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Número de Ondas

quinta-feira, 17 de março de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (31)





À barca, à barca, houlá!

 Assisti, pela segunda vez, no passado dia 10 de Março, à representação do Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, com encenação de António Feio. É uma produção da Cultural Kids e tem como público preferencial os alunos do 9.º ano, cujo programa, na disciplina de Português, inclui esta viagem pelo teatro vicentino.
No final da representação, disse aos meus alunos, com absoluta sinceridade, que esta é, sem dúvida, a mais interessante encenação que me foi dado apreciar ao longo da minha vida (e já lá vão umas oito ou nove). A razão para esta distinção tem que ver com a geral qualidade do espectáculo, compreendendo a excelência dos actores, o respeito pelo texto original, a eficácia pedagógica, o ritmo da narrativa em palco, o aproveitamento técnico-estético do espaço, dos objectos em cena, das (novas) tecnologias, etc.
António Feio, com a humildade e o bom senso dos que, concomitante ao amor pela arte, nutrem um real amor pelo público, introduziu na representação uma espécie de prólogo: Mestre Gil Vicente sai da sua condição de estátua e fala, como personagem, aos espectadores do nosso século sobre a natureza e os objectivos da sua obra. Depois, como se de um pivot do telejornal se tratasse, faz uma ligação ao repórter Luís Vicente, seu filho, que mostra (em divertido vídeo) os bastidores do teatro: figurinos e figurinistas, adereços surpreendentes, actores preparando a voz e os gestos, técnicos diversos emaranhados nas suas funções. Por segundos, aparece o próprio António Feio, que diz algumas palavras para a “reportagem” e se despede, com pressa, para (diz) mudar certa cena antes que o espectáculo comece.
No final, bati cúmplices palmas com os meus alunos (e o público em geral). Confirmei dois (consabidos) factos:
a)    que o texto dramático apenas se realiza completamente em palco;
b)    que, contra o absurdo da Morte, há este redentor pormenor de as grandes obras de arte durarem muito mais que as vidas dos seus criadores.
Isto é: Gil Vicente e António Feio já partiram. O Auto da Barca do Inferno ainda cá está, para nossa felicidade e gratidão.

 Vila Real, 12 de Março de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
 
[Esta crónica foi publicada no jornal O Ribatejo, edição de 17 de Março de 2016.]

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