Homenagem
às CPCJ
Faço parte, para aí há uma
década, da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) de Cabeceiras de
Basto. Comecei pela comissão restrita,
que é, na verdade, o braço fundamental da acção desenvolvida por esta
organização. Depois, passei para a (assim chamada) comissão alargada, espécie de órgão consultivo
que congrega entidades e instituições do concelho e cujo papel é infinitamente
mais simples. Sinto como um ultraje (grosseiro e cobarde) muitas das críticas
que alguns indigentes do comentário televisivo fazem sobre as CPCJ do nosso
país. Mesmo concedendo que haverá - sempre, sempre - aspectos a melhorar na
organização e funcionamento da instituição, existe na análise ao trabalho
(muitas vezes, não remunerado) destas instituições um escandaloso défice de
seriedade e rigor, que compreenda a delicadeza e a complexidade do seu labor.
Deixai que vos fale de um caso.
Esperança A. Dias, uma
menina nascida no Porto, há oito anos, foi a segunda das duas filhas de
Prudência Fontes a ser abusada sexualmente por Jeremias W., ex-mecânico de
automóveis, toxicodependente com cadastro na polícia por furtos e tráfico de
estupefacientes, que foi companheiro da mãe das vítimas no último quadriénio. O
homem está preso preventivamente e a mulher, após ter sido provada a sua
inocência, foi libertada e luta agora pela custódia das filhas.
Durante muito tempo, as
crianças viveram num absoluto inferno, ora ruidoso, ora silente, consoante se
tratasse de pancadaria e insultos da besta masculina ou da discreta satisfação
dos seus impulsos animais. O caso passou relativamente despercebido à
vizinhança, a funcionários e docentes do centro escolar, aos médicos e enfermeiros
do centro de saúde, aos familiares, aos transeuntes em geral. Às vezes, alguém
comentava, a meia voz, a nódoa negra que uma das meninas ostentava no rosto ou
no braço (“Caiu”, assegurava a mãe). Ou a roupa demasiado fina para o frio de Janeiro. Ou as tonturas da mais velha (com nove anos) no final de certa manhã
escolar.
Houve um dia em que, a pedido
da professora, a menina mais nova revelou o seu maior desejo e o seu maior
medo. E o seu maior desejo era estar com a mãe e a irmã num lugar onde houvesse
mar, em paz, sem medo do que ia acontecer à noite. O seu maior medo era que um
homem bruto a acordasse a meio do sono e a magoasse. Não foram precisas muitas
horas para a docente, nesse mesmo dia, perceber o drama e denunciar o caso.
Veio a justiça. Veio a CPCJ da cidade onde a menina (des)vivia.
Confissão: a menina é uma
invenção do autor deste texto. Mas não deixa de existir, com outros nomes e em
outros lugares. É uma menina textual,
digamos assim, mas só no sentido em que nela se torna verbo a realidade que
precisamos de dizer. De qualquer modo, é uma menina essencialmente verdadeira, uma
ferida aberta no peito do nosso mundo, das nossas vidas, dos nossos corações.
A CPCJ existe em nome desta
menina, que é todas as meninas e meninos (e todos os jovens e todos os idosos)
em risco ou em perigo. Todos os dias o mundo é culpado de ver o mal e fingir
que não vê. Ou de ver e não fazer o suficiente. Ou de não ver. As vítimas –
sobretudo as mais frágeis – precisam da nossa atenção solidária, lúcida e
competente. E de haver mãos e passos que à sensibilidade do olhar acrescentem a
nobreza de agir.
Talvez a menina Esperança A.
Dias não soubesse que lhe estavam a roubar a vida. Talvez achasse normal
(porque inevitável) a miséria do seu chão e a penúria do seu horizonte. As CPCJ
querem, acima de tudo, dar voz a quem, tantas vezes, nem sequer sabe do seu
direito a ter voz – para, por exemplo, dizer Não ao espezinhamento da própria infância. Todas as crianças (todas
as pessoas, afinal) têm direito à felicidade. Direito a sonhar com um dia
tranquilo passado junto ao mar, sem medo que a bruta noite venha.
Ribeira de Pena, 24 de
Janeiro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada
no semanário O Ribatejo, edição de
28-01-2016. Uma versão mais curta foi originalmente escrita para fazer parte - como nota introdutória - do Plano Anual de Actividades para 2016 da CPCJ de Cabeceiras de Basto.]
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