Bússola do Muito Mar

Endereço para achamento

jjorgecarvalho@hotmail.com

Número de Ondas

terça-feira, 28 de agosto de 2018

Verdade Kodak


A MP não gosta (não gosta muito) de me ver constantemente preocupado com a necessidade de registar em fotografia certos lugares (“semantizados” por pessoas, como diria Maria Lúcia Lepecky), certos objectos, certos momentos. Mas eu, que não tenho cultura fotográfica por aí além (e tão-pouco material sofisticado para esta arte), sinto essa espécie de urgência, que lembra – no essencial – a pulsão da escrita: captar-fixar parcelas de tempo, de vida, de História & histórias. 
Ainda hoje me parece genial (e também simples, uma coisa não impede a outra) o slogan antigo da Kodak: “Para mais tarde recordar.” Amen. Tirar fotografias é, em boa medida, um exercício divino, pois se trata de garantir uma razoável eternidade para as fugazes biografias do ser humano. 
Ao longo da minha estadia em Machico, lá voltei (desta vez com o telemóvel) a caçar posteridades frágeis e queridas: praia, cais de S. Roque, Caniçal, pedacinhos de Funchal, instantâneos familiares, luzes e sombras, momentos esparsos, flores, movimento, horizontes, coisas com Presente e talvez Porvir. 
Tenho saudades do tempo em que íamos a uma loja para deixar o rolo fotográfico a revelar. De revelação se deve falar, na verdade, quando falamos do objecto-foto que oferecemos ao futuro. 

Machico, 27 de Agosto de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho



A Casa Verde


Acabei de ler A Casa Verde, de Mario Vargas Llosa, às seis horas da manhã (mais uns minutos). Esperava acabar a leitura no dia seguinte, mas regressaram-me as insónias e lá acendi o candeeiro, aí pelas quatro e meia da madrugada. E assim devorei as cerca de cem páginas que me faltavam. Nota: é um grande romance (mais um) de um grande escritor. E confirmo: um livro é uma companhia fiel e segura para combater a Noite. 

Machico, 27 de Agosto de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho

domingo, 26 de agosto de 2018

Festa do Senhor

Ontem, foi um dia cheio: rotina matinal a abrir, com decida ao centro de Machico para compra de jornais, café & queijada no Edifício Perestrelo; banho rápido na mais formosa baía do mundo (Machico); depois, quatro horinhas no Caniçal, curtindo uma espécie de (amável) piscina atlântica; mais tarde, um lanchinho na casa familiar, com Juventus-Lazio na televisão (só para admirarmos o Ronaldo, claro); ao intervalo da partida italiana, tempo para uma corridinha de 15 minutos até à Ribeira Seca, que me custou muito, talvez devido ao calor imenso da tarde; entre o final do jogo italiano e o início do Benfica-Sporting, um breve banho, e só a seguir sim o sofrimento esperado, que isto de ser leão não é fácil não, e desta vez – por muito que tal me custasse – tive de confessar ao meu cunhado Aberto (o único benfiquista deste lar) que a águia mereceu ganhar; veio depois o jantar (uma maravilhosa omeleta de espada preta com salsa, cebola e alho), à moda da cunhada Guidinha; quase finalmente, houve oportunidade para testemunharmos a sempre surpreendente festa dos fachos, um espectáculo de raras coreografias de luz e de fogo-de-artifício; a fechar a jornada madeirense, chegou a surpresa F.C. Porto, 2 – Vitória de Guimarães, 3, seguida de alguma conversa distendida antes de irmos dormir. 
Dou por mim a escrever, hoje, no lugar da data: 25 de Agosto de 2018. E perdoai a cósmica ingratidão, mas sinto já que o Verão tanto tempo ansiado sabe (soube) a pouco. Dentro de 5 dias, estarei a pensar que ainda faltam 11 meses para as férias! 

Machico, 26 de Agosto de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC]

Condição musical



É o dia que nasce da noite
Ou a noite que mata o dia?
Não sei que vos diga – 
Sou folha caída de árvore antiga –
Sei lá o que é certo –
Voo em contínuo, como se caísse
Onde ninguém me visse
Salvo a cada instante pelo vento –
Sei lá, pois, se os dias nascem ou morrem assassinados.
Parecem-me todos os dias o mesmo dia
E todas as noites a mesma pausa –
Diria: como uma música, que é feita
De ritmo e de melodia
Mas, notais, também de silêncios.
Sim, a noite é também dia em tempo de silêncio
E todos os dias (pelo menos, os meus dias) são música
Em constante construção
Em constante hesitação
Tocada a ventos.

Machico, 25 de Agosto de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[Fotos JJC: trata-se, no essencial, do mesmo lugar (em frente ao Forum Machico) e do mesmo ângulo - com a diferença de uma das fotos ter sido tirada de dia e a outra à noite.]

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Coisas de perder




Bebo todo o Sol até ao entardecer
Amo cada passo e todo o chão
Choro cada futura perda a haver
Morro um pedacinho em antecipação.
Adeus a gente & lugares que estou vendo!
Adeus a quem hoje sou e estou perdendo!

Machico, 24 de Agosto de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[1ª foto: JJC; 2ª foto: VLOSC]

Caldos de galinha



Tenho resistido a uma forte discussão sobre os méritos da companhia de aviação que assegura os voos entre Funchal e Porto Santo. Da parte dos governantes e de utentes, a crítica tem sido feroz, por – alegadamente – os voos previstos serem adiados de forma sistemática, sem respeito pelos mais elementares direitos de quem (não) viaja. A companhia espanhola defende-se com argumentos de ordem técnica e regulamentar, garantindo que não aterra nem descola devido aos ventos fortes que assolam o arquipélago. Muitas vozes contrariam a alegação da empresa, questionando a razão de, apesar destes mesmos ventos, haver voos para as Canárias.
Sei de menos para opinar sobre o assunto. Mas já me assusta o desplante com que governantes defendem uma diminuição da severidade protocolar que a lei dedica, em Portugal, às questões da segurança. É um pouco como aqueles que defendem a energia nuclear por serem raros os acidentes com as centrais. Ou como Trump, quando se marimba para as questões ambientais em nome do lucro imediato (para si & amigos).
Muitas vezes, quem se arrisca… lixa-se!

Machico, 23 de Agosto de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto VLOSC]


Moça na praia ao Sol de Agosto

O rabo-coração relampejando
Seios quais vulcões a balançar
Pernas como remos descansando
Das noites qu’inda falta navegar.

Machico, 22 de Agosto de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[Imagem colhida, com a devida vénia, na net.]

Mestre João & Senhora Maria



A 22 de Agosto, os meus sogros casaram-se na igreja de Machico. Em Junho de 1961, nasceu a MP, que haveria de se tornar personagem principal da minha vida.
Mestre João, meu sogro, fez da celebração desta data um marco familiar: de 1985 em diante, fiquei a saber que era dia de filhos e netos se reunirem ao casal para missa, à tarde, e depois jantar de festa, normalmente com música (graças ao talento dos filhos, quase todos exímios no canto e no manuseio de instrumentos musicais como a viola ou o acordeão). Com o tempo, eu próprio me associei ao momento, com pontuais incursões pela poesia, que a família, generosa, não desprezou. 
Claro que, com o falecimento de meu sogro e de dois de seus filhos, bem como da emigração de um terceiro, a festa não é já igual. Não obstante a presença de novas personagens (filhos dos filhos do casal fundador), há uma inevitável sensação de incompletude à mesa. Para sempre. 
Mas eu aprecio que se mantenha o ritual antigo – reunião de familiares, missa, jantar, talvez música. Enquanto houver família, a Morte não ganhou. À senhora Maria, parte visível dos noivos de 1960, ergo o meu copo e saúdo o maiúsculo Amor. 

Machico, 22 de Agosto de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto de Carolina Ornelas]

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Teoria & Prática


Tenho conhecido muita gente que, a propósito de vícios, de erros cometidos ou de crises existenciais, fala de mudança. Garantem que vão mudar, pois aprenderam com a vida e não querem cometer os mesmos disparates, magoando-se e magoando, à volta, aqueles que os amam (e ainda os que, não os conhecendo de parte alguma, algo pagam pelos seus desmandos). 
Muitas vezes, tenho a sensação de que falam-falam-falam na mudança apenas para se convencerem a si mesmos do que devem fazer. Mas tudo quanto digam só fará sentido se à ideia corresponder - na vida profissional, amorosa, familiar, etc. - a acção. 
Lembrei-me disto quando dei com o lema inscrito no logótipo da Universidade de Aveiro: theoria poiesis praxis. Tradução possível: a prática concretiza a teoria. Amen. 

Machico, 21 de Agosto de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.cyocaminho.com.]

A selva


Na Madeira como no continente: incomodam-me os que deitam para o chão o lixo circunstancial (maços de tabaco vazios, lenços de papel, guardanapos, embalagens de gelado, garrafas e latas, etc.); os que conduzem dentro de aldeias, vilas e cidades como se a via pública fosse pista de automóveis ou motos, sem respeito por sinais trânsito, por regras básicas, por passadeiras, por inocentes peões (incluindo crianças e idosos); os que não respeitam as filas (nas caixas de supermercado, nos balcões de Café, nos chuveiros da praia); os que impõem aos outros a presença dos seus animais, descuidando o espaço e a liberdade da vizinhança (pondo em causa o sossego e a segurança de quem pretende usufruir de razoável tranquilidade); os que jogam futebol na praia, atingindo recorrentemente quem quer descansar, ler, olhar para o mar (e, a cada bolada contra as vítimas, dizem que “foi sem querer” ou nem sequer pedem desculpas); os que não sabem viver em sociedade, muito satisfeitos com o seu estado de bestas atrevidas e frequentemente impunes. 
Falta-me, aqui e em toda a parte, paciência para o desrespeito e a estupidez. Bem dizia Flaubert, em contexto (ainda) mais filosófico: “L’enfer, c’est les autres.” 

Machico, 20 de Agosto de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC]

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Realidade & sonho


Na corrida que fiz ontem, ao fim da tarde, entre o Piquinho e a Ribeira Seca, custou-me (mais do que habitualmente) a subida: um misterioso desconforto prendia-me a perna direita. A Idade teima em chamar-me à razão. 
À noite, após visionar o jogo do meu Sporting, li umas cinquentas páginas de A Casa Verde, de Mario Vargas Llosa, e adormeci de forma serena. No dia seguinte, pouco antes de acordar, um sonho épico (de que incompletamente guardei a intriga principal) acelerou-me o ritmo cardíaco. Sei que havia um desempate por penalties e que eu era um dos marcadores decisivos; no momento de partir para a bola, senti falta de força na perna direita e à minha volta riam-se e questionavam-me a coragem.
Fora do sonho, levantei-me, enfim, cansado e nervoso. Doía-me ainda a perna e fervia de indignação. E, hélas, não me foi dado conhecer o epílogo da história sonhada. 

Machico, 19 de Agosto de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC]

domingo, 19 de agosto de 2018

Chuva com(o) poema


No fim da tarde houve o poema.
Antes do poema houve o coração.
Antes do coração houve a pele.
Antes da pele houve a roupa.
Antes da roupa houve a chuva.
Antes da chuva houve a nuvem.
Antes da nuvem houve o céu.
(Tudo isto se explica em verso - 
E ainda por cima há aqui rima:
A chuva que aconteceu era já eu.)

Machico, 18 de Agosto de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em https://mapio.net.]

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Direito ao ócio


Falo com a minha Mãe ao telefone. Assusta-me a sua voz fraquinha e “o raio da constipação que não passa” (sic). Essa é uma nuvem triste cruzando a claridade do dia preguiçoso em que gratamente estava residindo.
Isto de nada fazer tem que se lhe diga. Ensinaram-nos, durante séculos, a odiar o ócio. Mas eu, que sempre trabalhei e me habituei (influenciado pela educação recebida) a ter orgulho no labor diário, amo a preguiça!
Ruy Belo, num verso de “Orla marítima” (in O Tempo das Suaves Raparigas e Outros Poemas de Amor), afiança que “somos crianças feitas para grandes férias”. Respirando o oxigénio sereno desta provisória eternidade madeirense, entre o Edifício Perestrelo e a Praia, eu embarco convictamente na ideologia do grande poeta ribatejano. 

Machico, 17 de Agosto de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[Foto JJC]

Tempo de chegar, tempo de partir


Na praia de Machico, é normal estar-se olimpicamente sobre a toalha, com o Atlântico em frente, e testemunhar-se a momentânea interrupção do azul celeste por um avião que levantou de Santa Cruz ou se prepara para aí aterrar. Nas últimas semanas, o característico vento tem condicionado partidas e chegadas com desusada frequência, mas qualquer acalmia exponencia a renovação do movimento aéreo – e a imagem de aviões chegando ou afastando-se faz parte, sem espanto ou drama, do quotidiano local. 
Um madeirense experimentado em voos reiterou-me a importância dos protocolos de segurança: é essencial aterrar e descolar num quadro rigoroso de regras técnico-legais, de forma competente e sempre que é oportuno. Sem o verbalizar ali, dei por mim a pensar que também nas nossas relações sociais é crucial aterrar e levantar voo nos momentos certos. Na profissão, nas conversas de Café, nas reuniões familiares, há aquele instante em que ficar pode ser um perigo (de aborrecimento, de discórdia, de zanga) e partir pode representar um maravilhoso tratado de profilaxia. 
Dito isto, sabei que escrevo o que escrevo em contexto de razoável felicidade e paz. Está-se aqui muito bem. (Olha, outro avião!) 

Machico, 16 de Agosto de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.visitmachico.com.]

Lição de olhar



Aprendi com os antigos a ver quanto há de único no chão e no céu que por aqui vejo. Mas a lição de olhar não morreu com a morte (física) do Mestre; a cada instante aparece – invadindo a luz clara da manhã, o recorte majestoso de uma montanha no horizonte, um peixe ou um barco colorindo o mar – uma espécie de sorriso meigo e irónico, que é simultaneamente afago e dor, a dizer-me: “Eu não lhe dizia? Eu não lhe dizia?” 

Machico, 15 de Agosto de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC]

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Pokemons

Tenho dois maravilhosos sobrinhos que se dedicam, com competência e constância admiráveis, à caça de pokemons. Dito sucintamente, trata-se de um jogo tecnológico que desafia os jogadores a combater monstros (com aparência e importância diferentes entre si), usando os instrumentos que a aplicação informática disponibiliza. Um dos aspectos mais interessantes desta luta é obrigar os jogadores a caminhar muitos quilómetros (não virtuais; físicos) para aceder aos lugares onde estão os alvos. Tal significa que a actividade é também física e, portanto, mais saudável que a maioria das que se praticam em contexto tecnológico.
Vejo outro motivo de interesse no jogo: de certo modo, é uma metáfora da nossa existência – para combatermos os monstros é preciso identifica-los, ir ao seu encontro, enfrentá-los.

Machico, 14 de Agosto de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho

José Tolentino Mendonça



José Tolentino Mendonça é um importante poeta do nosso tempo. A sua poesia fala-nos dos grandes temas de sempre – a Vida, a Morte, o Tempo, a busca da Transcendência –, nunca abdicando de um certo chão referencial (o que me agrada sobremaneira). À imagem do que fazem também, por exemplo, Cesário, algum Pessoa, Ruy Belo, Manuel António Pina, Jorge Sousa Braga ou Álvaro Magalhães, os pormenores físicos do quotidiano comparecem no texto, dão vida aos sentidos e ao vocabulário, contribuindo para a frescura e o ritmo do enunciado poético. 
Tolentino viveu em Machico, na sua juventude, e em boa hora alguém se lembrou de gravar na pedra a sua voz, bem no centro da cidade natal da MP. Quem passar pela Praceta 25 de Abril, verá escrito numa parede do edifício da “La Barca” um belo poema (do livro A noite abre-me os olhos, de 2006): 

No caminho onde aprendi o Outono
sob o azul magoado 
os pescadores cruzam ainda linhas 
províncias clareiras 
e esse gesto masculino de apagar a dor 
chegava pelos percalços da terra 
o carro do gelo 
e os miúdos tiravam bocados para comer às dentadas 
um retrato selvagem mas, juro-vos, havia encanto 
havia qualquer coisa, outra coisa 
nesse instante em perda 
as mulheres sentavam-se à porta com os bordados 
quando passavam estrangeiros 
ficavam sempre a sorrir nas suas fotografias.” 

Ouço por aqui testemunhos de admiração exclusivamente atinentes à carreira que Tolentino Mendonça fez na Igreja católica (é hoje arcebispo e, por decisão do Papa, arquivista e bibliotecário no Vaticano). Poucos, contudo, parecem aqui conhecer ou valorizar a sua singular importância na poesia da nossa língua. Mas ele é hoje um nome que, também a este nível, merece o reconhecimento e até o justificado orgulho dos machiquenses. 

Machico, 13 de Agosto de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho
[A segunda foto é de JJC.]

domingo, 12 de agosto de 2018

Fantasia baseada em factos reais

O hipermercado tem cinco caixas em funcionamento. Uma delas (a número quatro) destina-se unicamente a quem não tem mais do que dez itens. É para essa que se dirige um rapaz, pretendendo pagar as lâminas e o gel para a barba que acabou de comprar. À sua frente está um sexagenário com um carrinho repleto de produtos, esperando também a sua vez. O rapaz põe-se a contar mentalmente os bens que o homem se prepara para saldar: melão, sal, pasta dentífrica, guardanapos, vinho, água, fiambre, manteiga, gelado, ervilhas, uns chinelos de praia…
- Doze coisas – conclui.
Dirige-se ao cliente que o precede na fila, de forma educada, mas também assertiva:
- Só pode vir para esta caixa se não tiver mais que dez produtos.
O interpelado nem quer acreditar na interpelação. Vocifera:
- Eu não levo aqui mais que dez produtos!
O rapaz, apontando para o carrinho de compras, começa a contar em voz alta:
- Fruta, um; sal, dois; pasta dentífrica, três…
- Mas o que é isto?! – explode o visado. – Você está a controlar o que eu compro ou deixo de comprar?! Nunca ouviu falar em invasão de privacidade?!...
Segue-se uma demorada e agressiva discussão, que se estende a funcionários do hipermercado e a outros clientes (dessa e das outras filas). A menina da caixa quatro, que apenas quer prosseguir o seu trabalho e já manifestou a sua compreensão pelos argumentos das duas facções, suspira e murmura:
- Valha-me Jesus Cristo!
E foi então que sobre o chão do estabelecimento comercial desce o Filho de Deus.
- Em verdade vos digo, irmãos, que tendes ambos razão, mas igualmente que sois culpados de três grandes pecados: tolerar mal as imperfeições alheias, não admitir erros próprios e sobretudo perder tempo com futilidades. Palavra do Senhor.
- Graças a Deus – remata a funcionária da caixa, recomeçando enfim o seu labor.

Machico, 12 de Agosto de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.radioregional.pt.]

sábado, 11 de agosto de 2018

Poema de pedra & madeira



Na praia de Machico, sobre o calhau, existem rectângulos de madeira a que sempre ouvi chamar pranchas. Servem para as pessoas ali estenderem as suas toalhas e se deitarem, prevenindo o incómodo de pousar directamente o corpo nas pedras. Para a toalha não voar com o vento, o turista habitua-se a colocar pedaços de basalto sobre o tecido (duas pedrinhas em cima & duas em baixo). 
Testemunhei, ao fim do dia, um flagrante caso de poesia envolvendo estas pranchas. (Já o relatei ao Daniel Abrunheiro - ele riu-se e fez uma piada qualquer sobre a minha idade.) 
Sucedeu que uma formosa estrangeira de fato de banho amarelo, dando por terminada a tarde, pôs sobre si um vestido azul, calçou-se, recolheu a toalha e afastou-se, deixando duas pedras apenas sobra a tábua nua, uma ao lado da outra (com poucos centímetros entre si) – como seios calcários, espécie de fósseis convexos que guardavam a memória do busto feminino dali saído há minutos. 

Machico, 11 de Agosto de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC]

Reencontro


A maravilhosa baía de Machico! Saúdo-a em silêncio, caminhando vagarosamente sobre a calçada que nos leva até ao mar. Lembro-me dos ex-vivos que comigo percorreram aquele caminho e cujas vozes devieram apenas o som das ondas. De certo modo, os meus passos ainda são os passos de quem saiu da paisagem, e os meus olhos ainda são os olhos de quem cumplicemente amou a baía e o horizonte além. 

Abraço a praia companheira com uma serena comoção. Agradeço a marítima fidelidade deste azul um pouco mais escuro que o Verão do céu. Celebro o Verão, por um instante, livre (i.e. esquecido) da feroz deseternidade do relógio. 
(Disse um instante? Disse bem. É essa a medida certa da Felicidade.)

Machico, 10 de Agosto de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC]

terça-feira, 7 de agosto de 2018

Amizade (revisões)


A minha Filha fez umas centenas largas de quilómetros para se reunir com algumas Amigas de há vinte (talvez mais) anos. As Amigas fizeram esforço idêntico, bem entendido. Em linguagem leve, a este tipo de encontros chama-se oportunidade de pôr a conversa em dia. Mas eu, com a lucidez melancólica dos velhos, sei bem que se trata de algo mais sério, grandioso e grave: a Amizade implica real tempo e efectiva disponibilidade, sem o que deviria mera retórica, coisa tendencialmente vazia e insincera. Tive já ensejo para, via Facebook, felicitar a minha Filha e as suas Amigas pela constância daqueles laços e daquela cada vez mais preciosa cumplicidade (um tesouro).
Recentemente, eu andei afastado de um Amigo por (talvez) dois meses. Cheguei a pensar, sobre o nosso silêncio, que havia o perigo de, morrendo um de nós, o outro ficar para sempre condenado a viver morrendo de remorsos. Mas hoje reencontrámo-nos, acertámos razões e voltámos à alegre normalidade em que residíamos. À roda de um café, falámos de Coimbra, Mães, calor, profissão, literatura e biologias pessoais. Confirmei, aleluia, o valor incalculável dos Amigos. E também que recuperar um Amigo é como tê-lo connosco pela primeira vez.
Atenção: ter Amigos não resolve o problema da mortalidade, claro; mas é minha convicção que nos aumenta exponencialmente a esperança de vida.

Coimbra, 06 de Agosto de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[As fotos - uma relativa ao encontro da minha Filha com as Amigas Joana, Cristina e Ana; as outras duas, já de 2006, relativas a uma visita que o Daniel fez, a meu convite, à Escola Básica de Arco de Baúlhe - cantam versos de Zeca Afonso: "Amigo, maior que o pensamento... ", etc.]

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Never surrender


Leio, na última página do JN (edição de 01-08-2018), uma notícia sobre a manifestação de taxistas de Barcelona contra a Uber e a Cabify. No vidro traseiro de um táxi, um dos manifestantes escreveu em maiúsculas fortes: NO TENGO FUERZAS PARA RENDIRME.
Não estou habilitado a pronunciar-me, de forma séria e consistente, sobre o assunto da notícia, mas aquela frase genial, que celebra a Liberdade e a Dignidade vitais, passou a fazer parte da minha biblioteca pessoal, quiçá lema de vida a guardar para sempre.

Coimbra, 01 de Agosto de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, num post de Juan Miguel Garrido, via twitter.]

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Conceição presente


Aos 23 anos, conheci um dos meus melhores Amigos. Não tenho muitos, talvez (só) mais dois ou três. Porque, percebei, isto de chamarmos Amigo a alguém tem – deve ter – muito que se diga. A banalização da Amizade maiúscula é estúpida, perigosa e ridícula: aqueles que se vangloriam de ter muitos amigos esquecem-se de que essa circunstância, a ser verdade, significaria a fatal desvalorização desse tesouro tão especial. 

O Amigo de que falo chamava-se José António Conceição (para os amigos, “o Conceição”, ou simplesmente “o Conça”). Era um campeão em quase tudo – na robustez física, na coragem, no desassombro, no talento desportivo, no sentido de humor, na inteligência e na generosidade. E era sportinguista, pormenor engraçado para um leão comme moi
À traição, a foice oncológica veio e levou-o no dia 30 de Julho de 2014. Andei a chorá-lo (literalmente) por meses seguidos e ainda hoje me espanto e indigno perante o seu brutal desaparecimento. E tantas vezes dou por mim a recordar deliciosas histórias em que o grande Conça era o protagonista! 
Hoje mesmo, estive no cemitério da Pedrulha, em frente à sua campa (que a minha irmã, viúva do meu Amigo, cuida com desvelo absoluto), recordando a sua figura e o seu modo de ser. Ao contrário do que temia, estas visitas à residência tumular do Conceição não me provocam angústia ou dor; ao contrário, sou normalmente envolvido por um misterioso manto de bem-estar, de tranquilidade, de paz. 
Confissão: não gosto de chamar àquele lugar “última morada”. A última morada de quem parte é o coração e a memória dos que ficam (para sempre incompletos, para sempre saudosos). 

Coimbra, 31 de Julho de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho 

Mestre João


Mestre João, meu sogro, partiu há oito anos, no dia 30 de Julho de 2010. O título de "Mestre" teve origem no seu estatuto profissional, ganho ao longo de décadas na construção civil. Mas, com o tempo, o epíteto passou a representar, na minha cabeça e na de todos quantos o conheceram, o justo reconhecimento da sua sensatez e da sua sabedoria, qualidades que – sensatamente, sabiamente – cruzava com uma visão bondosa e alegre da humanidade. Estou a vê-lo num Café qualquer do Sítio do Piquinho interrogando o proprietário: “Foi o senhor ou o seu irmão que morreu há dias?”; dirigindo-se a um estouvado que quase nos atropelara com uma motorizada furiosa: “O que o senhor precisava agora era de… uma boa tarde!”; falando-me da sua ideia de religião: “A minha Igreja não tem tecto!”; reagindo à morte de uma vizinha, amiga da família: “É triste, mas também é natural, A morte faz parte da vida…”; brincando com a prosápia de um filho (muito novo) que garantia ser o mais inteligente da família: “Não és sábio, és sabão: talvez o burro mais esperto que eu conheço!”; filosofando sobre pobres e ricos, intelectuais e operários, novos e velhos: “Todos somos dependentes de todos, não é verdade?”. 
A maior homenagem que lhe faço, de forma visível ou secreta, é perguntar-me muitas vezes, quando a vida me exige certas respostas, escolhas, opções: o que pensaria/diria/faria o Mestre João se estivesse aqui? 
Ele decerto sofreu também as suas dúvidas, decerto sentiu as suas próprias fragilidades, decerto errou de quando em vez, decerto conviveu com os pontuais falhanços e as desilusões de que a humana existência também é feita. Mas a sua palavra e a sua presença eram, regra geral, monumentos de bom senso e de bondade. 
Saudades, ó Mestre! 

Coimbra, 30 de Julho de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho