À barca, à barca, houlá!
No
final da representação, disse aos meus alunos, com absoluta sinceridade, que
esta é, sem dúvida, a mais interessante encenação que me foi dado apreciar ao
longo da minha vida (e já lá vão umas oito ou nove). A razão para esta
distinção tem que ver com a geral qualidade do espectáculo, compreendendo a
excelência dos actores, o respeito pelo texto original, a eficácia pedagógica,
o ritmo da narrativa em palco, o aproveitamento técnico-estético do espaço, dos
objectos em cena, das (novas) tecnologias, etc.
António
Feio, com a humildade e o bom senso dos que, concomitante ao amor pela arte,
nutrem um real amor pelo público, introduziu na representação uma espécie de
prólogo: Mestre Gil Vicente sai da sua condição de estátua e fala, como
personagem, aos espectadores do nosso século sobre a natureza e os objectivos
da sua obra. Depois, como se de um pivot
do telejornal se tratasse, faz uma ligação ao repórter Luís Vicente, seu filho,
que mostra (em divertido vídeo) os bastidores do teatro: figurinos e
figurinistas, adereços surpreendentes, actores preparando a voz e os gestos,
técnicos diversos emaranhados nas suas funções. Por segundos, aparece o próprio
António Feio, que diz algumas palavras para a “reportagem” e se despede, com
pressa, para (diz) mudar certa cena antes que o espectáculo comece.
No
final, bati cúmplices palmas com os meus alunos (e o público em geral).
Confirmei dois (consabidos) factos:
a)
que
o texto dramático apenas se realiza completamente em palco;
b)
que,
contra o absurdo da Morte, há este redentor pormenor de as grandes obras de
arte durarem muito mais que as vidas dos seus criadores.
Isto
é: Gil Vicente e António Feio já partiram. O Auto da Barca do Inferno ainda cá está, para nossa felicidade e
gratidão.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no jornal O Ribatejo, edição de 17 de Março de
2016.]
Sem comentários:
Enviar um comentário