O
Professor Silveira
De um modo ou de outro, amei todos os meus
professores de Português. Recordo com especial carinho o dr. Silveira, um homem
cultíssimo que amava a literatura e o ensino. Podia tê-lo odiado para sempre se
me houvesse atido àquele dia em que, por eu ter respondido torto a uma
funcionária da Escola, me gritou da sala de professores: “Sr. Joaquim Jorge,
traga-me cá as suas orelhas!” – e depois me provocou uma humilhação absoluta,
feita de física dor e de vergonha pública. Não foram só as orelhas que me ficaram,
então, em chamas. Foi a tão delicada dignidade de um adolescente sujeito ao
lirismo e às borbulhas.
Mas, sabei, foi também este professor de
Português que me fez amar Camões, Soeiro Pereira Gomes, Redol, Torga, Ferreira
de Castro. E foi este professor que, após discussão breve, numa aula, sobre os
méritos de Camilo e de Eça, me convidou para um sumo num Café coimbrinha, junto
à estação rodoviária, e me ofereceu duas horas do seu tempo para discutir
literatura, língua, ironia, léxico. Eu tinha apenas 15 anos e achava, do alto
da minha experiência leitora, que o autor de Os Maias era o melhor escritor português de sempre. (Ainda acho;
mas isso, neste contexto, não virá ao caso.) Em vez de me atirar à cara com o
nada que eu sabia, afinal, do assunto, o professor estimou o meu entusiasmo e
tratou-me como um par, isto é, um
cúmplice amante dos livros. Aquele Café tinha (e ainda tem) o nome de “Silvano”.
Foi naquele lugar que percebi a enorme dimensão de Camilo Castelo Branco, o
autor preferido do professor, mas sobretudo o inteiro tamanho de um Professor verdadeiramente
digno desse nome.
O dr. Silveira prosseguiu a sua carreira
(soube-o depois) na UNESCO. Folguei em saber que outros, muito mais importantes
que eu, lhe reconheceram os extraordinários méritos culturais e profissionais.
Às vezes, penso: talvez ele gostasse de
saber um dia que o miúdo atrevido daquela conversa de há 38 anos se tornou
também, entretanto, professor de Português. E que também ele não tem pejo em
oferecer o seu tempo a adolescentes com vontade de aprender, tratando-os sempre
com o respeito e a ternura exigíveis.
Garanto-vos: quando falo com os meus alunos
de literatura (ou de cinema, ou de música, ou de futebol, ou de sonhos), estão
eles e estou eu no comum plano do interesse e do entusiasmo pela Vida. Aliás:
estão eles, estou eu e está o Professor Silveira.
Coimbra,
28 de Fevereiro de 2016.
Joaquim
Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 03-03-2016.]
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