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segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (24)


Homenagem às CPCJ

Faço parte, para aí há uma década, da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) de Cabeceiras de Basto. Comecei pela comissão restrita, que é, na verdade, o braço fundamental da acção desenvolvida por esta organização. Depois, passei para a (assim chamada) comissão alargada, espécie de órgão consultivo que congrega entidades e instituições do concelho e cujo papel é infinitamente mais simples. Sinto como um ultraje (grosseiro e cobarde) muitas das críticas que alguns indigentes do comentário televisivo fazem sobre as CPCJ do nosso país. Mesmo concedendo que haverá - sempre, sempre - aspectos a melhorar na organização e funcionamento da instituição, existe na análise ao trabalho (muitas vezes, não remunerado) destas instituições um escandaloso défice de seriedade e rigor, que compreenda a delicadeza e a complexidade do seu labor. Deixai que vos fale de um caso.
Esperança A. Dias, uma menina nascida no Porto, há oito anos, foi a segunda das duas filhas de Prudência Fontes a ser abusada sexualmente por Jeremias W., ex-mecânico de automóveis, toxicodependente com cadastro na polícia por furtos e tráfico de estupefacientes, que foi companheiro da mãe das vítimas no último quadriénio. O homem está preso preventivamente e a mulher, após ter sido provada a sua inocência, foi libertada e luta agora pela custódia das filhas.
Durante muito tempo, as crianças viveram num absoluto inferno, ora ruidoso, ora silente, consoante se tratasse de pancadaria e insultos da besta masculina ou da discreta satisfação dos seus impulsos animais. O caso passou relativamente despercebido à vizinhança, a funcionários e docentes do centro escolar, aos médicos e enfermeiros do centro de saúde, aos familiares, aos transeuntes em geral. Às vezes, alguém comentava, a meia voz, a nódoa negra que uma das meninas ostentava no rosto ou no braço (“Caiu”, assegurava a mãe). Ou a roupa demasiado fina para o frio de Janeiro. Ou as tonturas da mais velha (com nove anos) no final de certa manhã escolar.
Houve um dia em que, a pedido da professora, a menina mais nova revelou o seu maior desejo e o seu maior medo. E o seu maior desejo era estar com a mãe e a irmã num lugar onde houvesse mar, em paz, sem medo do que ia acontecer à noite. O seu maior medo era que um homem bruto a acordasse a meio do sono e a magoasse. Não foram precisas muitas horas para a docente, nesse mesmo dia, perceber o drama e denunciar o caso. Veio a justiça. Veio a CPCJ da cidade onde a menina (des)vivia.
Confissão: a menina é uma invenção do autor deste texto. Mas não deixa de existir, com outros nomes e em outros lugares. É uma menina textual, digamos assim, mas só no sentido em que nela se torna verbo a realidade que precisamos de dizer. De qualquer modo, é uma menina essencialmente verdadeira, uma ferida aberta no peito do nosso mundo, das nossas vidas, dos nossos corações.
A CPCJ existe em nome desta menina, que é todas as meninas e meninos (e todos os jovens e todos os idosos) em risco ou em perigo. Todos os dias o mundo é culpado de ver o mal e fingir que não vê. Ou de ver e não fazer o suficiente. Ou de não ver. As vítimas – sobretudo as mais frágeis – precisam da nossa atenção solidária, lúcida e competente. E de haver mãos e passos que à sensibilidade do olhar acrescentem a nobreza de agir.
Talvez a menina Esperança A. Dias não soubesse que lhe estavam a roubar a vida. Talvez achasse normal (porque inevitável) a miséria do seu chão e a penúria do seu horizonte. As CPCJ querem, acima de tudo, dar voz a quem, tantas vezes, nem sequer sabe do seu direito a ter voz – para, por exemplo, dizer Não ao espezinhamento da própria infância. Todas as crianças (todas as pessoas, afinal) têm direito à felicidade. Direito a sonhar com um dia tranquilo passado junto ao mar, sem medo que a bruta noite venha.

Ribeira de Pena, 24 de Janeiro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho

[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 28-01-2016. Uma versão mais curta foi originalmente escrita para fazer parte - como nota introdutória - do Plano Anual de Actividades para 2016 da CPCJ de Cabeceiras de Basto.]

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