Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sábado, 31 de dezembro de 2011

Muito Mar para 2012


Este blogue nasceu durante o ano em que fui abençoado com uma licença sabática. Pude dedicar-me a cem por cento ao estudo e à escrita, como um daqueles sábios antigos que os reis (ou alguns nobres) sustentavam. Foi um tempo glorioso que nunca poderei esquecer e não deixo de agradecer à Fortuna.
O "Muito Mar" serviu-me, de início, apenas para desabafar, assim temperando de convívio e partilha aquela solidão medieval em que (gratamente) residi no dito ano sabático.
Mas depois tornou-se numa espécie de casa (corrijo: Casa) onde me sinto bem. Esta espécie de dever auto-imposto obriga-me ao exercício higiénico da crítica, da reflexão, do comentário - e é também um precioso meio de divulgação da minha literatura minha. Da minha literatura nossa. Da minha literatura vossa. Da nossa literatura nossa.
No final do 2011, quero agradecer aos leitores do Muito Mar as tantas visitas com que honraram este espaço. Em boa verdade, o número de cúmplices desta marinhagem tem excedido as melhores expectativas. Obrigado!
O ano de 2011 foi um ano importante da minha vida - entre outros aspectos (positivos e negativos, com mortes e nascimentos essenciais), houve esse dia 25 de Julho em que defendi, na Sala dos Capelos da Universidade de Coimbra, a minha tese de doutoramento em Literatura Portuguesa. Antes de rumar à Universidade, passei pela casa da mãe, como mentalmente faço a todas as horas e pedi à MP que registasse fotograficamente o encontro. (A minha mãe, assim que eu saí, deve ter acendido uma vela a Nossa Senhora, como faz sempre que as suas crias mais precisam.)
Queridas amigas, queridos amigos:
Espero continuar a ter-vos comigo (aliás, com o nosso Mar) no próximo ano.
Abraço - para todos - do tamanho do Sol!

Coimbra, 31 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto MPC.]

Depressão (talvez) pedagógica


Electricidade de Portugal, isto é…
- Ó Asdrúbal, parece que o governo vendeu a EDP…
- E então? Fez o que os portugueses fazem há muito tempo…
- O quê?
- Como está sem dinheiro, foi aos chineses.

Fábula miserável
O burro, bispo da situação, dizia:
- É inevitável, irmãos.
E os outros burros baixavam o focinho e aceitavam a nova dose de sacrifícios.
Mas, a cada nova notícia de miséria redobrada, os burros estremeciam e, de vez em quando, faziam menção de protestar.
O burro-mor apercebeu-se, certo dia, da real iminência de uma insurreição e, mal controlando a ira, falou-lhes da ausência de alternativas e de exemplares castigos para os revoltosos (a começar pela excomunhão), prometendo-lhes, pela enésima vez, um futuro feliz, fundado na obediência cega e na zurração. E nessa hora mesma o líder asinino quis saber se estavam todos consigo.
Temerosos, os burros lá lhe disseram que sim.
Menos alterado, o bispo da situação concluiu o encontro com os cascos dianteiros erguidos para os céus:
- Então… zurremos, irmãos.

A questão da esperança
Pode roubar-se a um povo, oficialmente “em nome do povo”, o direito ao emprego, o direito à saúde, o direito à educação, o direito à justiça. Pode roubar-se a um povo, oficialmente “em nome do povo”, o salário, a segurança, os transportes, até a televisão.
Mas, no final de 2011, chegou-se ao extremo de se roubar a um povo, oficialmente “em nome do povo”, a esperança. Ora, sem esperança, o que se segue é, em primeiro lugar, uma espécie de torpor que se confunde com desistência. Depois, virá o caos e o apocalipse.
Não é preciso ser astrólogo para perceber a pertinência desta amarga profecia. A mim basta-me, por exemplo, ouvir a conversa de três quarentões (um deles, desempregado), encostados a um muro degradado que, em tempos mais luminosos, separava a estrada da magnífica fábrica da “Triunfo”, em Coimbra.
Não se pode roubar, a um povo, a esperança e esperar que tudo fique na mesma.

Coimbra, 31 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (da antiga fábrica Triunfo) foi colhida, com a devida vénia, em http://expub.wordpress.com.]

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Exortação para homens e mulheres


Guardai o odor dos malmequeres
Agradai à vossa amada gente
Amai homens ou mulheres
Gozai o Presente.

Coimbra, 28 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto VLOSC]

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Para saber da vida (cf. Gasset)


Um homem sabe do tempo, amor, apenas
O seu próprio tempo
Vivido.
Eu exemplarmente sei da Primavera
Porque vi ressurreições de fauna flora
Cores na minha rua.
E exemplarmente sei do Outono
Porque vi morrerem as folhas os frutos
A luz da minha rua.
Não sei mais do que isto sobre o tempo
(sobre tudo)
Porque é preciso, amor, viver para saber
Da vida.
O tamanho do que sei é a minha rua.
O que sei do tempo, amor, é o meu tempo.
O meu tempo sou eu na minha rua.

Coimbra, 26 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC, 2011.)

Soneto de uma folha passando pelo Natal


Do Natal que vinha-veio-desaparece
Hei-de um dia ter saudades, ao contrário
Do Natal que ora, ao perto, me parece
Um fatal quase fardo calendário.

Que Natal é a Mãe viva ainda, o lar
Semelhante ao berço d'antes, imortal -
É uma mesa grande a recordar
Fantasmas de outra mesa quase igual.

Eu sou folha só no Tempo em voo brando
Soprada a brisa bruta ou mais leve
(A minha biografia é ir passando) -

Olho às vezes para trás como se deve
Fazer a meio do voo - e é quando
Sei de Natal (ou Vida) que é tão breve.


Coimbra, 25 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://meme.yahoo.com.]

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Boas Festas


Aos meus Amigos, às minhas Amigas,

peço desculpa por esta mensagem estar ferida da imperfeição que é ser escrita para muita gente ao mesmo tempo, não obstante cada amiga e cada amigo serem, pela própria natureza da Amizade, únicos. Perdoai.

Perdoai igualmente as falhas de que, ao longo do ano (ao longo da Vida), sou culpado: nem sempre estar imediatamente pronto para vós, nem sempre ter tempo para vós, nem sempre vos dispensar a atenção que, por definição, um amigo merece. Sou humano, também no pior sentido, isto é, com falhas muitas, falhas tantas.

Mas não me esqueço de vós - e, na maioria dos casos, ainda terei tempo (espero) para esta frase se tornar absolutamente indiscutível.

Desejo-vos boas festas e espero que, juntos, possamos resistir às dificuldades que o futuro inevitavelmente nos trará.

Saúde & Sorte, Amigas, Amigos!


Coimbra, 23 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (Charlie Brown e amigos) foi colhida, com a devida vénia, de Peanuts, de Charles M. Schulz.]

Metáforas para quê (Arte Poética)


Metáforas porquê, para quê, perguntas
No devir de leituras à hora do café.
Respondo-te como sei, afinal repetindo
O que já há séculos
(hipérbole catacrética)

Te venho afirmando em verso e prosa:
Metáforas por não saber, amor, da linguagem
O bastante para dizer quanto queremos
Ou por sentir o insuportável excesso do por-dizer
(Face, amor, aos limites do código que nos deram).

E vê que o mesmo explica talvez a poesia em geral
Ou a narrativa em seus vários rostos
Ou a rima e os rimos das palavras entrebeijando-se
(E o iô-iô de brilhos e de sentidos nelas, delas).
Vê ainda que a ideia de metáfora atravessa a pintura
E a escultura, e outras artes
(Exceptua a Música que é uma coisa maior -
Uma espécie de verdadeiro Deus universal
Acima d'isto tudo que ora digo).


A metáfora, amor, é uma arma
Contra (digamos assim) a falta de linguagem essencial.

O poeta, amor, usa (assim digamos) a metáfora
Em legítima defesa.

Coimbra, 23 de dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho.
[A imagem (Cesário Verde, por que motivo não?) foi colhida, com a devida vénia, na wikipedia.]

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

La durée (versão optimista)


Tenho, em cada poro, em cada lapso de real visto, em cada transeunte, uma oferta da vida como ela (me) é. A verdade chega-nos mais nítida à medida que vamos ficando antigos: é, senhoras & senhores, isto. É o que nos é dado alcançar com os dedos ou os olhos: árvores, amores, amigos, ruas (conhecidas ou não), telefonemas, emails, um certo livro certo (novo Vargas Llosa por estes dias), uma crónica de Pina no JN, um poema no canil do Daniel Abrunheiro, um golo do Sporting (Carrillo, de cabeça - eia!), uma promessa a mim próprio, uma efeméride (boa ou má), um excesso de sangue por desaguar à passagem de Gwyneth Paltrow.
Caminho por Coimbra, ao entardecer, com fingida pressa, apenas para não destoar dos passos azafamados de conterrâneos com hora marcada para algum dever. Num Café, junto à rodoviária, tomo um café e saboreio um um pastel de Tentúgal, mas do que me alimento mais é desta coisa imprecisa, porém física, chamada hoje.
Café, pastel de Tentúgal, dia: sabe-me tudo tão bem!

Coimbra, 22 de dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (avenida Fernão de Magalhães, foto antiga) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.forumcoimbra.com.]

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Um Camilo em seu convencional deserto



Uma criatura com ares de doutor em economia, de fraca figura e de frágil gramática, anda há uns anos a falar das finanças portuguesas na televisão por cabo e, de quando em vez, na TVI e no Diário Económico. Chama-se Camilo Lourenço e, entre muitos clichês (que não desmereceriam o mais caceteiro dos taxistas do aeroporto), deu agora em opinar sobre o que manifestamente desconhece - professores, avaliação, sindicalistas. Ora, um ignorante com tempo de antena, num país de pacóvios, pode bem tornar-se numa espécie de guru dos tristes. E, hélas, tal sucedeu!
O seu mais recente arroto opinativo foi sobre Mário Nogueira e o facto de este decano sindicalista ter sido avaliado, enquanto professor "de carreira", com a classificação de "Bom". O escândalo, na peixeirada enunciatória do senhor Lourenço, estava na circunstância de Mário Nogueira não dar aulas há 21 anos. Se o pobre plumitivo se tivesse instruído um pouco mais acerca do assunto, correria menos riscos de dizer as baboseiras que diz...
A avaliação de um sindicalista, que se mantém "professor" porque essa é a sua profissão, faz-se nos termos aceitáveis que o seu labor específico, em cada circunstância, determina. O mesmo se passa, afinal, com professores avaliadores, professores formadores, professores com funções de gestão, etc.
Já me parece mais estranha a sua aversão (também cultivada, por exemplo, por Sócrates e por Passos Coelho) ao sindicalismo tout court (e Lourenço fala mesmo de quem anda "naquela vida"). Tresanda a saudosismo salazarento, ó Camilinho!
Qualquer português sem preconceitos percebe esta verdade óbvia: se o Mário Nogueira "lhes" provoca tantos pruridos, é porque o sindicalista está a fazer bem a sua função. E eu, que nunca fui da sua cor partidária, admiro neste homem a seriedade, a coerência, a coragem - e a paciência (mais cristã, até, que marxista) com os camilóides desta vida...
Um abraço (e um cravo vermelho) para Mário Nogueira!

Coimbra, 21 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.pracadarepublicaembeja.net.]

Nobre Povo


O governo português (supostamente formado por portugueses) quer pôr os portugueses a emigrar. A Troika (que não quer senão garantir os Euros dos portugueses) quer que governo e patrões portugueses despeçam os trabalhadores portugueses. Alguns portugueses, intoxicados por governantes portugueses (de Sócrates a Passos Coelho) e por loquazes plumitivos portugueses (de Sousa Tavares a Pereira Coutinho), vão defendendo, de modo directo ou indirecto, o ataque ao funcionalismo público - portugueses ao serviço de portugueses - como panaceia (ou vingança) para os problemas dos portugueses.
Os próximos capítulos prometem.

Coimbra, 21 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.essps.pt]

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Anedota com Freud e aliterações (tudo inventado)

Em Viena, em velha casa de passe Enfrentou Freud frígida fraulein E embora herr Sigmund se esforçasse Por acordar na liben Grafstein A líbido perdida (e a infância) - Não pôde nela encontrar o homem O frémito frenético (essa ânsia de fomes que se comem ou nos comem). 

Ribeira de Pena, 19 de Dezembro de 2011. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem (uma pintura de Claude Monet, datada de 1868 e intitulada "La rivière") foi colhida - com a devida vénia - em http:www.artfindig.com.]

domingo, 18 de dezembro de 2011

Versos sobre a eterna idade

Amo muito as pessoas que amo (Não há, creio, outra forma de amar senão esta Com o advérbio muito sempre vizinho do verbo – E nenhum problema vejo nessa intensa condição amatória) Mas amo excessivamente as pessoas que amo mais Que todas E sangro todos os dias de mais pelo excesso de saudades De elas não estarem fisicamente ao pé de mim amando-as. Todos os dias é como se morresse por temer que se vão. Todos os segundos, incluindo os dos meus frágeis sonos, doem. Morro antes de morrer por não suportar a ideia de Fim um dia (Conhecendo contudo essa fatalidade insuportável de haver fim: O meu pai, o José Manuel, o Mestre João, a minha infância) E quase me apetece a morte para não a sentir mais, isto é Para, morrendo, haver enfim a morte da morte, isto é O amor simplesmente, que era o meu destino verdadeiro Antes de o mundo se complicar tanto, se sujar tanto, se estragar Tanto. Era uma vez o meu pai a cantar uma música do tony de matos E a minha mãe a chegar da praça com peixe couves fruta pastéis Um livro (para mim que estou felizmente doente e tenho estes mimos) E a televisão a começar ao meio-dia com a mais louca corrida do mundo E ruídos de carros, de vozes (gargalhadas de algum operário da Renault) E lá fora o cão Dick a ladrar, como sempre, como amanhã decerto, isto é O tempo repetindo-se igual e simples sem mudanças, sem fim obrigatório. Era uma vez a Eternidade, aquela certa terna eterna idade. A verdade do apocalipse chega-me quarenta anos atrasada Muito outra da catequista sensual do Bairro do Brinca, rapariga Terna e paciente, que cheirava a flores e gostava da minha escrita (Os meus primeiros prémios literários foram as suas mãos sobre O meu cabelo, a sua voz doce elogiando-me, o talvez pecado Dos seus olhos amarando nos meus, ou vice-versa): Inferno, mãezinha, é haver morte. E o céu é não bem O presente, mas aquele tempo em que estivemos já, lembras-te - Era a nossa Casa antiga, essa concha anti-nuclear que cheirava A café e a torradas logo pela manhã, a tua voz embalando o Nelo A Fátima muito loira e bonita com uma bandoleta branca O Tó sonhando com motos e carros ao lado do pai, e eu Muito precocemente assustado com a possibilidade de algo mudar (Eu contra o Tempo, muito antes de perceber que havia inferno), Mãezinha. Acordei hoje cheio de saudades e de raiva contra o verbo morrer. Escrevo como quem diz palavrões e faz figas. Está um Dezembro frio na avenida da Noruega, em Ribeira de Pena. A puta da morte que me saia da frente, pá, e me deixe ver ainda O sol que há! 

Ribeira de Pena, 18 de Dezembro de 2011. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem (já utilizada neste Muito Mar em ocasião anterior) reporta alguma tarde na Praia de Mira, aí por 1969.]

sábado, 17 de dezembro de 2011

Dezembro com Novidade


Tarde de Dezembro, fim do primeiro período de aulas, sala de convívio da minha escola, aí pelas cinco da tarde. Os alunos do Clube de Música (sob direcção do meu competentíssimo colega Vítor Santos) chegam ao palco e, vencidos os primeiros nervos, cantam. No público (em mim), sucede à descontracção uma espécie de aviso de Novidade iminente, algo entre o religioso e um aviso de terramoto da Protecção Civil: canções dos Queen, de Adele, dos Guns & Roses, do Projecto Amália, etc. assaltam-nos ouvidos, inteligência, coração.
Apeteceu-me chorar, em determinado instante. Porque, irmãos, a Beleza pode doer mortalmente - como tão bem se lê na menina Cristina (inventada por Vergílio Ferreira) da Aparição tocando piano ou iluminando apenas com a sua presença as existências à roda.
Murmurei para o lado – para o Dinis, a Cláudia ou o Vitor: “Isto é tão importante, pá. Será que eles sabem disto lá em Lisboa?”
Com “Eles” queria (quero) dizer os governantes, a religião matemático-liberal de muitos governos e ministérios da educação…
Houve, nesta querida tarde de 16 de Dezembro, desde as duas às cinco e meia, um lume bom à volta e por dentro de nós. Eu também já tive professores que, nos anos setenta do século XX, me puseram a cantar, a representar, a declamar, a apresentar festas. A minha escola era a Rainha Santa Isabel, à Pedrulha, e dela me acontece frequentemente ter saudades muitas. Estou agora deste lado (o Presente), no aconchego cúmplice de outros colegas tão professores como se deve ser, versão possível do meu setor Silveira, ou Gouveia, ou da setora Dora. Os olhos contemporâneos dos alunos do Arco são os meus olhos daquele longínquo século XX: estado puro puro puro de alegria e de felicidade.
De modo que, digamos, ser professor é coisa formosa e doce, apesar de tudo quanto de feio e amargo outros nos digam, façam.
Com “outros” quero dizer “eles”.

Ribeira de Pena, 17 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (inspiração provável de Vergílio Ferreira para a personagem Cristina, de Aparição), foi colhida - com a devida vénia - em http://vferreira.no.sapo.pt.]

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

O que é difícil


Segunda-feira, 12 de Dezembro. Aproveito duas horas de intervalo em afazeres familiares para corrigir testes de Francês, à mesa de um Café sossegado numa rua discreta da Póvoa de Varzim. A empregada observa-me de soslaio. Traz-me um, dois cafés. Eu aponto-sublinho-evidencio erros. Aprovo-felicito-pontuo méritos. Dez, vinte, vinte e cinco testes. Ficam por corrigir algumas composições e lançar na grelha os resultados obtidos pelos meus alunos. Coisa para se concluir, portanto, à noite, talvez à lareira.
Peço ainda uma torrada e um chá. A empregada não resiste à interpelação que talvez lhe estivesse mordendo a língua há muito tempo:
- É professor, não é?
Lá lhe confesso que sim.
E ela:
- Ai, coitadinho!... Imagino o difícil que deve ser corrigir tantos testes.
A réplica sai-me automaticamente, obtemperada por sorriso antigo e triste:
- Difícil é estar desempregado...

Ribeira de Pena, 14 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.precariosinflexiveis.org.]

P'lo olhar


Tantas vezes caio na Rua Tristeza;
Como tantas vezes o pó de mil vidas.
Mas às vezes subo, p’lo olhar, à Beleza
E vale tudo a pena, quedas incluídas.

Ribeira de Pena, 14 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (d'A Insustentável Leveza do Ser, de Kundera/Kaufman) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.biancache.blogspot.com.]

História para o Porvir


Dou-te, vida, a mão e levo-te ao cinema
(Rio-me contigo na penumbra da história)
Cá fora, entre choupos, invento um poema
Que por mim guardas (ou não?) na memória.

Compro-te um gelado se for verão
(Ou um croissant quente no inverno)
Dou-te, talvez tremendo, a minha mão
E falo-te baixinho, grave e terno.

Despeço-me no Arco de Almedina
Logo deixando, ó triste, de existir
(Tão grande é essa força pequenina)...

Até que eu fico, enfim, em vez de ir!
E eis, vida, o mais que há da minha sina
Para contar aos outros no porvir.

Ribeira de Pena, 13 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (de Luzes da Cidade, de Chaplin) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.ochaplin.blogspot.com.]

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Vita Brevis


Há das casas a sombra ao entardecer
E sinos repicando o nosso fim.
Ai, breves são a luz e o viver
E é tão grande o Mar depois de mim!

Ribeira de Pena, 12 de dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto (assinada por Luísa Costa) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.olhares.aeiou.com.
Este é o último poema do meu livro A Palavra Vale, trabalho com que venci o Prémio Literário Francisco Álvares de Nóbrega (Machico - Madeira). A Junta de Freguesia de Machico editou um volume intitulado V Concurso Literário de Poesia Francisco Álvares de Nóbrega (Outubro, 2011) que, além do meu trabalho, inclui os trabalhos classificados no 2.º e 3.º lugares.]

PS: Thierry Proença dos Santos, Professor e investigador da Universidade da Madeira, fez parte do Júri deste Prémio Literário, na companhia de José Eduardo Franco, escritor e Professor no Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa da Universidade de Lisboa; de Jorge Moreira, presidente da Assembleia Municipal de Machico; de Lucinda Moreira, docente de Português da Escola Básica e Secundária de Machico; de Nelson Veríssimo, escritor e Professor da Universidade da Madeira; de José Tolentino Mendonça, poeta e Professor da Universidade Católica de Lisboa; e de Leonor Martins Coelho, Professora e investigadora da Universidade da Madeira. Ora, Thierry Proença dos Santos redigiu para o volume publicado pela Junta de Freguesia de Machico um belo texto intitulado “Breves notas de leitura em jeito de Prefácio”. Respigo dois trechos que particularmente me souberam a um delicioso bónus, por ser tão gratificante, aos olhos de quem escreve, perceber nos outros olhares assim atentos e competentes sobre a escrita feita.
Referindo-se ao meu trabalho, A Palavra Vale, ao de Amadeu Baptista, Sequência de Machico, e ao de Luís de Aguiar, Machico. Quebranta Terra Onde Choram os Pássaros, diz (pp. 10-11):
“Cada uma das obras traduz, à sua maneira, modos de conhecimentos sobre Machico que a escrita transforma em fábula do lugar, ou melhor, em lugar fabuloso. Os sujeitos poéticos cruzaram os sítios e os tempos deste povoado, as crenças e os gestos do seu quotidiano, os dados históricos e a sua tradição ancestral. Fizeram emergir ecos de outras culturas (clássica, oriental, literária), perspectivando deste modo a cultura local e conectando-a ao resto do mundo. Captaram realidades físicas do espaço evocado, reconfigurando-as por meio da subjectividade e estabelecendo, por conseguinte, um vínculo transtemporal e transgeográfico. Nestas transacções de índole espiritual, a temática da escrita do tempo, da vida e do cosmos emerge entrelaçada nas suas dimensões eufórica e disfórica, unificadas tanto pelo reiterar de tópicos (a lenda de Machim e de Ana d’Arfet, vultos históricos, o diálogo com o destino, Machico e a sua toponímia, o sentimento insular da distância, provas de vida que as circunstâncias locais originaram…) como pelo questionamento da essência humana na sua relação com o espaço que o circunscreve.”

Referindo-se especificamente ao meu trabalho, escreve (pp. 11-12):
“A composição A Palavra Vale, de Joaquim Jorge Carvalho […], cativa pelo modo como liga ironicamente a convenção literária com o íntimo processo criativo. Os vinte poemas aqui conjugados alternam formas e modelos, de tradição erudita ou popular, e surgem-nos ligados à declamação ou à recitação, com uma qualidade rítmica e musical apreciável, sem deixar de exibir intencionalmente as costuras da técnica expressiva do fazer poético. Num tom por vezes paródico, a exuberância da voz do texto revela-se na abordagem lúdica do tema, ao desconstruir formas fixas e figuras de estilo (ousando até trocadilhos), convidando o enunciatário a confrontar-se com este rodopio de versos multiformes e multisignificantes. Por vezes, o sujeito poético procura dar o ponto de vista do lugar, o da baía de Machico, ou recriar possíveis falas da terra e das suas gentes (preste-se atenção ao jogo das interpelações: o sujeito dirige-se ora a um vós extemporâneo, ora a Tristão Vaz, ora à pessoa amada, ao público em geral…). Assim, A Palavra Vale apresenta-se não somente como reflexão sobre a linguagem e projecção de um espaço arquetípico, mas também como sonho e jogo de vida interior, combinado com um fino sentido de auto-derisão.”


O meu obrigado a Machico, pois claro!
JJC

Caminho solar


Os meus passos a caminho da praia
Assustam as lagartixas
Esfomeadas de sol.
Olho para trás para as ver rir
Do meu próprio susto verde
E rio-me também.

Ribeira de Pena, 12 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.po-d-arroz.blogspot.com.
Este poema faz parte do meu livro de poemas "A Palavra Vale" com que venci o Prémio Literário Francisco Álvares de Nóbrega (Machico - Madeira). A Junta de Freguesia de Machico editou um volume intitulado V Concurso Literário de Poesia Francisco Álvares de Nóbrega (Outubro, 2011) que, além do meu trabalho, inclui os trabalhos classificados no 2.º e 3.º lugares.]

Fruta do Dia


Em memória da Dona Carolina Freitas Spínola, avó da MP.


A velha sentiu a luz solar
Descendo sobre a anoneira
E comeu a anona como se fosse o sol.
Em seu coração sentiu
Naquela manhã
Que era para sempre dia.

Ribeira de Pena, 12 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.amador.blogs.sapo.pt.
Este poema faz parte do meu livro de poemas "A Palavra Vale" com que venci o Prémio Literário Francisco Álvares de Nóbrega (Machico - Madeira). A Junta de Freguesia de Machico editou um volume intitulado V Concurso Literário de Poesia Francisco Álvares de Nóbrega (Outubro, 2011) que, além do meu trabalho, inclui os trabalhos classificados no 2.º e 3.º lugares.]

domingo, 11 de dezembro de 2011

Pescador


- Pescador, de que foges
Correndo para o mar?
- Das redes do tempo
Que me podem matar.

- Pescador, ninguém foge
Do tempo a correr.
- Eu sei tudo de redes:
Fujo até poder.

- Pescador, todos morrem
(É humana sina!)
- Só me há-de apanhar
A rede divina.

- Pescador, como saber
Se é Deus ou o Mal
Quando te aparecer
A rede final?

- Eu fujo por amor
Da vida a chamar-me.
Só Deus Pescador
Poderá pescar-me.

Ribeira de Pena, 11 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.abiyoyo.com. Este poema faz parte do meu livro de poemas "A Palavra Vale" com que venci o Prémio Literário Francisco Álvares de Nóbrega (Machico - Madeira). A Junta de Freguesia de Machico editou um volume intitulado V Concurso Literário de Poesia Francisco Álvares de Nóbrega (Outubro, 2011) que, além do meu trabalho, inclui os trabalhos classificados no 2.º e 3.º lugares.]

Poema do Santo


A casa do mestre tem cinquenta anos.
O mestre tem talvez oitenta.
A casa do mestre cresceu com o tempo
E começou a ser o mundo.
O mestre veio a tornar-se o mar.

Quando é necessário, o mestre
É também
Porto
Santo de todas as urgências.

Ribeira de Pena, 11 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC, de 2007. Este poema faz parte do meu livro de poemas "A Palavra Vale" com que venci o Prémio Literário Francisco Álvares de Nóbrega (Machico - Madeira). A Junta de Freguesia de Machico editou um volume intitulado V Concurso Literário de Poesia Francisco Álvares de Nóbrega (Outubro, 2011) que, além do meu trabalho, inclui os trabalhos classificados no 2.º e 3.º lugares.]

sábado, 10 de dezembro de 2011

Rua da Árvore


Tem graça:
A rua da árvore, no outono,
É a rua da árvore nua.


(Rua de quem? A rua
Tem dono?
Talvez: é a rua
da ávore.)


Mas a nudez
Não é bem já sua –
É do tempo que passa
Entre aqui e além.
O tempo,
Ao contrário da rua,
Não é de ninguém.

Ribeira de Pena, 10 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem não representa literalmente a rua referida no texto e foi colhida, de modo apressado e aleatório, na net (lamento o desconhecimento da fonte em concreto). Este poema faz parte do meu livro de poemas "A Palavra Vale" com que venci o Prémio Literário Francisco Álvares de Nóbrega (Machico - Madeira). A Junta de Freguesia de Machico editou um volume intitulado V Concurso Literário de Poesia Francisco Álvares de Nóbrega (Outubro, 2011) que, além do meu trabalho, inclui os trabalhos classificados no 2.º e 3.º lugares.]

Toponímica d'Além


Banda d’Além
Banda do Além
Banda de Estar Além
Banda de Vir d’Além –

Este lugar tem um poema de Pessoa no nome.

Ribeira de Pena, 10 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, aleatoriamente, na net (infelizmente, sem referência concreta à fonte). Este poema faz parte do meu livro de poemas "A Palavra Vale" com que venci o Prémio Literário Francisco Álvares de Nóbrega (Machico - Madeira). A Junta de Freguesia de Machico editou um volume intitulado V Concurso Literário de Poesia Francisco Álvares de Nóbrega (Outubro, 2011) que, além do meu trabalho, inclui os trabalhos classificados no 2.º e 3.º lugares.]

Vai p'rà tua terra, pá!


O meu mui estimado primo José Joaquim Carvalho, coimbrinha que vive há várias décadas no Algarve, envia-me regularmente algumas pérolas, quer via hotmail, quer (de modo mais universal) via facebook.
Não resisto a partilhar convosco uma tira inteligentíssima (do território tantas vezes genial dos cartoons), que encerra uma lição radical e imbatível sobre a xenofobia e a estupidez em geral.
Tomai e saboreai todos.

Ribeira de Pena, já 10 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[Não sou capaz de indicar sobre a fonte dos desenhos senão o que supra refiro. Sorry...]

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Cais e mais


Já ali se benzeram e morreram
Pescadores.
Já ali se disseram e fizeram
Amores.
Já ali se viram e compraram
Gaiados.
Já ali se uniram e deixaram
Namorados.

O que nunca ali houve foi um pássaro
Que comesse o mar e depois
Voasse
Para me levar!

Ribeira de Pena, 09 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.mw1.google.com.
Este poema faz parte do meu livro de poemas "A Palavra Vale" com que venci o Prémio Literário Francisco Álvares de Nóbrega (Machico - Madeira). A Junta de Freguesia de Machico editou um volume intitulado V Concurso Literário de Poesia Francisco Álvares de Nóbrega (Outubro, 2011) que, além do meu trabalho, inclui os trabalhos classificados no 2.º e 3.º lugares.]

Soneto da Piedade


Em memória do Mestre João!


A capela da Piedade onde se acende
A vela de um pedido apaixonado
É velha e pouco vale, pouco rende
Na contabilidade do mercado.

Mas alguém cuida dela e a defende:
Um velho machiqueiro devotado
(Na pia idade velha é que se aprende
A guardar o ouro insuspeitado).

Vista de fora é arte bem singela
Roída por erosão natural
(É mais respeitável do que bela) –

Mas a santa Piedade original
Escolheu para si, como capela,
A mais humilde casa ao Caniçal.

Ribeira de Pena, 09 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.madeiralive.eu.
Este poema faz parte do meu livro de poemas "A Palavra Vale" com que venci o Prémio Literário Francisco Álvares de Nóbrega (Machico - Madeira). A Junta de Freguesia de Machico editou um volume intitulado V Concurso Literário de Poesia Francisco Álvares de Nóbrega (Outubro, 2011) que, além do meu trabalho, inclui os trabalhos classificados no 2.º e 3.º lugares.]

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Certa noite de 1981


Fui a Lisboa, nesse ano de 1981, com o meu pai, a minha mãe e os meus irmãos assistir à final do campeonato da 3.ª divisão, no Estádio da Tapadinha (Alcântara, Lisboa). Os cartazes diziam “Vai tudo!” e tudo ia, todos iam, para que os cartazes daquele tempo não fossem mentira.
Estes jogadores que a imagem acima fixa eram, então, meus ídolos (algures entre o Texas Jack ou o Major Alvega e o Homem Aranha). Vim, depois, a treinar e jogar com alguns deles, e pude acrescentar de magníficas imperfeições da humanidade o que se (me) perderia neles, entretanto, de éter ingénuo.
Naquele dia de verão, fizemos a viagem ao som dos Táxi, o meu pai levou-nos ao jardim zoológico, comprou bandeiras e chapéus de cartão (para o sol), fez inteligentes piadas sobre o Benfica e gajas, disse à minha mãe (pela enésima vez) que ela era a melhor coisinha da península ibérica e a minha mãe fez de conta (pela enésima vez) que não acreditava. À nossa volta, havia uma espécie de imortal alegria, decerto consubstancialíssima às raparigas passando-sorrindo, aos voláteis casais percorrendo a paisagem, às crianças (como o petiz Nelinho, irmão mais novo da tribo) pulando de impaciência, às canções do rádio a pilhas de uma família vizinha (talvez com o Tom Jones gritando "Delilah"). Éramos todos tão frescos, tão para sempre!
O nosso União de Coimbra ganhou e, no regresso, ainda fomos à Avenida Emídio Navarro para vitoriar o clube mais importante do mundo (com o Sporting, atenção). À noite, antes de dormir, eu devo ter lido algum Twain, Júlio Dinis, Dickens, Eça, Camilo, Earl Stanley Gardner ou Alexandre Dumas (pai ou filho) - e pensado que o mundo era um lugar simpático para se viver.
Sabei que é muito difícil ter, trinta anos depois, uma certa noite assim.

Ribeira de Pena, 08 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.uniaodecoimbra.blogs.sapo.pt. Na imagem, aparecem, da esquerda para a direita, em cima: Juan Callichio (treinador), Teixeira (massagista), Pratas, Arménio, Paredes, Pereira, Salvador, Seabra, Serrão, Machado, Castanho; em baixo: Hermógenes, Moinhos, Mansilha, Cavaleiro, Toninho, Jorge Oliveira, Damião, Alexandre, José Carlos, Sanô.]

A morte da televisão



Em Ribeira de Pena, passo muito tempo no meu quarto (agora também na sala, porque já temos novamente lenha).
O meu quarto é uma espécie de território autónomo da vidinha, quase livre de actas (ou "atas", como agora vomitavelmente se escreve), de relatórios, de troikas e de tricas, de quantificadores, de má gramática, de incultura, de vaidades, de vacuidades, de maus modos, de estupidez, até do meu envelhecimento (que se suspende, por magia, entre a porta e a mesinha-de-cabeceira junto à janela).
Costumava ter a televisão ligada, quase sempre. Por um lado, a qualquer momento me podia alienar, via dvd, para séries imorredoiras como Seinfeld, Friends, Tem Calma, Larry, Mad Men, Fawlty Towers, Alô, Alô, Turma do IT, etc. Por outro lado, porque ali a pantalha funcionava como um relógio vivo, bocadinho suportável de ruído que a horas certas me trazia, por exemplo, o telejornal.
A minha televisão avariou ontem, por volta das seis e meia da tarde. Julgo que morreu de velhice. Tenho estado, desde então, com os meus habituais livros (o chileno Coloane recordando naufrágios, o Ricardo Namora puzzlando uma narrativa pela língua adentro), o meu caderninho de escritas, a net, um jornal de há três dias, café e torradas (gentileza da MP), o vago som do rádio vindo da cozinha, algum carro interrompendo a calma exterior.
Não sei, em boa verdade, se a televisão do meu quarto me faz falta (temo que sim, apesar de tudo). Mas estou a aguentar-me bem nestas primeiras horas de luto.

PS (by the way): Que grande lição daria o povo se, ao contrário do que muitos pançudos desejam, ninguém comprasse os aparelhos necessários à captação da TDT. A esse fiasco seguir-se-ia, obviamente, a oferta “pelos mercados” da dita tecnologia, pois sem os milhões de (bovinos) receptores lá se iria, hélas, o interesse da publicidade televisiva…
PPS (by the way, by the way): Quando o povo acordar, os vigaristas tremerão. (Dizia-se “isto” da China face ao mundo e – reparai – era verdade…)

Ribeira de Pena, 08 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[As imagens foram colhidas, com a devida vénia, em (respectivamente) http://www.opinadordeveludo.blospot.com e http://resistenteessencial.blogspot.com.]

Água (mui) ardente


As canas trazem à aguardente a memória campestre
E a doçura fabricada no engenho.
Bebo como quem se despede
De todos os invernos
E depois canto e danço e esqueço-me
De mim mortal,
Bêbedo de natureza e gente
E d’infinito.

Ribeira de Pena, 08 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.madeiraarchipelago.com. Este poema faz parte do meu livro de poemas "A Palavra Vale" com que venci o Prémio Literário Francisco Álvares de Nóbrega (Machico - Madeira). A Junta de Freguesia de Machico editou um volume intitulado V Concurso Literário de Poesia Francisco Álvares de Nóbrega (Outubro, 2011) que, além do meu trabalho, inclui os trabalhos classificados no 2.º e 3.º lugares.]

Lapas vivas



Lapas vivas com sabor a mar
E talvez um vinho tinto
Em viagem.
Não sei de melhor imagem
Para vos explicar
A vida como a sinto.

Ribeira de Pena, 08 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[As imagens foram colhidas, com a devida vénia, em http://www.meninosdomar.wordpress.com e http://www.outrascomidas.blogspot.com. Este poema faz parte do meu livro de poemas "A Palavra Vale" com que venci o Prémio Literário Francisco Álvares de Nóbrega (Machico - Madeira). A Junta de Freguesia de Machico editou um volume intitulado V Concurso Literário de Poesia Francisco Álvares de Nóbrega (Outubro, 2011) que, além do meu trabalho, inclui os trabalhos classificados no 2.º e 3.º lugares.]

Forte


Do Forte à minha infância
É um instantinho só.
Piratas espreitam silenciosamente
A praia
E eu escondo-me e disparo
Imaginários canhões de muito, tanto alcance.

Sobre o mar há balas e destroços
Como surfistas colorindo a tarde –

Digo
(ou penso)
Meus senhores,
Sou eu o salvador da baía!

E rio-me por dentro
Do aparente velho que se vê.

Ribeira de Pena, 08 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.buzico.no.sapo.pt. Este poema faz parte do meu livro de poemas "A Palavra Vale" com que venci o Prémio Literário Francisco Álvares de Nóbrega (Machico - Madeira). A Junta de Freguesia de Machico editou um volume intitulado V Concurso Literário de Poesia Francisco Álvares de Nóbrega (Outubro, 2011) que, além do meu trabalho, inclui os trabalhos classificados no 2.º e 3.º lugares.]

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Linda


Os melhores romances
Os melhores poemas
As mais belas palavras da língua
Estão nos teus olhos,
Linda.

Enquanto a camioneta não chega
O entardecer resiste à noite
Porque
O sol nasce de estares olhando a rua
Entardecida
Porque
Os teus olhos são o contrário da noite.

Que triste é ver-te partir
Pelas seis e meia da tarde.
Que triste é o mar por não estares.
Que triste é haver noite,
Amor.

Ribeira de Pena, 07 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.g6-team.net. Este poema faz parte do meu livro de poemas "A Palavra Vale" com que venci o Prémio Literário Francisco Álvares de Nóbrega (Machico - Madeira). A Junta de Freguesia de Machico editou um volume intitulado V Concurso Literário de Poesia Francisco Álvares de Nóbrega (Outubro, 2011) que, além do meu trabalho, inclui os trabalhos classificados no 2.º e 3.º lugares.]

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Deus e o encenador cansado

A peça foi escrita por mim e chama-se "Às portas do Céu". Há nela, à maneira de Mestre Gil, personagens celestes ou para-celestes, como Deus, S. Pedro e alguns anjos funcionários. E há as almas, de méritos diversos e sempre discutíveis, em busca da respectiva Eternidade.
O rapaz que representa Deus portou-se mal - uma vez, duas, três, quatro, demasiadas vezes. Exausto, optei enfim por expulsá-lo do palco e obrigá-lo a jazer, por uns inteiros dez minutos, no fundo da sala, junto à porta.
O resto do ensaio correu bem.
De modo que, concluo, às vezes é preciso pôr os actores na ordem para a peça verdadeiramente se concretizar. Nem que o problema seja com Deus.
Amen.

PS: E Deus me perdoe a redacção.

Arco de Baúlhe, 06 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.guerreirodareal.blogspot.com.]

O Furado


O meu coração começa antes do furado
A caminho da Prainha.
Para lá chegar
Sobe-se a Ribeira Seca
E mais montanha,
Atravessa-se
A ausência de luz
E confia-se no mar a haver
Depois.

Notai, porém, que o meu coração não
Se confina a uma freguesia
Só.

Arco de Baúlhe, 06 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.diariobombeiro.blogspot.com. Este poema faz parte do meu livro de poesia "A Pakavra Vale" com que venci o Prémio Literário de Poesia Francisco Álvares de Nóbrega (Machico, 2010). A Junta de Freguesia publicou, em Outubro de 2011, um volume que compreende este trabalho e os dos autores classificados em 2.º e 3.º lugar. Uma nota mais: O termo "furado" significa, na Madeira, "túnel".]

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Poema do Engenho


À noite a voz do engenho
Fala d'avós de antanho.

A santidade do lugar vem da história
Tem a santa idade da memória.

Um eu antes de mim passou por além
E as saudades que sinto são de si também.

À noite o engenho regressa -
É a regra, essa:
Quando a noite regressa.

Ribeira de Pena, 05 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.vistadaserra.blogspot.com. Este poema faz parte do meu livro de poemas "A Palavra Vale" com que venci o Prémio Literário Francisco Álvares de Nóbrega (Machico - Madeira). A Junta de Freguesia de Machico editou um volume intitulado V Concurso Literário de Poesia Francisco Álvares de Nóbrega (Outubro, 2011) que, além do meu trabalho, inclui os trabalhos classificados no 2.º e 3.º lugares.]

domingo, 4 de dezembro de 2011

Baía (bem) dita


De poucos versos se faz uma baía -
Um talvez que vá da Queimada ao Forte
E outro que seja o mar assediando as pedras.
Poucos mais se requerem,
Mas é preciso que cada verso
Seja o verso indicado, se possível exacto
(que enfim a gramática do que digo esteja certa).
Sem isso a baía dita não seria esta baía que quero dizer
E os meus versos, por não serem meus, não seriam
Versos.

Ribeira de Pena, 04 de dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.hoteis.com. Este poema faz parte do meu livro de poemas "A Palavra Vale" com que venci o Prémio Literário Francisco Álvares de Nóbrega (Machico - Madeira). A Junta de Freguesia de Machico editou um volume intitulado V Concurso Literário de Poesia Francisco Álvares de Nóbrega (Outubro, 2011) que, além do meu trabalho, inclui os trabalhos classificados no 2.º e 3.º lugares.]

sábado, 3 de dezembro de 2011

Efeméride pequininha


Vinte e oito anos depois daquele dia frio e célere: a cabeleireira da rua sem tempo para pressas; a Salvina , nosso porto santo e desconcertante; tu entrando, por engano doido, no carro de um sapateiro que nada tinha que ver com o casamento; a velocidade suicida do meu irmão Tó transportando-te até à Igreja de Santa Cruz; algumas colegas de faculdade espreitando, à esquina do Café homónimo, a novidade que éramos; o padre José furioso com o atraso e o seu discurso vertiginoso até aos nossos sins; a festa italiana na garagem do senhor Antero; a tua irmã cobiçada pelos fotógrafos e, no silêncio ao lado, o teu irmão Fernando ainda imortal e luminoso; o teu pai, o meu pai, o senhor Antero, todos muito antes de estarem mortos; a tua mãe ainda nova e espantada com o tamanho do almoço; a minha mãe ainda nova e rindo-se de alguma piada brejeira da tia Belinha; tu tão formosa como a melhor literatura que eu já alguma vez tivesse conhecido; a VL nove meses depois para ficar tudo certo.
Vinte e oito anos já!
Obrigado, pequininha.

Ribeira de Pena, 03 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (uma rosa para a MP) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.globomidia.com.]

Soneto da baía metonímica


Eu sou, Tristão Vaz, esta baía
Mais a serra e as ribeiras escondidas
Descendo até ao chão da maresia
No gesto derradeiro de mil lidas.

Sou, homem, a baía que tão alto
Aumenta o horizonte do que vês
Apátrido, anónimo basalto
Depois, por ti chegando, português.

Não sei que me farás, aonde vou
(Sou só o que há na arte antes de ser) –
O meu destino mal se iniciou…

Hei por certo que nos falta perceber
O lado mais secreto do que sou
A certa identidade por saber.

Ribeira de Pena, 03 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.gonio.blogspot.com. Este poema faz parte do meu livro de poemas "A Palavra Vale" com que venci o Prémio Literário Francisco Álvares de Nóbrega (Machico - Madeira). A Junta de Freguesia de Machico editou um volume intitulado V Concurso Literário de Poesia Francisco Álvares de Nóbrega (Outubro, 2011) que, além do meu trabalho, inclui os trabalhos classificados no 2.º e 3.º lugares.]

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Lenda (inexacta) de Machim


Um pássaro obliquante foge de Machim
(náufrago ao contrário, voador)
E o indivíduo da lenda talvez lamente
A ausência, em si, de asas que voassem.
Mas depois a baía enche-se de sol
(a mulher amada murmura um verso com os olhos)
E nenhuma inveja já d’ave se dá
No coração do homem.
Nenhum pássaro
(talvez pense)
Nenhum pássaro
Voa mais que o meu amor.

Arco de Baúlhe, 02 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.vistadaserra.blogspot.com.
Este poema faz parte do meu livro de poemas "A Palavra Vale" com que venci o Prémio Literário Francisco Álvares de Nóbrega (Machico - Madeira). A Junta de Freguesia de Machico editou um volume intitulado V Concurso Literário de Poesia Francisco Álvares de Nóbrega (Outubro, 2011) que, além do meu trabalho, inclui os trabalhos classificados no 2.º e 3.º lugares.]

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Mar a haver


Entre o Piquinho e o Paraíso, no verão
Corre um fio de ribeira rumo ao mar.
Resistem-lhe calhaus, vegetação
E o próprio solo negro, irregular.

Olho à tardinha o fio em curso
Cansado de correr pelo seu mar
E essa teimosia do percurso
Ilustra o meu próprio procurar -

Que nesta ribeira entardecida
Corre sumária seiva, calma e doce
Semelhante ao da minha pobre vida
(A esta ou talvez outra que eu fosse).

Não vejo daqui o que há-de vir
Depois de a ribeira ser já mar
Mas antegozo a glória de cumprir
O gesto, a gesta de desaguar.

Ribeira de Pena, 01 de Dezembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.madeira-gentes-lugares.blogspot.com. Este poema faz parte do meu livro de poemas "A Palavra Vale" com que venci o Prémio Literário Francisco Álvares de Nóbrega (Machico - Madeira). A Junta de Freguesia de Machico editou um volume intitulado V Concurso Literário de Poesia Francisco Álvares de Nóbrega (Outubro, 2011) que, além do meu trabalho, inclui os trabalhos classificados no 2.º e 3.º lugares.]

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

A palavra vale


O vale de Machico tem que se lhe diga.
É lá que moro
(No vale, isto é, na palavra vale)
Entre as montanhas e o mar.

Alguma coisa há-de ligar o vale
A valor
(Vale geográfico a vale vocabular).
Alguma coisa há-de ligar valer
A dizer.
Alguma coisa há-de ligar a realidade
Ao amor.

Moro pois entre este fado cartográfico-civil
E o devir
(O devir é o que falta dizer).
Machico, percebei, é só o início, e já é muito -
O resto sou eu ao volante da minha condição.

As montanhas são as paredes da minha casa
Original
(O berço, a concha aconchegante)
E o mar milenar é um convite
Ao futuro.

Vai-se de vale a valor ao ritmo das ondas
Dentro da língua portuguesa.
Vai-se e volta-se e volta-se e volta-se.

Às vezes navega-se para vermos Machico
Ao longe.

Ribeira de Pena, 30 de Novembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.olhares.aeiou.pt. Este poema faz parte do meu livro de poemas "A Palavra Vale" com que venci o Prémio Literário Francisco Álvares de Nóbrega (Machico - Madeira). A Junta de Freguesia de Machico editou um volume intitulado V Concurso Literário de Poesia Francisco Álvares de Nóbrega (Outubro, 2011) que, além do meu trabalho, inclui os trabalhos classificados no 2.º e 3.º lugares.]

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Broncos ocos roncos


Conheci aquela besta na caixa do hipermercado, gaja eficiente com a leitura óptica e com os preços, mas também desabrida e loquaz, com aquela anafada ignorância das faladoras cheias de clichês e veneno. Declamava "política", a aventesma, estimulada pelo sorriso abúlico de um elefante de saias que (também) odiava "os das esquerdas". A da caixa roncava: que era bem feito tirar os subsídios aos funcionários públicos, pois eles não faziam nenhum e deram cabo do país; que este governo leva as coisas a direito e assim é que tem de ser; que os professores e os médicos e os enfermeiros e os das câmaras vão mas é trabalhar; que quem faz greve não gosta de vergar a mola. Toda esta merda enquanto me edificava, peça a peça, o preço da fruta e do café que eu ali fora, em má hora, adquirir. Por um segundo, a porca olhou-me nos olhos à procura de alguma concordância que eu lhe desse: encontrou o glaciar do meu desprezo e, talvez, do meu ódio.
Com a idade tornei-me menos paciente, menos tolerante, menos cristão. Tendo agora a considerar porcos os ignorantes e a cuspir, por enquanto metaforicamente, sobre os seus roncos cheios de vacuidade ou porcaria.

Coimbra, 27 de Novembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.porcobovino.blogspot.com.]

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Nudez


Admiro, da mesa mais esconsa da pastelaria, a competência milenar do vento em seu ofício de despir as árvores. E, depois, essa nudez de troncos e ramos, vista daqui, é também um fruto.

Cabeceiras de Basto, 23 de Novembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.holehorror.blogspot.com.]

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Quadra de um jovem de vinte anos para Demi Moore


De alguns maduros frutos o sabor
É mel tão doce e forte, tão preciso
Que, à hora de o provar, o provador
Confunde paladar com paraíso.

Ribeira de Pena, 22 de Novembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (de Demi Moore) foi colhida - com a devida vénia - na wikipedia.]

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Casa de Partida


Um homem sonha que foi a todo o lado e que voltou, feliz, à casa de partida, carregado de tesouros.
Acordando, contudo, descobre que está na dita casa de partida sem haver partido para lado algum, isto é, cheio apenas de sonhos por cumprir, isto é, de nada.
O pior é que acorda cansado, como se os esforços feitos-sentidos durante o sonho implicassem, afinal, nos músculos da sua condição presente.
À míngua de forças, deixa cair os sonhos e substitui, por exemplo, a ideia de morar junto à praia por vinte euros de gasóleo e um café.
Gostava, em menino, de apanhar conchas à beira do mar. Agora, à noitinha, escuta o vento nas árvores, os uivos de cães ou lobos durante a escuridão repetida, os gemidos d’horas da igreja de Santa Marinha ou do Salvador - e faz de conta que, apesar de tudo, está tudo certo. Mas não.

Vila Real, 21 de Novembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem - do maravilhoso filme “Adeus, Pai”, de Luís Filipe Rocha (1996) - foi colhida, com a devida vénia, em http://www.setimapartitura.blogspot.com.]

sábado, 19 de novembro de 2011

Encontro, seguido de Amor, seguido de Tempo, seguido de Morte (sendo tudo Tempo)


Olá, viúva de mim
Esperei a vida por ti.
Por demorares tanto assim
É que eu morri.

Ribeira de Pena, 18 de Novembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (cartaz do filme The Dead, de John Huston, com base no conto homónimo de James Joyce) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.imd.com.]

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

O segundo roubo do plasma


1. Há uns três anos, mais ou menos, eu e o resto do agregado comemorámos, com orgulho, o pagamento da vigésima prestação de um enormíssimo plasma. Só deste modo mais suave seria possível, em boa verdade, a três remediados como nós, assumir a propriedade de tal tesourinho burguês. A nossa sala-de-estar era, como não me cansei de dizer durante tanto tempo, o espaço mais rico da Casa: bons sofás, móveis modernos, home cinema – e aquele grande plasma grande! Não despiciendo para a satisfação familiar, foi o pormenor de aquela despesa, tão improvavelmente ao nosso alcance, ter sido muito bem pensada, no contexto da nossa economia apertadinha, e de religiosamente havermos sido capazes de cumprir esta obrigação extra. Certa noite, olhei para o plasma e comentei como um nababo moderno: “Isto, agora, já é mesmo nosso!”
2. Mas o diabo não dorme. Nem um mês depois daquele dia glorioso e honesto, a minha Casa em Coimbra foi assaltada e muito do que havia naquela sala passou para as mãos de uns bandidos que eu odeio para sempre. Talvez quem me roubasse tivesse necessidade imperiosa de fazer dinheiro (toxicodependência, desemprego, etc.). Mas que culpa tenho eu, medíocre operário da educação, dessa merda? (Parêntesis: a polícia não pôde fazer nada.)
3. Na minha sala, há agora uma televisão contemporânea dos anos em que o querido Sporting ganhava. Não posso, por enquanto, ter outra – e, no dia em que possa (se houver esse dia), hei-de temer que me assaltem de novo.
4. No presente mês, vou receber o meu subsídio de natal com um desconto (decidido à minha revelia) de cinquenta por cento e, nos próximos dois anos, pelo menos nesses, vão também roubar-me a totalidade dos subsídios de férias e de natal. Um governo anterior desviara já, antes, uma fatia significativa do meu ordenado. Talvez quem me roube tenha necessidade imperiosa de fazer dinheiro (para pagar o BPN, o BPP, etc.). Mas que culpa tenho eu, medíocre operário da educação, dessa merda? (Parêntesis: a polícia não pode fazer nada.)

Post Scriptum: Os senhorios não deixam de cobrar as rendas. Os bancos não deixam de cobrar as prestações. Certas vozes asininas teimam em dizer que os portugueses com vencimentos mensais entre, por exemplo, mil e dois mil Euros não se devem queixar; que se têm dívidas é por sua própria culpa; que poupassem, que se precavessem. Nunca ouviram tais cavalgaduras a máxima de que os nossos passos têm o tamanho das pernas? Pernas cortadas, como manter a mesma amplitude dos passos? O meu plasma foi tranquilamente pago porque fiz as minhas contas responsavelmente, tomando como certo que não me roubavam os recursos com que a cada mês conto. Se Sócrates ou Passos Coelho me tivessem assaltado mais cedo, talvez não conseguisse pagar aquele saudoso plasma. É muito triste roubarem-nos o fruto do nosso trabalho, irmãos, sem que a polícia possa fazer nada.

Ribeira de Pena, 18 de Novembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (os Metralhas, de Disney) foi colhida, com a devida vénia, na wikipedia.]

domingo, 13 de novembro de 2011

Poema sobre Centros Comerciais & Modestas Vidas (soneto que era para ser todo em métrica regular e sempre com rima, mas não)


Basta-me este calor comercial
As luzes emprestadas a luzir
A gente perceber-se menos mal
A eternidade do shopping antes de falir.

Basta-me a francesinha e a cerveja
A tua mão por vezes, o Presente
As contas quase em dia e a Mãe viva
Alguma saúde para prosseguir.

Basta-me que a vida continue
Com batatas fritas e beleza
Basta-me o carro com gasóleo

Basta-me tu estares à minha mesa
Basta-me que a escrita continue
(Que não morra a Língua Portuguesa).


Vila Real, 13 de Novembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem revisita, com a devida vénia, o filme "Manhattan", de Woody Allen.]

Obituário de barco


Ex-promessa de mim, devir
De sonhos entretanto em lume brando
Chego ao fim, Senhor, sem bem partir
Um barco triste, traste naufragando.

Vila Real, 13 de Novembro de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho