Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

segunda-feira, 28 de março de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (32)



Aforismos reformados




Para quem, por obrigação ou devoção, faz da escrita uma forma de vida, é fundamental ser capaz de significar o máximo com o mínimo de palavras. O peso da idade ensina-nos muito sobre o ouro da leveza enunciatória.

Está isto longe de significar que não valha a pena conhecer muitos vocábulos; pelo contrário: quanto maior for o léxico do escriba, mais provável é ele encontrar a palavra certa (às vezes, única) para dizer o que verdadeiramente quer dizer.

O combate às ervas daninhas, no texto (às palavras acessórias, dispensáveis, inúteis), traduz-se por um substantivo muito lindo: depuração.

É sobretudo na poesia que se percebe a máxima expressão do que supra-refiro. Mas também na linguagem popular topamos, a cada momento, com esse amável milagre de haver tanta sabedoria em tão exíguos (económicos) conjuntos de palavras. Por exemplo, nos ancestrais aforismos, muitos deles casados com a rima ou namorados da música.

Dei por mim a revisitar alguns destes adágios e a reformá-los, com certa liberdade (talvez insensatez) poética. E tão bem me soube a aventura que vo-la trago para a minha primeira crónica de Primavera. Dedicatória: aos queridos leitores de O Ribatejo, naturalmente.

Há mares que vêm por bem. Quem morre por gosto não dança. A esperança é a última a morder. Homem pequenino, velhaco ou menino. Mais vale nenhum pássaro na mão que mãos sem voar. Quem parte, reparte e não fica com a maior parte, ou sou eu ou é de Marte. Dá Deus as vozes a quem não tem gentes. Amigo que rouba amigo tem cem anos de castigo. Mulher séria não tem olvidos. Quem tudo cala pouco acerta. A mentira tem as pernas putas. O céu a seu dono. Amor com a Dor se paga. Mãe há só única

Vila Real, 19 de Março de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 24-03-2016.]

quinta-feira, 17 de março de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (31)





À barca, à barca, houlá!

 Assisti, pela segunda vez, no passado dia 10 de Março, à representação do Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, com encenação de António Feio. É uma produção da Cultural Kids e tem como público preferencial os alunos do 9.º ano, cujo programa, na disciplina de Português, inclui esta viagem pelo teatro vicentino.
No final da representação, disse aos meus alunos, com absoluta sinceridade, que esta é, sem dúvida, a mais interessante encenação que me foi dado apreciar ao longo da minha vida (e já lá vão umas oito ou nove). A razão para esta distinção tem que ver com a geral qualidade do espectáculo, compreendendo a excelência dos actores, o respeito pelo texto original, a eficácia pedagógica, o ritmo da narrativa em palco, o aproveitamento técnico-estético do espaço, dos objectos em cena, das (novas) tecnologias, etc.
António Feio, com a humildade e o bom senso dos que, concomitante ao amor pela arte, nutrem um real amor pelo público, introduziu na representação uma espécie de prólogo: Mestre Gil Vicente sai da sua condição de estátua e fala, como personagem, aos espectadores do nosso século sobre a natureza e os objectivos da sua obra. Depois, como se de um pivot do telejornal se tratasse, faz uma ligação ao repórter Luís Vicente, seu filho, que mostra (em divertido vídeo) os bastidores do teatro: figurinos e figurinistas, adereços surpreendentes, actores preparando a voz e os gestos, técnicos diversos emaranhados nas suas funções. Por segundos, aparece o próprio António Feio, que diz algumas palavras para a “reportagem” e se despede, com pressa, para (diz) mudar certa cena antes que o espectáculo comece.
No final, bati cúmplices palmas com os meus alunos (e o público em geral). Confirmei dois (consabidos) factos:
a)    que o texto dramático apenas se realiza completamente em palco;
b)    que, contra o absurdo da Morte, há este redentor pormenor de as grandes obras de arte durarem muito mais que as vidas dos seus criadores.
Isto é: Gil Vicente e António Feio já partiram. O Auto da Barca do Inferno ainda cá está, para nossa felicidade e gratidão.

 Vila Real, 12 de Março de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
 
[Esta crónica foi publicada no jornal O Ribatejo, edição de 17 de Março de 2016.]

sexta-feira, 11 de março de 2016

Zona de Perecíveis (30)

Aldeia da roupa suja
 
Estou muito longe daquelas militâncias partidárias que, por bons ou maus motivos, tendem a enviesar, face à realidade, as opiniões e os estados de espírito. Mas não foi sem desconforto que me apercebi da euforia de alguns, nos media, à roda das últimas exigências feitas pela União Europeia a Mário Centeno. É ainda mais embaraçoso quando o coro vitorioso (?) dos críticos é ostentado na sede do poder internacional, na chique & adiposa Bruxelas.
Habituei-me a ouvir, desde a mais tenra infância, que a roupa suja se lava em casa. Ainda pequeno, a ideia pareceu-me sensata, quer no sentido de poupar aos outros a exposição, nem sempre bonita, das imperfeições domésticas (o despedimento do pai, o alcoolismo do avô, a luz por pagar, a preguiça da prima, a infidelidade do padrinho), quer no sentido de salvar uma família do olhar crítico ou venenosamente piedoso dos outros. Mesmo hoje, simpatizo com a ideia de uma espécie de reserva íntima quando o assunto é a nossa roupa suja (não – atenção! - a roupa suja de sangue, de crimes, de vis ilegalidades). Nas famílias, nas empresas, nos clubes de futebol, o decoro ajuda à dignidade na dificuldade e no sofrimento.
Lembrei-me disto sobretudo quando, há uns tempos, em Bruxelas, certo deputado português ao parlamento europeu, Paulo Rangel, clamou estridentemente contra as linhas gerais do orçamento do governo pátrio.
Toda a gente sabe que a independência dos estados europeus, é hoje, com algumas excepções, uma saudosa memória. Os ministros das finanças da Europa dos pequeninos vão a Bruxelas (ou a Berlim) pedir a bênção e, entre enxovalhos e palmadinhas nas costas, afivelam sorrisos e obedecem à Europa dos grandes. Entre outros atrevimentos, o ministro Centeno inscrevera no orçamento a necessidade de devolver, aos funcionários públicos e aos reformados, salários e pensões que lhes foram subtraídos durante anos. Escândalo à vista.
É sempre comovente observar a defesa da disciplina financeira feita por deputados e burocratas europeus que vivem como príncipes, auferindo rendimentos pornográficos. Dói mais quando, entre o coro ululante, aparece um português a querer ser mais europeu que os alemães ou os holandeses.
Paulo Rangel quis, em nome da vigilância europeia, contribuir para o descrédito internacional do novo governo português. Estará no seu direito. Mas – vista a coisa aqui da minha portuguesa casa – ficou-lhe muito mal.

 

Ribeira de Pena, 08 de Março de 2016.

Joaquim Jorge Carvalho

[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 10-03-2016.]

quinta-feira, 3 de março de 2016

Amor residente (O Viúvo de Em Nome da Terra, de Vergílio Ferreira)


Trouxe-te flores.

Não sei o nome delas

E não me custaram dinheiro.

Adivinhas: vim pela rua abaixo

Roubando uma aqui, outra além

Das casas ricas por que passo

Até à nossa casa.

Se viesses hoje

Sentirias o odor logo à porta

E sorririas decerto à festa colorida

Das cores e dos tons do meu ramo.

Talvez me beijasses e dissesses

Meu amor

Como outrora fazias.

Os amigos dizem que já não voltas

E eu faço de conta que concordo -

Mas depois venho para nossa casa

Roubando flores pelo caminho

E falo contigo.

Há sempre flores sobre a mesa

Iluminando de ti a solidão.

Não é bem esperança; é uma morada.

Eu resido para sempre no nosso amor.

E mesmo que não venhas

É esta para sempre a minha Casa.


Arco, 16 de fevereiro de 2016.

Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (que terá inspirado o título da obra de Aquilino, A Casa Grande de Romarigães) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.bloguedodominho.blogs.sapo.pt.]

ZONA DE PERECÍVEIS (29)


 

 
O Professor Silveira

 
De um modo ou de outro, amei todos os meus professores de Português. Recordo com especial carinho o dr. Silveira, um homem cultíssimo que amava a literatura e o ensino. Podia tê-lo odiado para sempre se me houvesse atido àquele dia em que, por eu ter respondido torto a uma funcionária da Escola, me gritou da sala de professores: “Sr. Joaquim Jorge, traga-me cá as suas orelhas!” – e depois me provocou uma humilhação absoluta, feita de física dor e de vergonha pública. Não foram só as orelhas que me ficaram, então, em chamas. Foi a tão delicada dignidade de um adolescente sujeito ao lirismo e às borbulhas.
Mas, sabei, foi também este professor de Português que me fez amar Camões, Soeiro Pereira Gomes, Redol, Torga, Ferreira de Castro. E foi este professor que, após discussão breve, numa aula, sobre os méritos de Camilo e de Eça, me convidou para um sumo num Café coimbrinha, junto à estação rodoviária, e me ofereceu duas horas do seu tempo para discutir literatura, língua, ironia, léxico. Eu tinha apenas 15 anos e achava, do alto da minha experiência leitora, que o autor de Os Maias era o melhor escritor português de sempre. (Ainda acho; mas isso, neste contexto, não virá ao caso.) Em vez de me atirar à cara com o nada que eu sabia, afinal, do assunto, o professor estimou o meu entusiasmo e tratou-me como um par, isto é, um cúmplice amante dos livros. Aquele Café tinha (e ainda tem) o nome de “Silvano”. Foi naquele lugar que percebi a enorme dimensão de Camilo Castelo Branco, o autor preferido do professor, mas sobretudo o inteiro tamanho de um Professor verdadeiramente digno desse nome.
O dr. Silveira prosseguiu a sua carreira (soube-o depois) na UNESCO. Folguei em saber que outros, muito mais importantes que eu, lhe reconheceram os extraordinários méritos culturais e profissionais.
Às vezes, penso: talvez ele gostasse de saber um dia que o miúdo atrevido daquela conversa de há 38 anos se tornou também, entretanto, professor de Português. E que também ele não tem pejo em oferecer o seu tempo a adolescentes com vontade de aprender, tratando-os sempre com o respeito e a ternura exigíveis.
Garanto-vos: quando falo com os meus alunos de literatura (ou de cinema, ou de música, ou de futebol, ou de sonhos), estão eles e estou eu no comum plano do interesse e do entusiasmo pela Vida. Aliás: estão eles, estou eu e está o Professor Silveira.

Coimbra, 28 de Fevereiro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 03-03-2016.]