Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

domingo, 24 de janeiro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (23)


Auto da Barca da Justiça

Ando a estudar, com os meus alunos do nono ano, o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente. Para preparar a leitura, na aula, das cenas com o Corregedor e o Procurador, recorri a alguns cartoons crítico-humorísticos sobre a ideia de Justiça.
Num debate assaz vivo, ouvi-os a perorar, à roda do primeiro cartoon, sobre a imagem tradicional de Justiça, sugerindo explicações para a formosura da figura feminina, a venda sobre os seus olhos, a espada na mão direita, a balança de dois pratos na mão esquerda. Gostei de os ouvir concluir que a Justiça, quando bem exercida, é bela; que os juízes não devem olhar, enquanto decidem a sentença, para aspectos exteriores dos réus (condição social, económica, cultural, religião, cor da pele); que o tribunal deve pesar as circunstâncias atenuantes e/ou agravantes em cada caso julgado; que a aplicação final da justiça deve ser forte, corajosa, firme.
Outro cartoon mostrava uma senhora menos elegante, de aparência mais reles e roliça, com a sua venda discretamente descoberta, enquanto recebia, de um poderoso anafado, o gordo dinheiro corruptor e a sua espada caía, impiedosa, sobre um pequeno ladrão de galinhas.
Outro cartoon mostrava uma mulher em versão estatuária, sem rosto e sem mãos, reduzida a pedregulho adinâmico e inútil.
Outro cartoon mostrava uma mulher com três mãos – uma para empunhar a espada, outra para erguer a balança e a terceira para, de modo sub-reptício, receber o cash venal da ocasião.
À imagem do primeiro cartoon, os alunos chamaram, sem dificuldade, a Justiça como-deve-ser, ou Justiça perfeita, ou Justiça ideal.
À imagem da mulher com três mãos, após maior tempo de reflexão, os alunos chamaram Justiça imperfeita, Justiça suja, Justiça corrupta. E houve uma menina que àquela figura chamou monstro. Aproveitei essa designação e falei-lhes eu próprio da ideia de “aberração”, enquanto perversão e deformação de algo originariamente harmonioso e belo. Para rematar, quis que me dissessem o que era, para eles, a aberração da Justiça.
Um aluno saiu-se com esta: “É uma Justiça injusta.”
Aplaudi a síntese e lá começámos a ler a cena com o Corregedor.
Falta dizer que o auto vicentino continua muito actual. Ou, para utilizar um jargão jurídico recorrente, está muito longe de prescrever.

Ribeira de Pena, 20 de Janeiro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 21-01-2016.]

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (22)


 
O teste do Estado Novo

 Estou recenseado a cerca de 250 quilómetros do local onde trabalho há já 20 anos. Nunca me apeteceu mudar o local de voto e, com feroz militância democrática, nunca incumpro o dever de votar – ainda que o exercício me fique caro em gasóleo, portagens, fadiga e desilusões.
Confesso que as próximas eleições para a presidência da República inauguraram em mim, pela primeiríssima vez, a miserável tentação do absentismo. Deve haver nisto algo de preguiça, admito. Mas é sobretudo a sensação de que o meu voto, como o dos outros, pouco contribuirá para a melhoria do país, da sociedade, da nossa vida em concreto.
Creio que Aníbal Cavaco Silva é o responsável maior pela banalização e menorização do lugar e da função. Há-de parecer arrogante o que aqui vos digo, mas lamento muito a passagem pela presidência do presidente cessante. Para um cargo assim, exigir-se-ia alguém com outra profundidade intelectual e outra densidade cívico-humanística. Ficarão para a História os seus discursos redondos, vagos e genéricos, decerto candidatos ao título num campeonato mundial de clichês que houvesse. O pior de tudo, mesmo assim, foi a sua falta de currículo democrático. Deixai que me explique.
Eu não sei o que faria se tivesse 20-30 anos em pleno Estado Novo. Teria lutado contra a guerra colonial, a Pide, a falta de democracia – ou teria, como tantos, aceitado as regras em vigor, salvaguardando a carreira, o conforto e a segurança mui pessoais? Eu gosto de pensar que teria combatido a ditadura, escrito e gritado pela liberdade, conjurado contra a guerra. Mas não posso, em rigor, garantir que seria isso a acontecer. Não estava lá.
No caso dos que, como Cavaco, eram adultos na época do Estado Novo, sabemos o que se passou. Ele nunca lutou contra o fascismo porque – explicou – estava ocupado a estudar. Fez, aliás, o seu doutoramento em Inglaterra, pátria secular do parlamentarismo democrático, sem que tal lhe acordasse angústias comparativas. Nunca se incomodou publicamente com o atraso português em matéria de condições de vida e de liberdades. Nunca se lhe conheceu uma palavra crítica sobre a guerra colonial. Aceitou o statu quo histórico e fez pela vidinha.
Outos, como Soares, Cunhal, Jorge Sampaio, ou – em plena Assembleia Nacional – como Francisco de Sá-Carneiro ou Pinto Balsemão, ousaram indignar-se e lutar, com naturais prejuízos pessoais e profissionais.
Não julgo Cavaco pelo que, à época, não fez. Não me sinto sequer superior, porque não posso garantir (já o disse atrás) que, em contexto igual, eu tivesse sido melhor do que ele. Mas um presidente da República deveria ser sempre, perdoai o romantismo, um dos melhores exemplos da nação, e esse pressuposto compreende a questão da coragem e da plena cidadania.
Pois, talvez eu próprio não passasse no teste do Estado Novo. Não o sei. Mas sei que Cavaco, esse, não passou mesmo – e que, contudo, foi presidente do nosso país por dois mandatos consecutivos.

Ribeira de Pena, 07 de Janeiro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 14-021-2016.]

domingo, 3 de janeiro de 2016

Escola Preparatória Rainha Santa Isabel (Coimbra)


Em 1976 eu já amava o futebol
E a literatura.
No futebol escondia dos outros o segredo
Dos versos.
Nos versos, ai de mim, não podia bem esconder
Fosse o que fosse.
Naquele tempo eu já era contemporâneo
Do Abrunheiro
Mal suspeitando do génio literário por ali crescendo
Metido no comum contexto da escola
Lendo os mesmos livros
Consciente do tesouro de haver Pai e Mãe
Feliz por não haver ainda a morte –
Sujeito também à beleza absoluta das mulheres.
Na nossa escola havia certas flores
(Ou anjos, ou fadas, ou improváveis princesas)
E ambos aprendemos à roda do Sol que elas eram
Sobre o amor
O paradoxo de ser obrigatório a dor
Para se viver
(Para inteiramente se viver).
Depois o Daniel deveio poeta maior
(O mais importante do seu meu nosso tempo)
E eu segui sobretudo a prosa:
Ele diz a beleza e as saudades
Da imortalidade perdida.
Eu, enfim, conto a mesma história
De perdas ausências faltas.
O nosso destino tem esta cumplicidade
Do verbo dito-inventado em português.
Mas o mais engraçado, talvez, é algumas flores
(Ou fadas, anjos, princesas impossíveis)
Serem leitoras de ambos e não perceberem
(Ou então fingirem não perceber)
Que a nossa escrita
Tantas vezes
É por causa delas!

Coimbra, 01 de Janeiro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem é do filme Cinema Paraíso, de Giuseppe Tornatore, e foi colhida, com a devida vénia, na internet (via wikipédia).]

ZONA DE PERECÍVEIS (21)


Mondego & Tempo


No coração de cada homem, há um rio mais importante do que os outros. Faz parte, quase sempre, do cenário da terra natal, mas vai além: é uma marca de identidade muito profunda, um sinal, uma sina.
Eu vi o Mondego do colo da minha Mãe, durante as festas da Rainha Santa; da janela do autocarro escolar (com a professora primária aos berros), em direcção às piscinas de Celas; pelo vidro traseiro do carro de meu Pai, a caminho do campo da Arregaça, onde jogava o União de Coimbra. Cheguei a tomar banho nas suas águas, com amigos de infância e adolescência, em recantos do mítico Choupal, numa espécie de lago que designávamos por “Frigorífico”. Mergulhávamos ali de calções ou cuecas, e havia até quem se afoitasse nu (esses estavam sujeitos a partidas cujos autores nunca revelarei, mesmo porque as vítimas ainda hoje, à lembrança do que passaram, fazem má cara).
A vida já me pôs em contacto com outros rios célebres, como o Tejo, o Douro, o Minho, o Lis, o Nabão, por exemplo. Mas o meu rio, não há dúvida, é o Mondego. Nenhum se lhe compara nesta enviesada avaliação que, compreendei, se funda muito mais no amor que na wikipédia.
A ideia de que os rios são uma imagem da vida, de tão usada por filósofos, poetas e padres, tornou-se clichê. Mas continua a fazer sentido. O mesmo se aplica à ideia de Destino como a busca da exacta foz onde desaguar, só então se atingindo essa plenitude e essa liberdade a que chamamos mar.
Contudo, a partir dos 40 anos, mais ou menos, transcorrida metade da nossa existência provável, tendemos à reformulação desta metáfora (ou alegoria). Daí em diante, a vida já não se vê apenas como um percurso entre a nascente e o mar; é também a viagem inversa - do mar onde estamos até a alguns lugares-tempos de onde viemos, certas circunstância em que fomos córregos novos, ribeiros moços, rios cheios de saúde e de causas. Na verdade, o passado e o presente, na fase da maturidade, tendem a (con)fundir-se. O mar que deviemos não se esquece dos fios de água doce anteriores a agora.
Lembrei-me disto neste Natal, enquanto ajudava a minha Mãe a subir umas escadas, no regresso do centro comercial, após a travessia da ponte do Açude, num dia em que o Mondego estava cheio de água e de paz. Ela estava cansada – da viagem e da vida toda. Procurou apoio em mim e eu dei-lho. Como se ela fosse minha filha.


Coimbra, 29 de Dezembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 31-12-2015.]