem ama obrigação.

Com o meu amor, vou por aí
Simplesmente feliz. E se houvesse
Literatura que dissesse a alegria
De estar fisicamente junto a si
(Pode haver, mas nunca vi)
Eu, meu amor, comprá-la-ia.

Cabeceiras de Basto, 26 de Janeiro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
Participei, com este poema, no Concurso de Textos de Amor Manuel António Pina – 2017, uma organização do Museu Nacional de Imprensa. O júri foi constituído por Fernando Pinto do Amaral (Director do Plano Nacional de Leitura), José Luís Pires de Laranjeira (Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), Luísa Marinho Antunes Paolinelli (Professora da Universidade da Madeira) e Luís Humberto Marcos (Director do Museu). No dia 18-11-2017, tive a honra de receber uma simpática menção honrosa e de conhecer Ana Pina e Sara Pina, as duas filhas do grande - e para sempre vivo - Manuel António Pina. Nota importante: retirei, com a devida vénia, estas fotos da página de Facebook do Museu Nacional de Imprensa. Numa delas, estou com uma formosa fadista (infelizmente, não consigo recordar-me do seu nome), de cujas mãos recebi o meu diploma. Na outra, vemos Ana Pina, Sara Pina, Luís Humberto Marcos e o Professor Pires de Laranjeira.]

ZONA DE PERECÍVEIS (113)



Elogio do aforismo

- Lembro-me de, em menino, estar febril, vomitando aos soluços, já sem forças para me queixar ou pedir socorro. Invariavelmente, era a minha Mãe quem operava o milagre do consolo e da esperança. Estava ali, omnipresente como Deus, a temperar de amor o sofrimento mais negro, colocando as suas mãos sobre a minha testa, amparando-me a cabeça.
- Mãe é Mãe.
- Sim, mas o que digo aqui é mais do que o teu provérbio diz. Sabes, o tempo deu entretanto a volta, e acontece-me agora, por vezes, ter a minha Mãe com febre e vómitos, sem forças já para se queixar ou pedir socorro. Tomo, nessas ocasiões, as suas mãos nas minhas, como se ela fosse uma menina em apuros, e eu fosse, quiçá, o seu Pai, e faço-lhe festinhas na cabeça, ou seguro a sua testa enquanto lhe sucedem os arrancos de estômago.
- Filho és, Pai serás. E amor com amor se paga.
- Pois, mas creio que o fenómeno não cabe em simples ditados populares. Vê que os mistérios da vida são demasiado complexos para tão pobre literatura. Há na nossa existência aspectos insondáveis à luz dessa linguagem tão rudimentar. Estou a lembrar-me do desvalor que até o maior dos lingrinhas atribui à própria vida em comparação com a de um ente visceralmente amado. Eu e a minha Filha, por exemplo. Tenho de perder conforto para ela estar bem? Perco-o, sem hesitações. Tenho de não dormir para ela poder descansar? Não durmo, naturalmente. Tenho de morrer para ela viver? Morro, claro.
- Amor, a quanto obrigas! E quem tem coragem, tem vantagem.
- É verdade, mas não é decerto apenas disso que se trata. Há uma espécie de superior dimensão em tudo quanto envolve o Amor. É, estou convencido, o maior enigma de todos os tempos e de todos os lugares. Que força é esta, caramba? De onde vêm tantos (infinitos) volts para tal luz? De que nascente surgem as inestancáveis lágrimas pela perda de certa amada gente? De que droga deriva tamanho ânimo, que nos resgata dos pântanos mais traiçoeiros e nos impele às subidas mais impossíveis, nos torna heróis semelhantes aos de mitos ou de banda desenhada, nos garante a resistência a todas as provações?
- Diz-se que a fé move montanhas.
- Pois, mas deve ser mais do que isso. Já to lembrei: um mero aforismo não pode ser capaz de dizer quanto te venho aqui dizendo.
- Os provérbios são a voz do povo.
- Serão, talvez, mas tudo quanto aqui te trago, amigo, precisa de uma linguagem maior. De uma linguagem (estava a ver se evitava este adjectivo) divina.
- A voz do povo é a voz de Deus.

Coimbra, 19 de Novembro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 23-11-2017. A imagem foi colhida, com a devida vénia, em https://laisladesiltola.es.]

domingo, 19 de novembro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (112)



A um jovem professor

O filho de um amigo, estudante do 7.º ano de escolaridade numa escola em Coimbra, confidencia-me o seu gosto pelo estudo, sobretudo pela literatura. Adivinho que será bom aluno, em particular a Português. Ele confirma, mas obtempera: “Não vou ter nível 5. Vou ter 4.” Pergunto: “Porquê?” E ele responde: “A professora não dá nível 5 no primeiro período. Tem medo de que os alunos desçam no segundo…
Conheço há muito esta “filosofia” (e as aspas sou eu a rir-me tristemente.) Tenho falado bastante sobre o fenómeno, em contextos formais ou informais, e desconfio de que numerosos colegas não têm já paciência para aturar a minha indignação. Esta opção por atribuir nível 4 a alunos que mereceriam 5, à luz dos critérios definidos, não é apenas ilegal – é pouco inteligente.
Costumo trazer à discussão o programa de Português, dividido geralmente em três macro-conteúdos: texto narrativo, texto dramático e texto poético (claro que estou a resumir, por óbvias razões de economia enunciatória). Imagine-se que, no primeiro período lectivo, enquanto estudava a narrativa, o aluno estava “nas suas sete quintas”, participando activamente nas aulas, obtendo excelentes resultados nos testes, cumprindo – com denodo, entusiasmo e brilho – as suas tarefas. O docente, por capricho pessoal, recusa-lhe o nível máximo. Chega o segundo período: o aluno, para além de (quem sabe?) descorçoado com aquele nível 4, vem a revelar-se menos bom no estudo do texto dramático, seja porque lhe desagrada esse modo literário (ou a escolha de autores obras para o estudo da matéria), seja simplesmente porque está menos focado nos deveres escolares durante aqueles meses de Janeiro-Fevereiro-Março, eventualmente passados a curtir desgostos amorosos ou desportivos. O professor volta a atribuir-lhe o nível 4, senão o 3. E dirá, imagino eu, com pacóvia assertividade: “Eu não dizia? Olha se eu lhe tivesse dado o 5…
Ora, a putativa conclusão do putativo docente é pouco séria, desculpai-me a franqueza. Se o aluno, após ter obtido nível 5 no primeiro período, tivesse registado um menor rendimento no decurso do segundo, que problema haveria em propor, nesse caso, a descida do nível 5 para o nível 4 (ou mesmo o 3)? Problema, de facto, é conseguir “devolver” ao aluno o nível merecido no primeiro período, se a criança ou jovem vítima desse “roubo” não mais repetir, ao longo do ano escolar, a excelência do rendimento inicial.
Creio que, em muitas circunstâncias, bastaria aos professores a generosidade (i.e., a humildade) de ver cada situação através dos olhos dos seus alunos, no sentido de bem aferir dos prejuízos ou dos ganhos pedagógico-pessoais das decisões tomadas. Atrevo-me a dizer que a maioria dos meus colegas tem esse cuidado (e ainda bem).
Quando, em 1985, iniciei a carreira de professor, disse aos alunos, logo ao primeiro dia, na apresentação, que contava já com dezasseis anos de experiência. O meu público riu-se, divertido, como se aquela afirmação fosse uma piada. Pois como poderia alguém tão novo (com vinte e dois aninhos cheios de frescura e acne) ter já dezasseis anos de experiência?
Expliquei-lhes, cordialmente, que estava a contabilizar os meus anos “do outro lado”, como estudante, testemunha (como eles) das melhores práticas e das piores barbaridades. O velho professor que sou hoje tem um recado para o jovem professor que fui em 1985: “Tinhas razão, pá.”

Vila Real, 11 de Novembro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 16-11-2017. A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.construirnoticias.com.br.]

terça-feira, 14 de novembro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (111)


A ilha dos tesouros

Ando a telever, com fidelidade canina, uma série genericamente intitulada “A Ilha”, que passa na Sic Radical e vai já na 2ª série. Em boa verdade, não obstante a aparência de documentário, trata-se de um “reality show”, visto que os protagonistas são cidadãos britânicos, tão comuns como eu e os meus caros leitores, ocupados – todos – com a questão da sobrevivência em contextos difíceis.
A produção do programa leva alguns indivíduos (homens, num dos casos; mulheres, noutro) para uma ilha do Pacífico, desabitada e inóspita, ainda assim com recursos teoricamente suficientes para se sobreviver. Os novos ilhéus recebem, à partida, cinco machetes, cinco anzóis e alguns (rudimentares) apetrechos (por exemplo, uma panela e um bidão metálicos). Terão, depois, de ser capazes de construir abrigos e camas, de fazer uma fogueira e mantê-la, de defender-se dos perigos à solta na ilha, de recolher água e fervê-la (para a tornar bebível sem riscos fatais), de pescar, de caçar, de recolher frutos, tubérculos, moluscos, larvas.
Estão radicalmente entregues a si próprios (as próprias filmagens, realço, estão a cargo destes neo-insulares). Só em último recurso poderão solicitar ajuda do exterior, nomeadamente em caso de desistência ou de problemas graves de saúde. Cada dia é uma luta tremenda. Arranjar comida ou água, tratar de feridas, resistir à inclemência da chuva ou do calor – tudo assume uma dimensão única e épica. A mim, na confortável condição de espectador, comove-me o (raro) sucesso da pesca, a morte de um caimão às mãos de um operador de câmara e de um técnico de informática, a descoberta de uma poça com água suficiente para alguns dias. Ali, dia após dia, cada indivíduo encontra em si e em cada um dos outros as aptidões que, conjugadas solidariamente, tornam menos penosa a sobrevivência.
Ainda que diferidamente, é como se reencontrasse Swift, Defoe, Tournier, Fielding, Camões, Fernão Mendes Pinto, Calvino, Stevenson – e novamente me tornasse cúmplice da aventura fundadora da existência humana, conhecendo e dominando a Natureza, superando os perigos e o sofrimento, resistindo à penúria e ao desânimo.
Tal como percebera, em outras ocasiões, pela literatura de viagens, confirmo nesta série que boa parte do valor da vida está no mérito de ultrapassar os obstáculos e as dificuldades concomitantes ao verbo viver.
Em certo momento, um dos aventureiros fala do aparente paradoxo que há na ilha, por se tratar de um espaço majestosamente belo e mortalmente perigoso. Acrescenta (cito de cor): “Não é só o facto de, aqui e ali, enfrentarmos ratoeiras. É toda a ilha ser uma ratoeira!” Ora, a piada desta observação está no seu potencial metafórico: basta que substituamos “ilha” por “vida”.
Há dois tesouros fundamentais que retiro de quanto tenho televisto para a nossa moderna e mui sofisticada existência:
a) o que temos e damos normalmente por vulgar & adquirido é, se visto sob um ângulo essencial e justo, coisa muitíssimo preciosa;
b) só é possível a sobrevivência de cada um com o esforço (inteligente, concertado e solidário) de todos.

Vila Real, 05 de Novembro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 09-11-2017.]

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (110)



O inferno dos outros


Há muito que ouço um argumento falacioso e adivinhadamente disruptivo sobre as carreiras da função pública – o de que a velhice tem elevados salários à custa da miséria dos novos que iniciam a profissão: “No começo da vida é que precisamos de dinheiro”, escuto eu aqui e ali. 
Não foi preciso que deviesse velho para me aperceber da injustiça e do erro que há nessa visão. Também eu entendo que, em muitas profissões, os jovens em início de carreira são mal pagos e que, em concomitância, têm dificuldades evidentes na construção de uma existência autónoma, fora da casa dos pais, quiçá com cônjuge e filhos. Mas igualmente se me afigura claro o facto de, com a idade, chegarem outras (novas e dispendiosas) exigências a condicionar a sobrevivência – tratamentos médicos, medicamentos crónicos, especificidades alimentares, auxílio a filhos e netos. 
Pior que esta falácia, é o jogo delicado da Culpa: Hitler identificou os judeus como responsáveis por todos os males da Alemanha e do Mundo; noutros tempos e noutras paragens, o estigma recaiu sobre os negros, os cristãos, os muçulmanos, os estrangeiros. Em nome desta ignorância, discriminou-se, perseguiu-se, torturou-se, matou-se (e discrimina-se, persegue-se, tortura-se, mata-se). 
Durante o consulado de Coelho, Portas & Troika, houve quem, à direita, explorasse-estimulasse-potenciasse, sem decoro nem humanidade, a divisão entre velhos e novos, como aliás – também – entre trabalhadores do público e trabalhadores do privado, ou entre população activa e pensionistas. Alguma dessa baba estúpida e perigosa permanece na vox populi. No imediato, esta guerra beneficia, quase sempre, quem governa, pois dirige as frustrações, o ressentimento e a revolta de quem sofre para os alvos aparentemente culpados de todas as crises: os outros; os que, por existirem diferentes de nós nos disputam o espaço, a riqueza, o oxigénio. “L’enfer, c’est les autres”, avisava tristemente Sartre. 
Há dias, em Lisboa, pessoa amiga ouviu um taxista, ainda jovem, sem paciência para as passadeiras urbanas, queixar-se dos “velhadas que nunca mais morrem e andam para aqui a mamar na teta do Estado”. Entre buzinadelas e impropérios, o primata concluiu (e reporto-o como ela mo contou): “Isto só lá vai a tiro, ó menina!” 
Não tenho vocação nem paciência para conselhos sobre partidos e candidatos a escolher em eleições. Mas, como aprecio a civilização, atrevo-me a sugerir que, no momento do voto, se evitem taxistas adeptos da “solução final”. 

Coimbra, 26 de Outubro de 2017. 
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 02-11-2017. A imagem (foto de Jean Paul Sartre) foi colhida na net.]