quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016
ZONA DE PERECÍVEIS (28)
Auto da Verdade
(As três personagens aparecem subitamente em cena e de forma tão natural que o público terá a ilusão de que a conversa já vai a meio.)
CRISTO: De modo que ressuscitei, para os homens acreditarem na vida eterna.
PLATÃO: E eles acreditaram?
ZÉ POVINHO: Eu cá não acreditei totalmente, digo-vos, mas pelo sim pelo não porto-me bem…
PLATÃO: Mas que queres dizer com isso?
CRISTO: Não percebes? Este homem de boa vontade sabe, em seu coração, que o caminho do bem leva à vida eterna…
PLATÃO: E vós, Jesus de Nazaré, acreditais nisso?
CRISTO: Pois se eu próprio sou a vida eterna, Platão…
PLATÃO: A única vida eterna é a soma de todas as vidas provisórias que aos homens é dado viver.
ZÉ POVINHO: Se a conversa mete contas, retiro-me já…
CRISTO: As verdadeiras contas é meu Pai quem as faz.
PLATÃO: Mas vós já tendes idade para fazer contas sozinho.
CRISTO: Amigo grego, lamento muito que não tenhas fé. Sem esse dom, jamais poderás acreditar seja no que for!
PLATÃO: Eu acredito em algumas coisas. Por exemplo, na necessidade da verdade…
CRISTO: E na necessidade do bem?
PLATÃO: O bem é necessário, sem dúvida. Mas o bem é o mesmo que a verdade.
ZÉ POVINHO: Eu cá gostava era de viver num mundo justo!
PLATÃO: Zé, escuta-me: a justiça, o bem e a verdade são a mesma coisa.
CRISTO: Pois eu sou essa Coisa completa que tu dizes. Sou a justiça, a verdade e o bem.
ZÉ POVINHO: E por isso estais no céu... Bem dizíeis vós que o vosso reino não era deste mundo!
PLATÃO: Pois o que o mundo precisava era que o reino dos céus não fosse nos céus.
CRISTO: Tens a certeza?
PLATÃO: Sou homem. Não tenho a certeza de nada. Mas sei que a justiça, o bem e a verdade valem a pena aqui e agora, no mundo dos homens…
ZÉ POVINHO: A mim também me parece isso muito justo, Jesus… Sem querer ofender, bem entendido…
CRISTO: Mas dizei-me, vós os dois, o que sabeis afinal da justiça, do bem, da verdade?
PLATÃO: Eu sei delas o que se sabe quando nos falta o que nos faz falta.
ZÉ POVINHO: Platão, explique-se lá melhor, por favor, para eu ver se estou de acordo…
PLATÃO: É simples. Sabemos algo sobre a justiça quando sentimos a injustiça…
ZÉ POVINHO: Bem pensado. Percebemos que nos faz falta o contrário do que sofremos, não é? O meu avô dizia que o remédio começa na doença…
CRISTO: Escutai-me, ambos. O que há de mais certo, na vida terrena, é a morte.
PLATÃO: E é esse o maior problema da humanidade, tendes razão.
CRISTO: E tu, filósofo sem fé, como resolves esse problema?
PLATÃO: Aceitando a morte, por ser verdade a morte.
CRISTO: Ah! Resolves um problema, aceitando-o?
PLATÃO: A verdade é a verdade. A verdade resolve. A verdade nunca é um problema.
ZÉ POVINHO: Ou, como dizia o meu avô, o que não tem remédio remediado está!
CRISTO: Chega! É a última vez que vos trago comigo em passeio sobre as águas do rio Jordão.
(Penumbra. Fecha-se lentamente o pano.)
Ribeira de Pena, 21-02-2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este texto, cuja versão original eu escrevera já em 2010, foi publicado como crónica no semanário O Ribatejo, edição de 25-02-2016.]
terça-feira, 23 de fevereiro de 2016
ZONA DE PERECÍVEIS (27)
Petas,
patos e pathos
Os últimos dias trouxeram ao país muita
chuva e, entretidos no assombro pelas inundações habituais, os portugueses
talvez tenham menosprezado algumas catástrofes igualmente admiráveis.
Por exemplo, o ex-primeiro-ministro, Pedro
Passos Coelho, deu uma entrevista ao JN garantindo a bondade da sua governação,
nomeadamente no que se refere à estabilidade fiscal, à distribuição equitativa
da austeridade, à saúde financeira do Banif e à exigência que, consigo ao leme,
chegou à Educação. Muitos patos – conhecidos e anónimos – bateram palmas ao
discurso, varrendo para debaixo do tapete esse pormenor de a realidade muito
contrariar Sua Excelência.
Por exemplo, o presidente da República
cessante, Aníbal Cavaco Silva, condecorou um conjunto variegado de ex-ministros
pelo facto singelo – e exclusivo – de terem aceitado os respectivos cargos.
Ainda me comove a imagem de Miguel Relvas (amigo dilecto de Passos Coelho)
aceitando a medalhinha, ele que representa um notável exemplo da exigência que
o PSD perseguiu, com denodo, na Educação e em outros departamentos. Muitos
patos – conhecidos e anónimos – bateram palmas. Ainda assim, a maioria, com
vergonha ou cinismo, assobiou para o lado e encolheu os ombros.
Por exemplo, o sr. Schaüble ralhou com o
governo português por estar a devolver (sublinho: não a dar, não a oferecer – a devolver) salários e pensões e, por
essa escandalosa razão, ser responsável por alguma agitação dos mercados. Esta
circunstância fez as delícias de alguma comunicação social e da direita mais
trauliteira (patos & outros).
Aqui vos confesso: sinto espanto e nojo, em
doses iguais, perante o topete de algumas figurinhas e figurões. Na minha
terra, chamamos-lhe “lata” (ou “latosa”). De qualquer modo, exceptuando algum
desabafo doméstico ou cronístico, eu tendo sobretudo a optar pelo desprezo em
forma de silêncio. Depois da chuva, o eventual brilho da lata deles há-de
redundar em ferrugem. E, espero eu, até os patetas mais patetas perceberão também
o significado de patético.
Ribeira
de Pena, 15 de Fevereiro de 2016.
Joaquim
Jorge Carvalho
[Esta
crónica foi publicada no semanário O
Ribatejo, edição de 19-02-2016.]
sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016
ZONA DE PERECÍVEIS (26)
Parábola das aparências
Era uma vez um homem que só escanhoava metade da barba. Isto é, dividia o rosto a meio, no sentido longitudinal, e rapava os pêlos do seu lado esquerdo (pilosidade pescoçal incluída), deixando o lado direito incólume.
A mulher sorriu à ideia do homem. Perguntou-lhe:
- Não fazes a barba toda?
O homem sorriu também e disse:
- Uma parte de mim quer fazer; outra parte não. De modo que, em vez de fazer a barba, faço a bar.
A mulher admirou-se:
- A bar?
O homem explicou-se:
- Sim. Faço apenas uma sílaba da barba.
No final da primeira semana, a diferença entre um lado e outro notava-se bem.
Ao caminhar para o emprego, ao longo da rua, pessoas do lado direito da sua marcha (o barbeiro, o engraxador, o professor Manolete, a dona Berta da agência de seguros) comentavam, cheias de um azedume burguês:
- Parece que não tem tempo para cuidar do aspecto! Aquilo é doença ou preguiça…
As pessoas do lado esquerdo (o senhor Gregório da papelaria, a menina Lurdes na sua eterna cadeira de rodas, as irmãs Melo da frutaria, às vezes um ou outro marinheiro saindo da pensão Ideal) tinham uma visão diferente:
- Até dá gosto! Sempre muito bem afeitado, com um ar limpo e saudável – fossem todos assim…
Claro que, no regresso a casa, pelas sete da tarde, o tom dos comentários tendia a transformar-se. As pessoas que o viam regressar, no lado direito da sua marcha (e que, de manhã, lhe ficavam à esquerda da andança), admiravam-se bastante do que viam:
- Muito lhe cresce a barba da manhã para a noite. Parece um bicho! Eu não acredito em lobisomens, mas nunca se sabe…
Do outro lado da rua, aqueles que de manhã lhe haviam verberado o mau aspecto, resmungavam novos reparos, carregados de uma ironia venenosa:
- Ainda bem que o emprego lhe dá tempo para fazer a barba. Por isso nos fartamos de esperar na repartição. E queixam-se eles da falta de pessoal…
Dois meses depois da sua ideia, o homem já tinha, no seu lado esquerdo, uma tão imensa barba que mesmo quem o observava do lado contrário (e sem grande esforço) percebia aquela divisão tão extraordinária.
Dos dois lados da rua, de manhã e de tarde, todos concluíam que se tratava, afinal, de um louco.
Só a esposa, que estava ao corrente da exacta excentricidade do homem, sabia que não era bem loucura. No máximo, seria uma sílaba de loucura. E por isso assegurava, em repetidas conversas com o barbeiro, o engraxador, o professor Manolete, a dona Berta da agência de seguros, o senhor Gregório da papelaria, a menina Lurdes na sua eterna cadeira de rodas, as irmãs Melo da frutaria, às vezes um ou outro marinheiro saindo da pensão Ideal:
- O meu marido é apenas lou.
Ribeira de Pena, 09 de Fevereiro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este texto – cuja versão original data de 2010 - foi publicado no semanário O Ribatejo, edição de 11-02-2016.]
sábado, 6 de fevereiro de 2016
ZONA DE PERECÍVEIS (25)
Depois da inocência
O meu amigo Manuel Vilela foi soldado em Moçambique durante
a guerra colonial. Muitas vezes o ouvi recordar episódios dessa sua experiência
– uns eivados de dramatismo e tragédia, outros carregados de ironia, todos
profundamente humanos e comoventes. De cada vez que fala, ao invés do
sexagenário sereno de hoje, que teme o colesterol e as mudanças de clima, vejo
ali um moço de vinte anos cheio de saúde e beleza, capaz de todas as proezas e
de todos os sonhos.
Entre muitas histórias, diverte-me aquela do camarada cuja
noiva fez chegar a África uma cassete áudio, murmurando juras de amor, enquanto
se ouvia em fundo a canção proibida de Gainsbourg, maliciosamente interpretada
por Jane Birkin, “Je t’aime (moi non plus)”. Alguns dos soldados, por
ingenuidade ou acinte, deram em tecer comentários aos gemidos da gravação,
pondo em causa a castidade da moça – e o infeliz receptor, após alguns sorrisos
dificultosos, decidiu mesmo terminar o namoro com a putativa rameira.
Impressionou-me igualmente o relato da morte de um soldado
folgazão, amigo especial do meu amigo, pouco antes do regresso do pelotão à
metrópole, num lance de imprudência jovial que envolveu muita bebida e
mulheres.
Mas, entre tantas narrativas, avultou-me sobretudo o
pormenor que Manuel me contou sobre o regresso a Portugal, a bordo do Niassa:
foi uma viagem cheia de silêncio e angústia, como se os soldados - na ressaca
de tantos perigos, violências, mortes - carregassem consigo o peso inteiro do
mundo. O contrário, garante o Vilela, da viagem de ida, que fora tão alegre e
ruidosa.
Num outro contexto, aconteceu-me algo semelhante, aí por
1979, quando fui a Alvalade jogar, pelo União de Coimbra, com o grande Sporting,
na 1ª jornada da 2ª volta do campeonato nacional de juniores. Na 1ª volta, o
resultado do jogo (disputado no célebre campo da Arregaça) ficara-se por 1-1.
No autocarro entre Coimbra e Lisboa, havia uma espécie de entusiasmo febril,
feito de piadas, risos, apartes espirituosos, pois estávamos todos tão certos
da glória iminente: um triunfo na “casa” do líder, a mudança para o 1.º lugar
na classificação, o futuro de fama e riqueza prováveis. Perdemos por 4-0 e, em
vez de sermos os melhores do mundo, levámos um baile dos antigos, mal tocando
na bola. A viagem de regresso foi um suplício, algo entre a tristeza e a
vergonha. Toda a gente percebia, no autocarro do nosso desapontamento, que
aquela derrota custara muito mais que um jogo.
A idade ajuda-nos a lidar melhor com a tragédia, as perdas,
as desilusões, a própria passagem do tempo. Mas tenho percebido que nunca se
está completamente imune à Dor, essa cabra.
Ribeira de Pena, 01 de Fevereiro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 04-02-2016.]
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016
ZONA DE PERECÍVEIS (24)
Homenagem
às CPCJ
Faço parte, para aí há uma
década, da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) de Cabeceiras de
Basto. Comecei pela comissão restrita,
que é, na verdade, o braço fundamental da acção desenvolvida por esta
organização. Depois, passei para a (assim chamada) comissão alargada, espécie de órgão consultivo
que congrega entidades e instituições do concelho e cujo papel é infinitamente
mais simples. Sinto como um ultraje (grosseiro e cobarde) muitas das críticas
que alguns indigentes do comentário televisivo fazem sobre as CPCJ do nosso
país. Mesmo concedendo que haverá - sempre, sempre - aspectos a melhorar na
organização e funcionamento da instituição, existe na análise ao trabalho
(muitas vezes, não remunerado) destas instituições um escandaloso défice de
seriedade e rigor, que compreenda a delicadeza e a complexidade do seu labor.
Deixai que vos fale de um caso.
Esperança A. Dias, uma
menina nascida no Porto, há oito anos, foi a segunda das duas filhas de
Prudência Fontes a ser abusada sexualmente por Jeremias W., ex-mecânico de
automóveis, toxicodependente com cadastro na polícia por furtos e tráfico de
estupefacientes, que foi companheiro da mãe das vítimas no último quadriénio. O
homem está preso preventivamente e a mulher, após ter sido provada a sua
inocência, foi libertada e luta agora pela custódia das filhas.
Durante muito tempo, as
crianças viveram num absoluto inferno, ora ruidoso, ora silente, consoante se
tratasse de pancadaria e insultos da besta masculina ou da discreta satisfação
dos seus impulsos animais. O caso passou relativamente despercebido à
vizinhança, a funcionários e docentes do centro escolar, aos médicos e enfermeiros
do centro de saúde, aos familiares, aos transeuntes em geral. Às vezes, alguém
comentava, a meia voz, a nódoa negra que uma das meninas ostentava no rosto ou
no braço (“Caiu”, assegurava a mãe). Ou a roupa demasiado fina para o frio de Janeiro. Ou as tonturas da mais velha (com nove anos) no final de certa manhã
escolar.
Houve um dia em que, a pedido
da professora, a menina mais nova revelou o seu maior desejo e o seu maior
medo. E o seu maior desejo era estar com a mãe e a irmã num lugar onde houvesse
mar, em paz, sem medo do que ia acontecer à noite. O seu maior medo era que um
homem bruto a acordasse a meio do sono e a magoasse. Não foram precisas muitas
horas para a docente, nesse mesmo dia, perceber o drama e denunciar o caso.
Veio a justiça. Veio a CPCJ da cidade onde a menina (des)vivia.
Confissão: a menina é uma
invenção do autor deste texto. Mas não deixa de existir, com outros nomes e em
outros lugares. É uma menina textual,
digamos assim, mas só no sentido em que nela se torna verbo a realidade que
precisamos de dizer. De qualquer modo, é uma menina essencialmente verdadeira, uma
ferida aberta no peito do nosso mundo, das nossas vidas, dos nossos corações.
A CPCJ existe em nome desta
menina, que é todas as meninas e meninos (e todos os jovens e todos os idosos)
em risco ou em perigo. Todos os dias o mundo é culpado de ver o mal e fingir
que não vê. Ou de ver e não fazer o suficiente. Ou de não ver. As vítimas –
sobretudo as mais frágeis – precisam da nossa atenção solidária, lúcida e
competente. E de haver mãos e passos que à sensibilidade do olhar acrescentem a
nobreza de agir.
Talvez a menina Esperança A.
Dias não soubesse que lhe estavam a roubar a vida. Talvez achasse normal
(porque inevitável) a miséria do seu chão e a penúria do seu horizonte. As CPCJ
querem, acima de tudo, dar voz a quem, tantas vezes, nem sequer sabe do seu
direito a ter voz – para, por exemplo, dizer Não ao espezinhamento da própria infância. Todas as crianças (todas
as pessoas, afinal) têm direito à felicidade. Direito a sonhar com um dia
tranquilo passado junto ao mar, sem medo que a bruta noite venha.
Ribeira de Pena, 24 de
Janeiro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada
no semanário O Ribatejo, edição de
28-01-2016. Uma versão mais curta foi originalmente escrita para fazer parte - como nota introdutória - do Plano Anual de Actividades para 2016 da CPCJ de Cabeceiras de Basto.]
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