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Número de Ondas

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (110)



O inferno dos outros


Há muito que ouço um argumento falacioso e adivinhadamente disruptivo sobre as carreiras da função pública – o de que a velhice tem elevados salários à custa da miséria dos novos que iniciam a profissão: “No começo da vida é que precisamos de dinheiro”, escuto eu aqui e ali. 
Não foi preciso que deviesse velho para me aperceber da injustiça e do erro que há nessa visão. Também eu entendo que, em muitas profissões, os jovens em início de carreira são mal pagos e que, em concomitância, têm dificuldades evidentes na construção de uma existência autónoma, fora da casa dos pais, quiçá com cônjuge e filhos. Mas igualmente se me afigura claro o facto de, com a idade, chegarem outras (novas e dispendiosas) exigências a condicionar a sobrevivência – tratamentos médicos, medicamentos crónicos, especificidades alimentares, auxílio a filhos e netos. 
Pior que esta falácia, é o jogo delicado da Culpa: Hitler identificou os judeus como responsáveis por todos os males da Alemanha e do Mundo; noutros tempos e noutras paragens, o estigma recaiu sobre os negros, os cristãos, os muçulmanos, os estrangeiros. Em nome desta ignorância, discriminou-se, perseguiu-se, torturou-se, matou-se (e discrimina-se, persegue-se, tortura-se, mata-se). 
Durante o consulado de Coelho, Portas & Troika, houve quem, à direita, explorasse-estimulasse-potenciasse, sem decoro nem humanidade, a divisão entre velhos e novos, como aliás – também – entre trabalhadores do público e trabalhadores do privado, ou entre população activa e pensionistas. Alguma dessa baba estúpida e perigosa permanece na vox populi. No imediato, esta guerra beneficia, quase sempre, quem governa, pois dirige as frustrações, o ressentimento e a revolta de quem sofre para os alvos aparentemente culpados de todas as crises: os outros; os que, por existirem diferentes de nós nos disputam o espaço, a riqueza, o oxigénio. “L’enfer, c’est les autres”, avisava tristemente Sartre. 
Há dias, em Lisboa, pessoa amiga ouviu um taxista, ainda jovem, sem paciência para as passadeiras urbanas, queixar-se dos “velhadas que nunca mais morrem e andam para aqui a mamar na teta do Estado”. Entre buzinadelas e impropérios, o primata concluiu (e reporto-o como ela mo contou): “Isto só lá vai a tiro, ó menina!” 
Não tenho vocação nem paciência para conselhos sobre partidos e candidatos a escolher em eleições. Mas, como aprecio a civilização, atrevo-me a sugerir que, no momento do voto, se evitem taxistas adeptos da “solução final”. 

Coimbra, 26 de Outubro de 2017. 
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 02-11-2017. A imagem (foto de Jean Paul Sartre) foi colhida na net.]

2 comentários:

Paulo Pinto disse...

Os taxistas, pelo menos os taxistas urbanos, têm uma reputação universal enquanto classe sem papas na língua e com um discurso meio cínico meio brutal acerca das qualidades do género humano e, sobretudo, dos que eles entendem ser os poderosos e/ou privilegiados dentro da espécie. A minha teoria é a de que outras profissões maioritariamente masculinas de motoristas profissionais (condutores de autocarros, camionistas, etc.) são também genericamente assim, só que têm menos interlocutores com quem desabafar.
Subscrevo sem reservas tudo o que dizes, mas o meu ponto de vista é ainda mais sombrio. Há factos objectivos e incontornáveis: a população envelhece todos os anos, e rapidamente; a esperança de vida aumenta, enquanto a natalidade continua muito baixa e assim continuará. Havia, ainda há poucos anos, funcionários públicos a reformar-se bem antes dos 60 anos, e temos conhecidos comuns nessa situação (e não estou a fazer nenhum juízo de valor, apenas constato). Quem tiver trabalhado durante 35, 40 anos, poderá viver outros tantos depois da reforma, recebendo a sua pensão mensalmente. Enquanto foram casos excepcionais, era uma coisa, mas chegaremos a um dia em que 1/3 ou mais dos Portugueses estarão reformados por velhice e a maioria deles ultrapassará em muito os oitenta anos de vida. A sustentabilidade do sistema tem de ser pensada a longo prazo, não apenas para garantir o bem-estar dos futuros pensionistas e o seu direito a uma vida digna, mas também para evitar que os actuais e futuros cidadãos no activo adiram a estúpidas visões «taxistas» ou, pior ainda, a aterradoras visões eugenistas que destruam os nossos valores civilizacionais mais prezados. A cultura, as crenças e valores, a arquitectura institucional e legal, são camadas de verniz que revestem fragilmente as pulsões mais primitivas que, lá bem no fundo, estão sempre latentes. Taxistas como esse da tua amiga podem ser uns estafermos detestáveis, mas têm a grande utilidade de servir de barómetros de opinião ao dizerem alto o que muitos não se atrevem a dizer mas querem ouvir.
Como nos incêndios e nas doenças, prevenir é o melhor remédio.
Um abraço!

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Amigo Paulo, agradeço as tuas (lúcidas) palavras à volta da crónica. Também acho importante, naturalmente, que se procure modo de tornar sustentável este sistema (a que chamam, creio, o sistema "pay as you go"), ou então que se crie outro, desde que justo e digno. No entretanto, assusta-me a possibilidade de um certo "taxismo eugénico" ("taxismo", no sentido de vozearia de "taxistas", para mantermos a metáfora) - e não acho aceitável que políticos tidos por responsáveis alinhem em tal. Abraço! JJC