Auto da Barca da Justiça
Ando a estudar, com os meus alunos do nono ano, o Auto da Barca do Inferno, de Gil
Vicente. Para preparar a leitura, na aula, das cenas com o Corregedor e o
Procurador, recorri a alguns cartoons
crítico-humorísticos sobre a ideia de Justiça.
Num debate assaz vivo, ouvi-os a perorar, à roda do primeiro
cartoon, sobre a imagem tradicional
de Justiça, sugerindo explicações para a formosura da figura feminina, a venda
sobre os seus olhos, a espada na mão direita, a balança de dois pratos na mão
esquerda. Gostei de os ouvir concluir que a Justiça, quando bem exercida, é
bela; que os juízes não devem olhar, enquanto decidem a sentença, para aspectos
exteriores dos réus (condição social, económica, cultural, religião, cor da
pele); que o tribunal deve pesar as circunstâncias atenuantes e/ou agravantes
em cada caso julgado; que a aplicação final da justiça deve ser forte,
corajosa, firme.
Outro cartoon
mostrava uma senhora menos elegante, de aparência mais reles e roliça, com a sua
venda discretamente descoberta, enquanto recebia, de um poderoso anafado, o
gordo dinheiro corruptor e a sua espada caía, impiedosa, sobre um pequeno
ladrão de galinhas.
Outro cartoon
mostrava uma mulher em versão estatuária, sem rosto e sem mãos, reduzida a
pedregulho adinâmico e inútil.
Outro cartoon
mostrava uma mulher com três mãos – uma para empunhar a espada, outra para
erguer a balança e a terceira para, de modo sub-reptício, receber o cash venal da ocasião.
À imagem do primeiro cartoon,
os alunos chamaram, sem dificuldade, a Justiça
como-deve-ser, ou Justiça perfeita,
ou Justiça ideal.
À imagem da mulher com três mãos, após maior tempo de
reflexão, os alunos chamaram Justiça
imperfeita, Justiça suja, Justiça corrupta. E houve uma menina que
àquela figura chamou monstro.
Aproveitei essa designação e falei-lhes eu próprio da ideia de “aberração”, enquanto
perversão e deformação de algo originariamente harmonioso e belo. Para rematar,
quis que me dissessem o que era, para eles, a aberração da Justiça.
Um aluno saiu-se com esta: “É uma Justiça injusta.”
Aplaudi a síntese e lá começámos a ler a cena com o Corregedor.
Falta dizer que o auto vicentino continua muito actual. Ou,
para utilizar um jargão jurídico recorrente, está muito longe de prescrever.
Ribeira de Pena, 20 de Janeiro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 21-01-2016.]
Sem comentários:
Enviar um comentário