Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (117)


José, Maria e o miúdo

O nome de meu Pai era José. O nome de minha Mãe é Maria. Se vos disser que a minha Mãe é uma santa, podereis pensar que Jesus fala pela minha boca e que a crónica glosa a Sagrada Família, não é? Mas o meu José era bate-chapas, pouco sabia de carpintaria e nem um exército de anjos o convenceria de uma concepção à base de Espírito Santo. Era apenas um homem – e eu, o seu segundo filho, sou esta imperfeita criação, à sua imagem e semelhança (na fisionomia, no olhar malandro, no jeito para jogar à bola e no amor pela vida em geral). 
O meu Pai foi, por muitos anos, a figura tutelar dos natais familiares. Ligava quase nada à religião, mas tinha por Deus, pelos santos e pelos rituais do cristianismo um profundíssimo – quase supersticioso – respeito.
Ao contrário do que sucedia com outras datas também importantes, a esta ele nunca faltava e não me lembro sequer de um atraso seu à ceia de 24 de Dezembro. Apreciador da boa comida (bem regada, para minha aflição), ele próprio supervisionava e patrocinava a qualidade do bacalhau, dos legumes e do vinho. Esse lado (não exactamente religioso, antes burguês) compreendia ainda uma ida, com a minha Mãe, à baixa coimbrinha, na própria tarde desse dia, para comprar as prendas dos três (depois, quatro) filhos do casal. E era singular como um homem que passava a vida a resmungar pelas contas - da luz, da água, do gás, da renda de casa, da mercearia – tão mansamente abria os cordões à bolsa para aquela generosidade anual.
Das mais amadas prendas que eu e o meu irmão mais velho recebemos, naquele tempo menino, destaco dois carrinhos telecomandados, que cada um de nós conduzia através de um aparelho ligado a um cabo de, talvez, metro e meio. Tinham só uma velocidade, mas eram enormes, vistosos, andavam para a frente e para trás, e viravam à esquerda e à direita. Entretivemo-nos com eles durante meses, até às avarias terminais (ainda hoje choradas pelos petizes que fomos).
No Natal seguinte, eu e o meu irmão quisemos uma repetição daquela oferta. O nosso Pai ficou pensativo, porque o dinheiro abundara menos nesse ano civil. Mas não deixou de ir com a nossa Mãe à baixa coimbrinha, quem sabe à procura de algum milagre em forma de pechincha.
Na hora de abrirmos os presentes, descobrimos novos carros telecomandados. Contudo, desta feita, eram mais pequenos, mais rudimentares, com o cabo mais curto, e limitavam-se a andar para a frente e para trás, sem a função de virar à esquerda ou à direita. Eu e o meu irmão gememos em coro o nosso descontentamento. E nunca esquecerei a tristeza (talvez a angústia) de meu Pai, interrogando a minha Mãe: “Eu não te dizia?...
Agora, é outra vez dia de ele nunca mais estar connosco (e de eu nunca mais ser completamente menino). Tenho saudades dele e de nós todos quando ele estava. Saudades, afinal, dessas prendas verdadeiras que tão incompletamente percebi no tempo certo.
Feliz Natal.

Vila Real, 17 de Dezembro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 21-12-2017. A foto recorda a Família - da direita para a esquerda, a Mãe, a Fátima, eu, o Tó e o Pai (falta o Nelo-por-nascer).]

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (116)



Vida(s) de cão

O cronista alberga, por definição, o pavor de ser mal interpretado. No meu caso, o que temo não é que discordem de quanto diga, é sim que não percebam o que verdadeiramente quero dizer. Preâmbulo feito, sabei que a crónica de hoje fala em cães, mas visa sobretudo falar de pessoas.
Já tive cães na família. Parte das alegrias e dos lutos da minha meninice compreendem a espécie canina. Depois, casado e com descendência, convivi com uma cadelinha chamada Dara, motivo de mil aflições, arrelias e prejuízos, mas igualmente responsável por instantes de pura felicidade e de irracionais risotas.
O que me arrependi, neste segundo caso, da opção de trazer para casa o animal! A minha mulher e eu quisemos sobretudo satisfazer um pedido da nossa Filha, amenizando o remorso de, por razões profissionais, nos termos mudado de Coimbra para Trás-os-Montes e obrigado a miúda a interromper rotinas, amizades, expectativas, conforto. O problema veio depois: a casa que arrendámos era exígua para a energia (ilimitada) do ser recém-chegado; o nosso tempo livre era escasso para quem queria tanto a nossa companhia. Em suma: a Dara deveio infeliz e, enquanto sofria de solidão, incomodava os vizinhos com uivos e latidos incessantes. Durante a minha infância, os animais domésticos tinham espaço para viver (não digo, notai, sobreviver; digo viver). Recordo um pátio grande, infinitos arbustos, arvoredo largo, e gente sempre disponível (i.e., sempre presente) para um passeio, uma festinha, uma reprimenda educativa.
Voltando ao tempo da Dara, faço questão de sublinhar o nosso cuidado em, tanto quanto conseguíamos, evitar que a cadela causasse danos a vizinhos e humanidade em geral: se ela sujasse ou estragasse, nós limpávamos e reparávamos; se ela rosnasse ou ladrasse aos transeuntes, nós intervínhamos, serenando-a ou afastando-a das pessoas.
Hoje, devinda memória a hiperactiva cadela que, por 13 anos, amámos como família, não temos cães em casa. Mais: não queremos ter cães em casa. Aprendemos a lição: para sanidade e real bem-estar de humanos e de animais, é preciso que a possibilidade de convivência compreenda, à partida, condições dignas. Continuo a ouvir com frequência a pergunta: “Não queres ter um cão?” Mas a própria ideia de “ter” um animal me parece já um erro, pela redução do ser vivo à condição de propriedade.
Lamento as gentes e os cães da minha tão estreita rua, estes pela falta de espaço, liberdade e companhia, aqueles pela – adivinhada - pressão a que estão sujeitos (as tropelias dos canídeos, o barulho, os fatais excrementos pela casa, pelas escadas, pelas ruas). Vidas, ambas, de cão.
Talvez os leitores me não perdoem a franqueza, mas eu creio que, por muito amor e compreensão que haja pelos admiráveis cães, é hoje impossível ignorar o flagelo representado pelas planícies de porcaria em que se tornaram os passeios de tantas urbes. Uma minoria recolhe, em saquinhos civilizados, a escatologia dos famosos melhores amigos. A maioria deixa que fezes e mijo se espalhem, sem regra, por passeios, aparcamentos ou pátios.
Já vi uma senhora à espera que o seu (enorme) cão se aliviasse à porta do prédio coimbrinha onde vivo. Farto de fingir que estava tudo bem, garanti-lhe que, logo que pudesse, não deixaria de passar com outro cão à sua própria porta - para lhe devolver a urina canina ali deixada. Virou-me as costas, murmurando (talvez) que eu era um desses crápulas que detestam animais.

Vila Real, 10 de Dezembro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 14-12-2017. A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.sobral24horas.com.]

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (115)


Três desejos (ou a felicidade)

Grupo IV do teste de Português, oitavo ano de escolaridade. Domínio: escrita. Tarefa: elaboração de um texto narrativo, partindo de uma situação fantástica (no sentido genológico do termo) – um mago, para premiar certo gesto generoso do narrador participante, oferece-se para satisfazer três desejos à sua (dele, narrador) escolha.
Os alunos enveredam por múltiplas-díspares hipóteses. Há quem recuse os desejos porque a bondade, se for mesmo bondade, é gratuita e não tem de ser paga. Há quem peça o venal dinheiro, a fundamental saúde, a abstrusa fortuna. E há raparigas e rapazes que pedem a imortalidade dos pais ou dos avós, a cura para o cancro, amigos novos, uma família “como deve ser” (sic), uma pastelaria na terra natal.
E eu bendigo esta tarefa da escrita, que tão naturalmente convocou nos alunos a reflexão filosófica sobre a magna e movediça questão da felicidade. Assombra-me a preclaridade tão precoce dos jovens aprendentes neste delicado ofício de pensar na sorte e no destino a haver.
Eu levei muitos anos a perceber que ser feliz era muito mais do que ser rico, ter sucesso ou fama ou poder. Por desde sempre viver vizinho dos amigos, dos livros, da família, dos filmes, do futebol, das praias, do amor – andei enganosamente à procura de coisas outras que significassem, julgava eu, a realização pessoal completa. Naquela ignorância, acreditava que o importante era não o que tinha, mas o que não tinha. Até saber a verdade evidente e grande como o mar: que a felicidade é um processo e são instantes; que estar bem se faz de mui simples horas, mui mínimas circunstâncias; que nunca se é feliz, antes se está.
Para alguns dos meus alunos, ser feliz é o avô não morrer de cancro. É testemunhar o milagre da amizade, algures na rua ou na escola. É ter pais que se dão bem e tratam os filhos dignamente. É ter uma pastelaria na sua terra (isto é, um trabalho que os salve do exílio). Coisas pequeninas e simples. Coisas, atentai bem, afinal maravilhosas e raras – como, já agora, isto de eu-cronista cronicar e ser lido (pois que lerem-me é um direito e eu ser lido é um privilégio).
Ora, a terminar, aqui ficam, os meus próprios três desejos, já em antecipação natalina: saúde para o cronista; saúde para os leitores; saúde para estas perecíveis crónicas, que aspiram a ser, no entretanto de (co)existirmos, um saudável território de encontro.

Coimbra, 30 de Novembro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 07 de Dezembro de 2017. A imagem (do inesquecível filme Cinema Paraíso, de Giuseppe Tornatore, foi colhida, com a devida vénia, em http://www.magazine-hd.com.]

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (114)



Caça aos professores


Não cessa de me espantar a sanha, mal disfarçada ou brutalmente ostensiva, que os tudólogos da pátria demonstram quando falam de professores.
Declaração de interesses: eu sou professor (“dessa raça”, como disse, na televisão, uma obesa excelência cheia de nada). Nem sempre adiro às greves marcadas pelos sindicatos, mas sou sindicalizado desde que abracei a profissão. É minha convicção que, depois de ouvirem-lerem o que se disse-escreveu contra os docentes, muitos dos que não aderiram à greve terão ficado com vontade de endurecer a luta.
A greve do passado dia 15 de Novembro foi pretexto para, em jornais e revistas, na rádio e na televisão, nas redes sociais e nas tascas e Cafés do país, as línguas viperinas atacarem os docentes, os sindicatos e os partidos que – ó escândalo dos escândalos! – apoiaram o protesto.
Para quem está na profissão com a paixão e o profissionalismo inerentes ao ofício, dói horrores ver-ouvir-ler tanto disparate opinativo, tanta ignorância gratuita e tanto (misterioso) ódio. Interrogo-me, em particular, sobre as razões que levam políticos e comentadores a nutrir este indisfarçado desprezo por quem fez do ensino a sua vida. Que traumas terão estas pessoas coleccionado, ao longo da existência, para agora, com tão pouca gratidão e tão fraca gramática, espumarem ressentimentos e falácias pelo palco mediático?
Entre outros clichês, dizem que os professores não têm avaliação. É mentira. Asseguram que os professores progridem sempre, sem quaisquer obstáculos. É mentira. Garantem que os sindicatos conseguem sempre quanto reivindicam. É mentira. Dizem que não é aceitável a quase totalidade dos professores obter uma classificação positiva para o seu desempenho (“Bom”). Atentai, por favor: quando vamos a um restaurante e somos servidos, podemos encontrar um empregado mais rápido, outro mais simpático, outro mais diligente, outro divertido – mas o normal será que o serviço fundamental seja cumprido, no matter what, não é verdade? É isso que se passa também nas escolas, nos hospitais, nas repartições públicas, nas papelarias, nas oficinas. (E quando não é assim, temos o direito e o dever de reclamar.)
Está tudo bem no estatuto da carreira docente? Creio que não. Defendo, por exemplo, a necessidade de se repensar a carreira, nomeadamente com a valorização salarial dos que estão na base do sistema. Ao contrário dos militares, cujas maiores patentes consubstanciam, de modo geral, maiores competências e responsabilidades, um profissional em início de carreira pode já exercer a maioria das funções atinentes ao professorado (docência, direcção de turma, coordenação de departamento, dinamização de projectos, etc.). Também defendo (e isto é matéria polémica entre os meus colegas) que, quando os candidatos a determinado escalão são em número superior ao das vagas disponíveis, haja exames escritos versando conhecimentos científicos e pedagógicos (talvez organizados pela universidade) que ditem quem pode ou não progredir. Bem sei que este crivo não é perfeito, mas salvar-nos-ia da venenosa desconfiança sobre eventuais favorecimentos pessoais.
A terminar: tenho um grande orgulho na minha profissão. Há séculos que os professores resistem ao desprezo e ao ódio de brutos e de ingratos. Mas o trabalho docente é uma espécie de caravana que, apesar de tudo, lá vai passando, enquanto a ignorância ladra.

Coimbra, 23 de Novembro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 30-10-2017. A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://pixabay.com.]