Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sexta-feira, 30 de abril de 2010

A Cidade do Amor


O amor é uma cidade fundada há muitos séculos. Andamos nele como quem se perde numa metrópole conhecida só de nome, de grandes avenidas e de esconsas ruelas, aturdidos os olhos e doridos os passos.
É um lugar inseguro e, como todas as capitais, muitas vezes violento.
Pelo chão do amor, é frequente tropeçarmos em indeterminados restos de coisas determinadas, em ruídos antes música, em cascas de tremoços antes tremoços, em gases de escape antes viagens, em muco buco-nasal antes respiração.
Mas também pode dar-se o caso de, subitamente, o dia se invadir de um cheiro a maresia, a flores, a café recente, a perfume estrangeiro, a pele de mulher fresca.
A cidade do amor tem muitos edifícios antigos, desses que aparecem nos livros de História e nos roteiros do turismo, e também casas muitíssimo modernas, dessas que aparecem nas revistas de arquitectura e de cabeleireiros. Passado e futuro são vizinhos e contemporâneos nesta urbe complexa. Mas é presente: andamos no amor como se todos os tempos caminhassem para agora.
O mais angustiante na cidade do amor é que as suas ruas e ruelas são longas, cansativas e raramente a direito. Ao fim de muitos passos não deixamos de estar sempre a meio da nossa viagem. E não se pode parar nunca, não se pode parar, não se pode.
Dizem-me haver por perto, algures, um lugar de ruas serenas e quietas, que levam os viajantes, sem dificuldade, à casa certa de cada um. Não há ali porcaria, mau cheiro, violência, incerteza, ruído.
Conheço esse lugar e confirmo: é verdade o que dizem. Mas esse lugar fica em outra cidade.


Coimbra, já 30 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra recorda a telenovela primeira de todas, Gabriela Cravo e Canela" (baseada no romance homónimo de Jorge Amado), e foi colhida - com a devida vénia - em http://www.soniabragaonline.com.]

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Biblioteca é um lugar de inaugurações


Tenho estado frequentemente, nos últimos quinze anos, em muitas bibliotecas do nosso país. Bibliotecas municipais e, sobretudo, bibliotecas de escolas.
Normalmente, vou a convite de colegas, às vezes de ex-aluno(a)s, e levo sempre a testemunhal incumbência de provar, em sessões que nunca ultrapassam´os 60 ou 90 minutos, que ler é bom, faz bem, vale a pena.
Ultimamente, tenho estado em cerimónias de inauguração desses lugares mágicos (para discursar ou para celebrar artisticamente as ocasiões). Aconteceu com a Biblioteca Municipal de Cabeceiras (sita no Arco) e com a do Agrupamento da minha Escola (Arco de Baúlhe). Acontece, no próximo dia 30 de Abril, com a Biblioteca Municipal de Ribeira de Pena.
Estes convites, se bem que redundem numa responsabilidade bem delicada e trabalhosa, honram-me por três razões. Por um lado, porque se trata objectivamente de uma distinção que me concede o meio onde trabalho e vivo, confiando nas minhas ideias e na minha – digamos assim – arte. Por outro lado, porque me possibilita o cumprimento de um dever não inscrito nos regulamentos funcionários, mas essencial à luz do que sinto-penso: ajudar a que a terra onde estamos tenha um bocadinho do melhor que somos. Há ainda uma terceira razão para a honra do que vos falo, mas guardei-a para o parágrafo seguinte.
Inaugurar bibliotecas é assistir in vivo à modernização verdadeira do meu país, que é – visto de onde vejo o fenómeno - um modo limpo de concretizar o 25 de Abril. Bem sei que, depois, falta dinamizar estes espaços, criar no público local (pouco familiarizado com literatura, exposições, estudo) hábitos de consumo e fruição de cultura. Isto demora a conseguir-se, requer paciência. Mas por algum lado se tem de começar: em Ribeira de Pena, há agora um magnífico Auditório e uma muito linda e funcional Biblioteca. Para a terra, é uma boa notícia. Para mim, que fui dado à luz em Coimbra mas aqui tenho nascido plurais vezes, é uma notícia boa. Orgulha-me fazer parte deste momento.
Afinal, a inauguração de dia 30 tem novamente a ver com livros. E digo-vos: é muito natural que eu esteja no primeiro dia oficial de uma biblioteca, pois tantas vezes os livros têm inaugurado vidas em mim.


Ribeira de Pena, já 29 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra foi colhida, com a devida vénia, em www.cm-rpena.pt.]

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Sobre a ideia de Dor Literária


Horácio recomendava aos candidatos a poetas: “Si visum flere est primum libi ipsum.”
Traduzindo livremente, “Se queres, com a tua poesia, fazer-nos chorar, hás-de tu próprio sentir, primeiro, a mesma dor que provoca o choro.” Ou, como preferiu traduzir Henry Fielding (em “Tom Jones”), “O autor que me fizer chorar há-de primeiro chorar ele próprio.”
À boleia de Horácio, julgo que a grande literatura se funda, quase sempre, numa dor verdadeira.
Atenção: quando digo “dor”, não falo só de temas e assuntos tristes; falo de uma agudíssima sensibilidade face à pele e ao coração dos dias. De uma atenção absoluta face ao visto, ao recordado, ao sonhado. De uma consciência afiada face ao que o mundo é e ao que o mundo poderia e, talvez, deveria ser. A dor, portanto, pode ter a ver com riso ou lágrimas.
A dor verdadeira não significa que a literatura se reduza ao desabafo momentâneo de um lírico. A dor é apenas um ponto de partida e, por razões operacionais, pode até ser inventada (ou fingida, como ensinou Pessoa). Mas é verdadeira por significar a imperiosa necessidade de, a partir dela, escrever a verdade.
Nem sempre percebemos a riqueza, a magnificência e a verdade de uma dor olhando para o poeta.
Percebemos talvez o tamanho e o valor da dor olhando para a linguagem do poeta, para os textos do poeta, para a Língua que o poeta inventa.
Vistas as coisas assim, a beleza dói.

Ribeira de Pena, já 28 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC.]

terça-feira, 27 de abril de 2010

No Divã de Mim


1. O universo nunca bem dorme. É uma verdade conhecida, universal: só dorme o que tiver a consciência tranquila.
Eu tenho uma cumplicidade com o universo. A noite chega sempre justamente, e o sono não.
Esta falta da burguesa pontualidade do meu sono rouba-me em manhãs o que me dá em literatura. Leio, escrevo, preencho a insónia. Mas não chega. A insónia sofre-se.

2. A minha consciência nunca está tranquila. Nunca me livrei de uma espécie de remorso que é sentir o tempo a passar. É como se eu próprio tivesse a responsabilidade de haver fim.
É isto o mundo. É assim a vida. Sei que todos os dias encerram a possibilidade de nos despedirmos (uns dos outros; da vida; do mundo; até da insónia). E assusta-me muito este défice de eternidade com que nascemos.

3. Este blogue é, às vezes, uma maneira de me olhar ao espelho. Um divã psico-lírico-analítico. Tantas vezes não gosto do que vejo, do que me ouço dizer. Tantas vezes me apetece partir o espelho, fugir do divã.
O meu amigo Francisco Botelho tinha um blogue, também. Ainda tropeço nele, googlando coisas sobre Ribeira de Pena e sobre os meus livros. Acontecerá um dia, comigo também, que alguém me revisite neste “Muito Mar” e, por minutos, tenha a ilusão de estar falando com um vivo?
Acontece-me pensar na VL e na MP lendo-me depois de eu já cá não estar. Gosto, confesso, da ideia de estarmos mais ou menos juntos, assim, mas o simples imaginar da cena provoca-me um choro de criança.

4. É por causa de amarmos que é triste a morte.
E é muito injusto, por isso, haver esta simultaneidade de amor e morte na condição humana. Deveria ser uma coisa OU outra.
Deus, supremo-autor putativo desta literatura do universo, que tenha a bondade de me desculpar: a obra é grande e delicada mas está mal feita.


Ribeira de Pena, já 27 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto-supra é, como são quase todas as fotos, sobre o movediço Tempo. Tem a saudosíssima Tia Branca do Rosário, a MP, a VL e o RS.]

segunda-feira, 26 de abril de 2010

EM TARDE SER




Há entre nós ainda tanta terra linda!


Coimbra, já 26 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[As fotos-supra são instantâneos obtidos numa localidade chamada Vila Meã, concelho de Vila Pouca de Aguiar, pelas 18 horas do dia 25. Fotos JJC.]

domingo, 25 de abril de 2010

Um Cravo no Coração


No dia 24 de Abril de 1974, eu tinha onze anos (feitos há nove dias). Deitei-me cedo, mas devo ter permanecido acordado boas horas, lendo. A meio da noite, ouvi decerto a minha mãe murmurar algo sobre a conta da electricidade, enquanto apagava a luz e regressava ao leito. O meu pai ressonaria, talvez, menos morto que hoje.
Muito de madrugada, ouvi a Dona Lurdes, vizinha de cima, avisar-nos da confusão “lá em Lisboa”. “São os estudantes?”, perguntou a minha mãe. “Não”, respondeu a Dona Lurdes, “desta vez, parece que são militares.”
No léxico doméstico, aquilo dos militares rimava com guerra. Ficámos todos inquietos e, não sem receio, os meus pais deixaram-nos ir para a escola, recomendando silêncio e decoro sobre o que a rádio dizia.
A rádio dizia, ainda, pouco. Tocava marchas militares e o hino nacional, dava as horas e, de vez em quando, reproduzia comunicados da Junta de Salvação Nacional.
Depois, fui descobrindo que “aquilo” era o princípio da liberdade. Que vivêramos, até aí, numa coisa chamada ditadura (ou fascismo), ao arrepio da europa moderna. Nem dois dias depois (ou três?), também eu gritei “Morte à Pide”, na Rua Antero de Quental, junto ao edifício-sede da dita, ali onde depois se instalou – lagarto, lagarto! – a DREC (Direcção Regional de Educação do Centro). E, aos árbitros que prejudicassem o União de Coimbra ou o Sporting, passei a chamar, em vez de “gatunos”, “fascistas”. O meu avô explicou-me que eu e o meu irmão Tó já não iríamos à guerra e o meu vizinho Américo garantia que nunca mais haveria falta de bacalhau para o povo.
Trinta e seis anos após esta névoa linda das lembranças, que dizer?
Trinta e seis anos são, em tempo humano, um perigo.
É o suficiente para nos morrerem pessoas queridas, para se degradar o cabelo, a próstata e a esperança, para ficarmos cínicos e velhos como os que eram velhos e cínicos em 1974.
É verdade que, hoje, me assalta, às vezes, a suspeita de que as revoluções são como os iogurtes – têm prazo de validade. Quando se fala de alguns políticos, da promiscuidade entre Estado e grandes grupos económicos, de mais Iberdrola que pátria, de gente que foge às domésticas responsabilidades para o remanso anódino da União Europeia ou da ONU, das reformas e prémios dos poderosos – sou tentado a ver tudo como o hiperónimo celebrado por Camilo: corja!
Mas, aleluia, hoje é dia de ter esperança. De nos purificarmos, ao menos pela memória. De dizer obrigado a Salgueiro Maia, ao MFA, aos antigos que acreditaram, no passado, ser possível um melhor futuro. Aquele futuro é este presente. O presente é sempre o futuro por fazer.
Faz, novamente, falta avisar a malta. Faz falta um novo sobressalto ético que devolva a esperança a um país que merecia ser verdadeiramente limpo e livre.
Eu sou por Portugal. Pela liberdade. Pelo 25 de Abril.
Sempre!


Ribeira de Pena, já 325 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A ilustração-supra é de Manuel Vilela, e foi feita expressamente para a capa do libreto da peça “A Noite de 24 de Abril”, que levei à cena em Ribeira de Pena, em 1998. O texto dessa peça foi uma adaptação da obra de Saramago, “A Noite”.]

sábado, 24 de abril de 2010

Aferição & Papa


Por decisão do governo, as provas de aferição de Língua Portuguesa e Matemática, destinadas aos alunos do 1.º e 2.º ciclos, foram antecipadas. Motivo: visita iminente de Sua Eminência, o Papa.
Não discuto, aqui, a questão de haver demasiada religião a motivar ou tutelar decisões de um Estado formalmente laico. Eu sei bem que o país profundo é consuetudinariamente religioso, sobretudo católico, e nem sequer acho que daí venha grande mal ao mundo. Chamai-me reaccionário, se quiserdes, mas acho que não se perde nada em respeitar alguns valores e hábitos antigos: quando não contendem com o respeito pela vida e pela dignidade humana; quando são profundos e estruturantes da própria ideia de povo; quando, enfim, beneficiam muito mais que prejudicam.
Mas o problema que aqui trago é de outra esfera. Tem a ver com alunos e professores, que deviam cumprir programas até certa data e que, sendo a dita data antecipada, terão de cumprir, ainda assim, os mesmos programas. Isto é, o tempo encurta, a exigência mantém-se. Um trabalho planificado para determinado período tem de ser concluído, afinal, duas ou três semanas antes.
Não me parece rigoroso. Não me parece justo.
Conclusão: já que o Papa, involuntariamente, prejudicou os alunos e os professores portugueses, ao menos que Deus, voluntariamente, os ajude!


Ribeira de Pena, já 24 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra foi colhida – com a devida vénia – no CM, edição de 21-04-2010.]

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Biblioteca Paraíso



Na quinta-feira, dia 22 de Abril, pelas 21 horas e quinze minutos, a Biblioteca da Escola-sede do Agrupamento do Arco (sita numa formosíssima terra chamada Arco de Baúlhe) celebrou o seu primeiro aniversário. Fê-lo da maneira mais interessante e inteligente de todas: com livros, com leitura. Promovendo o convívio informal de gente com o texto literário.
À actividade, sabiamente congeminada e coordenada pela coordenadora da biblioteca, Rosário Mendes, deu-se um feliz nome: “Café e bolos”.
Durante cerca de duas horas, houve café e bolos, de facto (como, aliás, também chá e sumos). Mas houve, sobretudo, num ambiente descontraído, adequado à fruição da Beleza, a leitura de poemas e de histórias. E houve música e imagens belíssimas. E houve dança.
Participaram alunos e ex-alunos, professores e outros elementos da comunidade educativa. A organização queria “um encontro”. Conseguiu “um encontro”.
Entre tantos motivos de agrado, houve um que me iluminou especialmente. Falo do soneto de Camões “Alma minha gentil que te partiste”, lido por uma aluna, enquanto passavam imagens do imorredoiro “Cinema Paraíso”, de Giuseppe Tornatore: aquela célebre colecção de beijos a preto e branco, a música de Morricone, a voz de Luís Vaz a falar de “assento etéreo”.
No final, ficou a promessa da Rosário: que celebrações deste género - animadas, divertidas, vivas - se repetirão no futuro. Ainda bem. A literatura, mesmo a que fala de perda, de fim, de morte, é sempre, sobretudo, matéria de vivos. É com vida que se celebra.
E, já agora, isto de uma biblioteca ser inaugurada e, depois, celebrada em Abril é bom sinal: biblioteca, na prosódia do meu coração, rima com liberdade.


Ribeira de Pena, 23 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

Inês de Lello


A notícia que se segue veio no “Correio da Manhã”, edição de 22 Abril de 2010.
Por razões de economia expositiva, dividi-a em quatro partes (aliás, alíneas):
a) ante-título e título;
b), c) e d) parágrafos relativos ao enunciado da peça jornalística.
Depois, comentarei sucintamente estas quatro alíneas.
A notícia é esta:

a) «PARLAMENTO: DESLOCAÇÕES DE INÊS DE MEDEIROS ENTRE LISBOA E PARIS / VIAGENS CUSTAM 6 MIL EUROS/MÊS»
b) «As viagens da socialista Inês de Medeiros entre Lisboa e Paris vão custar ao Parlamento mais de seis mil euros por mês. Ontem, o conselho de administração da Assembleia da República aprovou o parecer do auditor jurídico, que defende o pagamento das ajudas de custo à deputada, com o voto de qualidade de José Lello (PS), enquanto presidente, face ao empate dos votos a favor dos socialistas e os votos contra de PSD e BE. O CDS-PP absteve-se e o PCP não se fez representar. »
c) «A decisão do conselho não é vinculativa, mas, caso Jaime Gama dê o seu aval, Inês de Medeiros terá direito a uma viagem de avião de ida e volta, na classe mais elevada, uma vez por semana entre Paris e Lisboa, que ronda os 1160 euros. Ao fim do mês, são 4640 euros, acrescidos de despesas com as ajudas de custo pagas aos deputados que residem fora da grande Lisboa (69, 19 euros por cada dia de presença em trabalho parlamentar), o que, multiplicado por 22 dias úteis, representa 1522,18 euros. Ou seja, estão em causa 6162, 18 euros, a que se juntam ainda as despesas com a deslocação entre o aeroporto e a residência da deputada. »
d) «Inês de Medeiros congratulou--se com a decisão. "A minha satisfação é isto estar resolvido e acabar com esta campanha de enxovalhos e de informação pouco rigorosa."»

Comentários:
a) O ante-título e o parecem assépticos e, até, desprovidos de interesse para o leitor comum. A cidadã Maria de Medeiros, ao que parece, decidiu fazer vida fora de Portugal, vive em Paris, é talvez lá que encontrou (como tantos dignos emigrantes) o seu trabalho – nada há a apontar-lhe. Se as viagens entre Lisboa e Paris (e, julgo eu, vice-versa) são caras, é talvez porque a senhora viaja em primeira classe (se é que é esta a vipexpressão certa) – e quem quer luxos, já se sabe, paga-os. O dinheiro é dela, sai-lhe do bolso, não temos nada com isso.
b) A coisa muda de figura a partir da alínea b). Afinal, quem paga o conforto da senhora somos nós! Os contribuintes, os eleitores, os governados, os – digamos assim – pategos do costume. O Partido Socialista quis fazer deputada a cidadã Inês de Medeiros, que lá aceitou fazer o frete de cuidar da pátria durante um mandato, mas sem mudar a residência. Quem paga o capricho do PS não é o PS, nem a cidadã Inês: é o povinho resignado e néscio, que olha espantado para as vicissitudes extraordinárias da democracia moderna. Parece que seis mil euros por mês é pouco ou nada para o parlamento português, e entretanto os senhores deputados falam no perigo de bancarrota, em sacrifícios, em diminuição urgente da despesa do Estado.
Há uma coisa em que somos mesmo pobres, em Portugal: é em decoro. Os romanos legaram-nos esta bela palavra que, idealmente, deveria transportar um nobre e decente conceito dentro de si. Na Assembleia da República, que é onde Inês está nos intervalos da sua vida parisiense, trata-se de uma palavra desconhecida ou fora da validade. Parece que foi um senhor chamado José Lello que deu o seu “voto de qualidade” para tornar possível o indecoroso. Sobre a qualidade de José Lello, estamos conversados.
c) Confesso: parece-me caro o que o país paga pela deputada parisiense. Não é só pelo precedente; é sobretudo por me parecer que somos uma espécie de – digamos – Paços de Ferreira futebolístico que paga preços dignos do Real Madrid por futebolistas do campeonato distrital.
d) Parece-me natural que a deputada parisiense se congratule com a decisão. Entre as necessidades do país e as suas próprias necessidades, a cidadã Inês haveria de estar mais preocupada com quê? Esta é a nossa (de Inês de Medeiros e do Zé-povinho que somos) ditosa, amada pátria. Terra, como se sabe, de grandes gestos e de grandes gestas. Terra de grandes conquistas e de grandes amores.
Lembro-me, de súbito, daquela famosa homónima desta senhora deputada, a Inês outra, que amou o príncipe Pedro e, por amor, morreu. É a Inês cantada n’Os Lusíadas e não na página triste do Diário da República. É a Inês que veio do estrangeiro para Portugal e aqui viveu sem requerer, de Espanha, ajudas de custo.
Sumário: a história da Inês de Pedro não acaba bem, mas é bonita; a história da Inês de Lello acaba (aparentemente) bem, mas bonita não é.


Coimbra, já 23 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra foi colhida – com a devida vénia – no “CM”, edição de 22-04-2010.]

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Épica vista ao contrário


(Ao soldado desconhecido)



As orcas e tubarões assinalados
Desta ocidental praia lusitana
Por lares nunca dantes leccionados
Levaram rural tropa e tropa urbana;

E em perigos e guerras desgraçados
Muito mais que Prometeu da farsa humana
Entre gente remota sepultaram
Um moço que os grandes ignoraram:

Um gajo desconhecido e soldado
Sem rima sem métrica sem perdão
Cujo cantarei por toda a parte
Com engenho sem arte sem paneleirices!


Ribeira de Pena, já 22 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC.]

Poema do pessimismo humano


O sangue dos mortos é rio de Lavoisier e caminha.
O dos vivos é praia com remorso e sem búzios –
Há vergonha em vez de mar
Silêncio mau em vez de areia.
O que deveria ser a água são lobos e uivos
Sentados na noite com saudades da lua.

É assim e é triste e é bem feito.


Ribeira de Pena, já 22 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC.]

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Poema sobre a simplicidade da Poesia


A poesia é simples.



Ribeira de Pena, já 21 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este verso-poema faz parte do meu livro “Desapontamentos dos Dias" (Coimbra, Ed. A Mar Arte, 1995). A imagem –supra (colhida - com a devida vénia - em http://oslivros.blogs.sapo.pt) é a capa do livro “O Carteiro de Pablo Neruda” (publicado em 1985), do chileno Antonio Skármeta. Há uma boa adaptação ao cinema desta obra, levada a cabo pelo realizador Michael Radford, em 1994.]

Paz de pombas


Dizer da pomba que é da paz
Não é pacífico para a pomba:
A pomba pobre pomba se reduz
Assim
A conceito pimba e pobre (pumba).

A paz se quiser pombas
Que as compre
Que gaste dinheiro
Que se canse a criá-las ou caçá-las
Que as namore
Que as conquiste!

A paz das palavras feitas com pombas
(metidas em gaiolas de conceitos com grades)
É missa velha, coxas mortas, hálito de farmácia.

É preciso dizer a verdade pelo céu inteiro:
É mais a paz das pombas que o inverso!


Ribeira de Pena, já 21 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto-supra é de Henri Cartier-Bresson e nela aparece um conhecido amante de aves: Matisse. A foto foi colhida – com a devida vénia – em http://wiki.eca.lui.com.br.]

Discurso do soldado 27 mesmo antes de morrer


- O dever chama-nos rapazes.

- Meu capitão,
Façamos de conta que não o ouvimos!



Ribeira de Pena, já 21 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra serve para recordar o grande Solnado. Esta (minha) réplica poderia fazer parte – digo eu – da (sua) “ida à guerra”.]

terça-feira, 20 de abril de 2010

Glosa sobre plaino fernandino


No plaino abandonado, pá,
Tu não reparaste e eu estava lá –
Doía-me até a perna e eu já
Não a tinha (à perna), pá!

Cá dentro, em casa, toda a gente, pá
Rezava por mim e eu morria, lá
Longe, pá, doendo-me a alma que já
Não tinha (à alma), pá!

Eu como tu, pá, mortos os dois,
Mais ninguém.
Houve, na freguesia, depois
Finados sinos
E certa poesia chamou-nos meninos
De alguém.


Ribeira de Pena, já 21 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra é de um filme de Manoel de Oliveira - “Non, ou a Vã Glória de Mandar” (1990), que contou no elenco com os actores Luís Miguel Cintra, Diogo Dória, Miguel Guilherme, Luís Lucas, Carlos Gomes, António S. Lopes, Mateus Lorena, Lola Forner, Raúl Fraire Ruy de Carvalho, Teresa Menezes, Leonor Silveira, Paulo Matos, Francisco Baião e Luís Mascarenhas. A Teresa Menezes, salvo erro, foi minha colega na C+S de Poiares, distrito de Coimbra.]

Cão contra a guerra


Veio até a um lugar geoestratégico nos arredores de Paris, de muito longe, um cão.
Havia por ali, antes de o cão chegar, bastantes homens e muita guerra. Guerra e homens são, na história do mundo, um pleonasmo triste.
O cão veio de muito longe e urinou sobre um tufo de ervas rasteiras.
Urinou pouco tranquilamente, no contexto de calão e tiros, e também de silêncios feridos ou mortos.
Depois, desagradado do lugar, o cão seguiu viagem para muito longe, para lá da lonjura do princípio do texto.
Nem um dia depois, obedecendo à lei de Lavoisier e ao sol, a urina canina transformou-se numa coisa diferente. O cão, segundo se sabe, não.


Ribeira de Pena, já 20 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra é a capa de uma edição brasileira de “O Apelo da Selva”, de Jack London, aqui com o título “O Chamado da Floresta”.]

Picasso


Picasso olhou a mulher
E avançou com mil palavras
Para dizer (sobre a mulher,
amada de tantos lados)
Seu amor nascente.

Ela hesitou
(duvidando do carácter pluriangular
da admiração).

Não percebes
(perguntou Picasso)
Não acreditas?
Queres que te faça
(insistiu)
Um desenho?

E fez o desenho
Para dizer no desenho as palavras
E o amor (sobre a mulher)
Que as palavras queriam ser.

A mulher sorriu.
De modo sobretudo secreto, sorriu.

O sorriso da mulher queria dizer
(como se o sorriso fosse palavras;
como se o sorriso fosse desenho)
Que a mulher tinha percebido
Tudo
Por todos os lados.


Ribeira de Pena, já 20 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Uma primeira versão deste poema foi escrita a 10-05-2000. A pintura-supra é de Pablo Picasso e foi colhida – com a devida vénia – em http://www.alborques.com.]

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Ribeira de Pena & adrenalina


Teve lugar, neste fim-de-semana, em Ribeira de Pena, uma prova da Taça de Portugal em Downhill.
O evento trouxe animação e muita adrenalina ao concelho.
Quem visita esta terra tem tudo a ganhar, porque se trata de um território formoso como poucos; e a terra, ela própria, ganha com acontecimentos assim, que animam o quotidiano das gentes e dinamizam a economia local.
A cultura e o desporto são decerto antídotos para a tão glosada desertificação do interior. Não serão os únicos, não serão suficientes, mas são comprovadamente bons.
Para a história fica a informação sobre o vencedor: à semelhança do ano passado, triunfou Emanuel Pombo, com o excelente tempo de 2 minutos e cinco segundos.

Ribeira de Pena, já 19 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A primeira das imagens-supra foi colhida – com a devida vénia – em http://www.cm-rpena.pt; a segunda é da autoria de Amadeu Borges.]

domingo, 18 de abril de 2010

Surfando uma metáfora


A felicidade também depende da sorte, é verdade.
Talvez se possa dizer, dela, que é como o surf: para sobreviver e brilhar, um surfista precisa de uma boa onda.
Mas não há sorte que substitua a necessidade, antes de tudo, de ousar invadir o mar e, depois, de acreditar na possibilidade de uma boa onda.
É ainda preciso vencer o frio e o aborrecimento da espera. É preciso atenção e cuidado.
E, quando a onda certa vem, se vier, é preciso competência para aproveitar o momento. É preciso estarmos preparados.
O mar, abstractamente dito, é sempre o mesmo. A diferença está, sobretudo, no surfista.
Com o tempo, segundo dizem, aprendemos a surfar melhor. Mas, à medida que o tempo passa, cada vez temos menos tempo.


Ribeira de Pena, já 19 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra foi colhida – com a devida vénia – em http://.ondas.weblog.com.]

Soneto do Alípio da "Progresso (Import-Export)"


Sexta-feira à tarde, no regresso
Da semana pontual, seriamente
O sr. Alípio da Progresso
Import-Export
, eloquente

Disse à mulher da decisão
Tomada no caminho para o lar:
Escutassem-no bem, com atenção –
Domingo iam à praia, passear.

E o sr. Alípio da Import-
Export
, conhecido lá na rua
Elogiou a vida & a sorte

E adormeceu sem olhar a lua
Nem o rosto triste da consorte
Por o ver adormecido e ela nua.


Ribeira de Pena, já 18 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Uma 1.ª versão deste texto faz parte do volume “Embalo de Ella” (Prémio Cesário Verde/Revelação – 1995). A imagem-supra (foto de Carlos Barroso)reproduz uma obra de Bordalo Pinheiro e foi colhida – com a devida vénia - em www.oesteonline.pt.]

Poema (popular) da mulher triste


Ah, pois pegaste, dirás, na mulher
E nos filhos e pois vestimo-nos
Como quem vai de casamento
Ou de baptizado e cerimónia, etc.

Pois fomos a um restaurante
E pois comemos bifes arroz salada
E flan e ananás e molotov
(cada sobremesa a três euros, carago)

E pois os miúdos encheram-se de nódoas
(Tiveste que lhes pregar uns tabefes)
Antes dos cafés e da gorjeta.

Pois regressámos à tardinha
Depois de uma soneca e do relato
Do futebol (eu fiz tricot).

À noite, quiseste sexo, ah pois quiseste
(embora eu preferisse ir ao cinema)
E pois, dirás, foi um dia bem passado.



Ribeira de Pena, já 18 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Uma 1.ª versão deste texto faz parte do volume “Embalo de Ella” (Prémio Cesário Verde/Revelação – 1995). A obra-supra é de Andy Warhol e foi colhida na wikipédia.]

sábado, 17 de abril de 2010

A Bela e o Nojo


A história não se passou comigo. Mas é minha porque me comoveu suficientemente para falar dela. Passa-se numa reunião com encarregados de educação. A propósito dos problemas de um aluno, a mãe desata subitamente a chorar e fala no regime de terror que há, todos os entardeceres, na sua casa.
Violência doméstica, está-se mesmo a ver. É um assunto sempre penoso, que a todo o instante pode ferir susceptibilidades, suscitar processos judiciais, gerar vinganças e remorsos. Um mundo, enfim, de silêncios e de indignidades secretas. O mais fácil é ignorar, encolher os ombros, suspirar q.b. e andar para a frente. Entre marido e mulher, etc...
Mas há, nos homens a sério, um problema. O problema de um homem chama-se espelho. É quando nos não revemos, à hora de nos auto-mirarmos, naquela figura covarde e resignada, que desiste de ser gente e opta pela medíocre tranquilidade de não ter chatices. Acontece na profissão, na família, na vida.
O caso da violência doméstica assume contornos mais trágicos quando há, no meio desse novelo neo-realista, crianças vítimas. Vou a uma imagem dada à luz por Soeiro Pereira Gomes para as descrever: homens de amanhã que não chegam a ser meninos hoje.
Trata-se, a bem dizer, de vários crimes ao mesmo tempo: usurpação da infância, da adolescência, da juventude. Usurpação da felicidade presente e futura.
A encarregada de educação diz ao director de turma do seu filho que já levava pancada desde moça, desde o namoro. Tivera um dia a esperança de que, após o casamento, o agressor prescindisse desses hábitos bestiais. Tivera depois a esperança de que o nascimento dos filhos conseguisse o que o casamento não conseguira. Até que ao ingénuo esperar sucedeu o desespero e a descrença. Tudo isto rodeado de sangue e de lágrimas que custam muito mais a sentir do que a descrever.
Tomou, em certa noite de gritos e de pancadaria, a decisão enfim de sair de casa, levando os filhos. Mas não já. Tem ainda de esperar. E explicou à directora de turma o porquê do adiamento desta liberdade.
Em pequenina, quando fizera a primeira comunhão, já não tinha pai; e custara-lhe muito essa ausência, vendo os amigos serem beijados pelos respectivos patriarcas. Queria, portanto, esperar pela primeira comunhão do filho, antes de correr com o marido agressor de tantos anos. Para que, já se vê, não fosse o descendente privado (como ela) da presença paterna, nessa altura solene.
O capricho desta mãe tem razões de amor que não há legislação ou filosofia capazes de combater. Mas suscita também esta ideia perturbadora, embora bela, de haver quem prescinda de ser feliz para que os outros sejam felizes. Não seria isto particularmente grave, se não houvesse por aqui também a questão da dignidade humana...
Tem de haver um limite para nos sacrificarmos, nos humilharmos, nos adiarmos. Esse limite chama-se, já disse, dignidade.
Abaixo desse equador das nossas vidas, já não somos pessoas.


Coimbra, já 17 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A 1.ª versão deste texto foi publicada em Novembro de 2005, no “Ecos de Cabeceiras”. A imagem-supra é do filme “Dou-te os Meus Olhos”, de Icíar Bollaín (Espanha, 2003).]

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Novíssima Palavra


Soube, pela televisão, que João Braga fazia 65 anos no dia 15 de Abril. Por esse motivo, foi homenageado na RTP.
O pormenor da data aproximou-me do fadista. Dezoito anos depois da sua chegada ao planeta, cheguei eu próprio, para cumprir também (e, a meu modo, cantar também) o meu fado.
Ao longo da tarde, João Braga recebeu felicitações e, com maior ou menor imaginação, elogios acerca da sua qualidade artística e humana.
Denominador comum, foi sempre a ideia de que este homem se preocupou muito com a defesa e renovação de um tesouro musical a que se chama fado. E de que, sendo verdade que muitos novos cantores chegaram ao sucesso pelas mãos do sexagenário consagrado, nem por isso aqueles viram neste, jamais, qualquer sombra de ciúme ou de desconfiança.
Um dos convidados era um padre chamado João Seabra.
Comentando esta qualidade tão glosada do aniversariante – que eu classificaria normalmente como generosidade -, o padre João Seabra utilizou uma palavra nova, aos meus ouvidos, de que não mais me esquecerei: longanimidade.
Quer dizer: grandeza d’alma.
O João Braga e os seus amigos que me perdoem, mas foi esta a coisa mais bonita do programa: uma palavra novíssima, cheia do melhor que um homem seja capaz de ser e fazer.
Talvez eu andasse há muitos anos à procura de uma palavra assim, uma palavra com alma grande dentro de si: longanimidade.


Ribeira de Pena, já 16 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto-supra (do padre João Seabra) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.ver..pt.]

Aniversário


Hoje, uma amiga cumpre novo aniversário.
É uma pessoa bonita.
Como gosto dela, tendo a achar que merece mais da vida do que a vida lhe tem dado.
Em boa verdade, não sei se o futuro será melhor. Mas sei que deveria ser bom, porque se trata de uma pessoa bonita, muito merecedora de um futuro digno de si.
Vivamos. Quando este nosso presente for passado, faremos as contas. Ou outros, por nós, as farão.
Se acredito no futuro?
Com a idade, o verbo acreditar torna-se uma espécie de enseada para quem, como eu, é já um barco cansado. É lá que vou, quando me apetece sonhar com futuro e sorte de mãos dadas.
Entretanto, repenso navegação, recarrego forças e deixo que o mar me embale, como uma Mãe a um filho.
Parabéns, S., e acredita. Há muito mar ainda à tua espera.



Ribeira de Pena, já 16 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra foi colhida, com a devida vénia, em http://www.fotos-flores.blogspot.com.]

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Economia vista de baixo


O cartoon de Luís Afonso brinca – muitíssimo a sério – com a realidade que, neste “muito Mar”, já denunciei ferozmente: a desigualdade de rendimentos entre as excelências chefiantes e os plebeus da máquina laboral.
Há uns anos, em programa da RTP 1, Dias Loureiro explicava, com seu ar magistral, o modo de sanear economicamente as empresas. Lembro-me, em particular, de um exemplo que dava o famoso perito em (como é que se diz?) gestão de activos. Era o exemplo dos funcionários da limpeza.
Explicava Loureiro que uma medida de gestão eficaz poderia passar pela redução do número destes funcionários, mas que era importante que se mantivesse a empresa limpa. Tratava-se, sublinhava, de fazer o mesmo serviço, mas poupando na quantidade de funcionários.
Pergunto eu: poupando para quê?
Responde Luís Afonso, com o seu cartoon: para que os magníficos administradores da coisa pública ou privada não percam os seus magníficos privilégios.
“Reality stinks”, como dizia um polícia honesto num filme americano dos anos 1980.



Ribeira de Pena, já nesta data querida de 15 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra (“Bartoon”, de Luís Afonso) foi colhida, com a devida vénia, no jornal “Público”, edição de 13-04-2010.]

APESAR DE TUDO


A convite da minha colega e amiga Clara Póvoa, tenho colaborado com o boletim da Biblioteca da Escola Secundária de Cantanhede. Recebi entretanto, via email, o último número e li-o de enfiada. Partilho, já agora, neste “Muito Mar”, a crónica que, em Junho de 2009, assinei. Chama-se, como acima se diz,

APESAR DE TUDO



1. Amanhece, em finais de Junho, no esconso íntimo de alunos e de professores, um coração perguntador. Ouçam-no.
2. Vale a pena o cumprimento repetido repetido repetido repetido da faina diária? Tem sentido o esforço e a esperança que fabricamos todos os dias? É legítimo o sonho? É razoável acreditar?
3. Às quatro interrogações responderei, prometo, no penúltimo parágrafo. Por agora, estou um pouco triste: duas alunas minhas não foram admitidas a exame. Tratou-se de uma infelicidade anunciada, que percorreu conversas, cartas, reuniões, planos de apoio e de recuperação, psicologia e cumplicidade. Perderam. Perdi. Perdemos.
4. Ao longo do ano, viajei com os meus alunos por muitos verbos (quase todos transitivos). Treinei-os. Cumprimentei-os. Critiquei-os. Ameacei-os. Castiguei-os. Recompensei-os. Dei-lhes ordens, orientações, conselhos. Ouvi-os. Concordei com eles, discordei deles. Experimentei modos, sugeri caminhos, sofri com eles, ri com eles, tive medo por mim e por eles. Errei e acertei com eles. Estudei com eles. Iludi-me, desapontei-me, reiludi-me.
5. No final do exame de Língua Portuguesa, eu tinha chocolates para todos. Em boa verdade, a ideia (singela, ingénua) era oferecer-lhes um suplemento energético antes da prova; mas eles e eu estávamos tão nervosos que as tabletes ficaram, por duas horas, esquecidas num silencioso saco de hipermercado. A cada chocolate havia risos – e alguns repetiram a dose, sem cerimónia. “Nós merecemos”, garantiram-me, debitando desabafos sobre as orações coordenadas e as palavras derivadas por prefixação. Uma espécie de festa, feita de genérico alívio e de juventude, percorria o hall de entrada do edifício escolar. Elas e eles achavam que a prova correra muito bem. Eu escondi, então, o meu temor persistente e trágico, que desconfia de tanta facilidade percebida. Contudo, fui também tocado pelo brilho e pela música da alegria que a turma do 9.º A, a minha, ali era.
6. Eles vão, quase todos, partir para nunca mais. Vão para o secundário, para cursos técnico-profissionais, para o mundo do trabalho ou da falta de trabalho. Vão para longe daqui. E vão definitivamente para um “lugar estrangeiro”, como diz Manuel António Pina, chamado (outro) tempo.
7. Tenho saudades, já, dos seus rostos. Esqueci-me, como por magia, dos episódios de preguiça, de injustificadas ausências, de trabalhos de casa por fazer, de indiferença ou irresponsabilidade face ao estudo. São rapazes e raparigas cheios de futuro. Eu andei por aqui a prepará-los para a felicidade – mas não posso garantir nada.
8. Digo-lhes adeus daqui, deste lugar onde estou (onde fico). Deste lugar onde sou. Vistas as coisas à luz do meu coração, quem manda no meu ofício são estes jovens tão celeremente outra coisa que ainda não sabemos. A legislação verdadeira que intimamente sigo tem a ver com as suas necessidades, os seus anseios, os seus direitos. Um dia hei-de explicar isto a certo secretário de estado quando ele já não for secretário de estado.
9. A minha biografia, tão castigada nos últimos anos, recomeça hoje. Tenho já a frase para primeiro parágrafo do que haverá para contar: “Aqui estou, apesar de tudo.”
10. E isto significa que as respostas às quatro perguntas feitas no dealbar deste textinho são: Sim. Sim. Sim. Sim.
11. Talvez o futuro confirme o meu optimismo ingénuo.



Ribeira de Pena, já data querida de 15 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

[A imagem-supra é a da capa do boletim da Biblioteca da Escola Secundária de Cantanhede (ver em http://be.escantanhede.pt). O texto foi escrito e remetido a 18-06-2009.]

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Um homem ressabiado não é um homem duas vezes sábio


Ontem, o Sporting perdeu com o Benfica.
Decompondo a frase, digo: o Benfica ganhou; o Sporting perdeu.
São, nesta soturna época futebolística, duas normalidades numa.
Ora, a normalidade, assim feita, dói-me muito.
Televi o jogo no Dolce Vita, em Vila Real, encostado ao cúmplice sofrimento da Maria da Paz.
No final, olhei à volta e vi os outros (ou a maioria dos outros) cheios de uma alegria estranha e ofensiva. Era a alegria dos outros, coincidente com o meu profundo abatimento.
Os outros, se os olharmos bem com os nossos próprios olhos, são uma coisa estranha. (Se eu fosse bom dramaturgo, percebê-los-ia melhor.)
A alegria deles é como se a nossa tristeza fosse a dobrar.
Nem sequer me consola a ideia de que, noutros tempos, as coisas sucederam ao contrário.
Falta-me, ai de mim, aquilo a que inexactamente chamam desportivismo. Desde o primeiro golo vermelho que chamei “brutamontes” ao Luisão, “melancia ingrata” ao Carlos Martins, “caceteiro” ao Xavi Garcia, “tartaruga” ao Cardoso, “pedregulho com olhos” ao Jorge Jesus. Do árbitro nem é bom falar: por ele, cheguei a inventar palavrões, com recurso a estrangeirismos, aglutinações e justaposições.
Resumindo: é muito difícil suportar fleumaticamente a alegria dos outros. É uma alegria estrangeira. É uma alegria apenas explicável à luz dos outros e do mundo dos outros. É uma alegria de um mundo outro.
O mundo dos outros é, nestas ocasiões, uma inconveniência e uma ameaça. Mais: é um anti-mundo que colide com o nosso.
O nosso mundo, visto pelos nossos olhos, é o mundo como devia ser. O céu.
“L’enfer”, como ensinou Flaubert, “c’est les autres”.

PS: Passada a azia, lembro-me do Daniel Abrunheiro, do Fernando Abrunheiro, do Massas, do Jorge Magalhães, do Dinis, do Albino, do Amadeu, do Avelino, do João, do Vilela, do Vasques, do Álvaro, do Alberto Ornelas, da Alexandra Crespo, etc. Gente como eu, com direito à sua alegria. Gente não tão outra como, à flor da pele, parecia. Digo-lhes, por isso, parabéns, como se houvesse regressado ao que inexactamente se chama desportivismo.


Ribeira de Pena, já 14 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

terça-feira, 13 de abril de 2010

Poeta quase em bicos de pés


Sou o maior poeta da minha vida.

Sou talvez um dos cinco maiores poetas da minha mundivisão.

Sou um dos mil maiores poetas da minha mundividência.

(Isto não tem nada a ver com imodéstia
Ou modéstia. Tem a ver comigo
a ver-
-me.)


Ribeira de Pena, 13 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho (Foto MPC)

O Problema da Circulação


No centro comercial, o estacionamento é conta certa
(xis lugares, xis viaturas, resto zero).
Os automóveis arrumam-se simetricamente
Lado a lado, frente a frente, até uns sobre outros
(Sobreterraneamente, subterraneamente).
Para não nos esquecermos do nosso lugar
Decoramos a letra do piso (a minha é A)
E o número da zona (o meu é 17).
Acontece-me, muitas vezes, à hora de reviajar
Ter-me esquecido da letra e do número
Do meu lugar.
Aí, por minutos, falta-me a possibilidade
De movimento.

É preciso saber onde deixámos o nosso carro,
Amor.
É sempre preciso saber de onde partimos.



Ribeira de Pena, já 13 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A 1.ª versão deste poema foi escrita a 04-08-2008. Foto JJC.]

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Uma sílaba de barba


Era uma vez um homem que só escanhoava metade da barba. Isto é, dividia o rosto a meio, no sentido longitudinal, e rapava os pêlos do seu lado esquerdo (pilosidade pescoçal incluída), deixando o lado direito incólume.
A mulher sorriu à ideia do homem. Perguntou-lhe:
- Não fazes a barba toda?
O homem sorriu também e disse:
- Uma parte de mim quer fazer; outra parte não. De modo que, em vez de fazer a barba, faço a bar.
A mulher admirou-se:
- A bar?
O homem explicou-se:
- Sim. Faço apenas uma sílaba da barba.
No final da primeira semana, a diferença entre um lado e outro notava-se bem.
Ao caminhar para o emprego, caminhando ao longo da rua, pessoas do lado direito da sua marcha (o barbeiro, o engraxador, o professor Manolete, a dona Berta da agência de seguros) comentavam, cheias de um azedume burguês:
- Parece que não tem tempo para cuidar do aspecto! Aquilo é doença ou preguiça…
As pessoas do lado esquerdo (o senhor Gregório da papelaria, a menina Lurdes na sua eterna cadeira de rodas, as irmãs Melo da frutaria, às vezes um ou outro marinheiro saindo da pensão Ideal) tinham uma visão diferente:
- Até dá gosto! Sempre muito bem afeitado, com um ar limpo e saudável... Fossem todos assim…
Claro que, no regresso a casa, pelas sete da tarde, o tom dos comentários tendia a transformar-se. As pessoas que o viam regressar, no lado direito da sua marcha (e que, de manhã, lhe ficavam à esquerda do seu movimento andante), admiravam-se bastante do que viam:
- Muito lhe cresce a barba da manhã para a noite. Parece um bicho! Eu não acredito em lobisomens, mas nunca se sabe…
Do outro lado da rua, aqueles que de manhã lhe haviam verberado o mau aspecto, resmungavam novos reparos, carregados de uma ironia venenosa:
- Ainda bem que o emprego lhe dá tempo para fazer a barba. Por isso nos fartamos de esperar na repartição. E queixam-se eles da falta de pessoal…
Dois meses depois da sua ideia, o homem já tinha, no seu lado esquerdo, uma tão imensa barba que, mesmo quem o observava do lado contrário (e sem grande esforço) percebia aquela divisão tão extraordinária.
Dos dois lados da rua, de manhã e de tarde, todos concluíam que se tratava, afinal, de um louco.
Só a esposa, que estava ao corrente da exacta excentricidade do homem, sabia que não era bem loucura. No máximo, seria uma sílaba de loucura. E por isso assegurava, em repetidas conversas com o barbeiro, o engraxador, o professor Manolete, a dona Berta da agência de seguros, o senhor Gregório da papelaria, a menina Lurdes na sua eterna cadeira de rodas, as irmãs Melo da frutaria, às vezes um ou outro marinheiro saindo da pensão Ideal:
- O meu marido é apenas lou.


Ribeira de Pena, já 12 de Março de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem-supra foi colhida na wikipédia. Trata-se de uma cena de “Recordações da Casa Amarela” (1989), de João César Monteiro, com o próprio no principal papel.]

domingo, 11 de abril de 2010

Humberto Delgado & Nós



O centenário do nascimento de Humberto Delgado foi marcado, sobretudo, pela exibição de um documentário (começado, salvo erro, em 2005) sobre a figura deste militar. O filme chamou-se “Meu Pai, Humberto Delgado”, tendo argumento de Frederico Rosa e realização de Francisco Manso.
Em 1958, Delgado desafiou a ditadura salazarista. Embora fosse general, com fatais ligações ao regime vigente, representou então o grito de liberdade que outros, menos capazes ou menos corajosos, não foram capazes de assumir.
Interrogado, no lançamento da sua candidatura, sobre o que faria ao presidente do conselho (António Oliveira Salazar) caso ganhasse as eleições, foi lapidar: “Obviamente, demito-o."
O regime fascista tratou de, por todos os meios, silenciar este combatente: filtrando as notícias nos jornais e na rádio, censurando opiniões, lançando boatos, mentindo, manipulando, prendendo, agredindo, “excomungando”.
Mas deu-se, há cinquenta anos, esse milagre, recorrente na narrativa da humanidade e das civilizações, de o povo vencer o medo e a “verdade oficial”. Pelo país, repetiram-se manifestações de apoio ao general, como se Portugal fosse visitado por um magno vento libertário, ao arrepio de instruções ministeriais ou da repressão policial (fardada ou secreta).
Sabe-se que esta história não acabou bem, se vista do lado dos que amam a liberdade. Delgado, recorde-se, foi vítima de uma das maiores vigarices eleitorais da História. Mais tarde, seria obrigado ao exílio. Finalmente, foi assassinado, em território espanhol, muito perto da fronteira portuguesa. Só no dia 25 de Abril de 1974 se cumpriria o sonho do general.
Celebrar, hoje, Humberto Delgado e a sua luta significa estar activamente do lado das causas que valem a pena: liberdade, democracia, tolerância, cidadania.
Por razões de economia, há em Portugal quem esteja disposto a pactuar com regimes como os da China, de Angola, da Arábia Saudita, etc., onde valores fundamentais da dignidade humana são postos em causa. Nada se lhes exige porque política e economicamente não é oportuno. A um nível mais doméstico, lembro-me até de o presidente Cavaco Silva quase pedir desculpa por visitar certo arquipélago português, ignorando cinicamente certas afrontas senhoriais.
Hoje, como em 1958, é importante que nos perguntemos de que lado estamos. A hipocrisia, ainda que elevada a razão de Estado, não deixa de ser o que é: uma prostituta com um livro de cheques no lugar do coração.


Coimbra, já 11 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Uma 1.ª versão deste texto foi publicada no “Ecos de Cabeceiras”, em Maio de 2008.]

sábado, 10 de abril de 2010

Morte(s)


O meu anjo da guarda apareceu-me de madrugada, quando eu escrevia novamente sobre o meu pai.
O meu pai morreu-me há 3 anos. Mas, como me lembro dele todos os dias, é como se me nascesse e me morresse continuamente.
O anjo disse:
- Outra vez a escreveres sobre o teu pai?
Eu respondi:
- É mais do que sobre o meu pai. É também sobre mim.
O anjo perguntou-me:
- Sobre ti?
Eu respondi:
- É sobre a morte.
O anjo disse:
- A morte é um assunto muito delicado.
E eu:
- Pois é. Deve ser.
E o anjo:
- Tão delicada que só os mortos deviam estar autorizados a escrever sobre a morte.
E eu:
- Só os mortos?
E o anjo:
- Só os que partiram sabem do que se fala quando se fala da morte.
E eu:
- Mas os que ficam também têm a sua quota-parte de morrer.
E o anjo:
- Quem te disse? Quando o teu pai morreu, só o teu pai morreu. Quando morre uma pessoa, só morre uma pessoa.
E eu:
- Quem te disse?



Coimbra, já 09-04-2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC]

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Amante mais triste


A paixão é uma dor bonita que se escreve
A dois, passo a passo, no silêncio da areia
No segredo das praias.

É bela consoante a música dos passos.

Dura o tempo de a maré não voltar
E é grandiosa e trágica porque é impossível
Adiar a última onda.

Na areia da praia os passos escrevem
O amor
E apagam-se e nunca voltam.

Quando não há passos desenhados, existem
Silêncios de passos antigos.
Quando não há passos, há memórias.

O poeta existe nos passos e na onda
Que apaga os passos.
No silêncio lembrando-se.
(Às vezes, na própria saudade de tudo).

Por isso o poeta é um sábio e um ingénuo -
Do amor o amante mais triste.



Coimbra, já 09 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Trata-se de um poema do meu livro “Desapontamentos dos Dias” (Coimbra, Ed. A Mar Arte, 1995). Faz também parte da Antologia Poética “Memória da Palavra” (Coimbra, Ed. Secretaria de Estado da Cultura – Delegação Regional do Centro, 1995). Foto JJC.]

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Manual e Mãos


No ano lectivo de 2008-2009, a Porto Editora convidou-me a colaborar num projecto aliciante e assustador: criar, de raiz, um manual de Língua Portuguesa.
Ingenuamente, acreditei que era capaz de corresponder ao desafio. Depois, perante a magnitude da obra e a violência dos prazos, arrependi-me muito.
Não deixei de colocar, sempre, os meus alunos em primeiro lugar. O manual foi feito em dolorosos serões, sábados e domingos, interrupções lectivas. A minha mulher dizia-me, com frequência, que eu ia dar em doido. Eu, doido, dizia-lhe que não se preocupasse.
O manual, entretanto, publicou-se e, ao que julgo saber, vendeu-se razoavelmente. Soube que, já no final de 2009, a editora mandou fazer uma segunda edição. Senti um doméstico orgulho pelo facto, como compreenderão.
A lembrança desta experiência surge aqui a propósito de uma conversa com colegas, à mesa de um Café, em Coimbra. Ouvi gente verberar alguns manuais e, na enxurrada opinativa, postergar autores e editoras. Senti, na íntima pele da própria experiência, a facilidade com que atacamos o trabalho dos outros.
Eu creio que nunca mais me apanharão em projecto semelhante, tão dificultosa e responsabilizante é a tarefa. Mas (re)defendo uma ideia singela: a de que a qualidade do manual de Língua Portuguesa depende, em geral, mais do uso do que da matéria-prima.
Num texto introdutório de “meu” manual, escrevi sobre esse assunto e - com licença da Porto Editora - recordo algumas das afirmações aí produzidas. O texto dirige-se, formalmente, ao aluno (utilizador a haver do livro).

Ler. Escrever. Falar. Compreender. Exprimir ideias, emoções, sentimentos. A disciplina de Língua Portuguesa é “isto”. Um manual de Língua Portuguesa serve para ter isto “à mão”.
Neste manual, encontras textos fundamentais da literatura portuguesa. Nem sempre são textos fáceis de ler e de estudar; mas a abordagem que se propõe visa exactamente torná-los mais claros, aos olhos de leitores do século XXI, como tu. A dificuldade só exclui os preguiçosos ou os resignados – e esse não é (não pode ser) o teu caso.
A cada texto corresponderá, em regra, um conjunto de perguntas; as tuas respostas – feitas oralmente ou por escrito – provarão que compreendeste o conteúdo fundamental do que leste.
Por vezes, encontrarás palavras e expressões menos acessíveis (muitas delas assinaladas a negrito). São, à primeira vista, obstáculos à tua compreensão; em boa verdade, representam uma oportunidade para, com o auxílio de professores e de dicionários, enriqueceres o teu vocabulário.
Conhecer mais palavras é um modo de, a prazo, saber mais sobre tudo.
Entre textos e perguntas, o manual oferece-te “Apontamentos” – pequenas notas explicativas acerca dos assuntos e temas de interesse. Sublinha, nesses trechos, as partes que te parecerem mais importantes e transcreve-as para o teu caderno diário. Esse simples exercício é já, acredita, um modo de estudar.
A gramática aparecerá, de forma sistemática. Não a temas. Entende-a como um conjunto de regras, que ajuda a bem falar e a bem escrever. Os exemplos fornecidos tornarão mais fácil esta dimensão do estudo e a Ficha informativa no final de cada módulo esclarecerá, certamente, as tuas dúvidas.
O que vais aprender depende muito mais de ti do que do manual. O manual (este manual) é para ter à mão. Mas precisa de ti e do teu professor. Precisa de mãos.
Não te esqueças de, no final de cada módulo, revisitar a lista de objectivos que o manual seleccionou. Deverás assinalar com um X aqueles que, em tua opinião, efectivamente atingiste.
Dito isto, é preciso que conheças alguns perigos associados à utilização deste livro.
Perigos associados, em especial, ao exercício de ler.
É verdade, amigo: o uso frequente da leitura pode ter consequências graves. Estudos recentes referem a possibilidade de os leitores (sobretudo os que se atrevem à leitura de textos literários) desenvolverem bastante a sua inteligência e a sua sensibilidade.
É igualmente provável que a literatura contribua, se lida regularmente, para a melhoria da expressão oral e escrita de quem lê.
Cientistas garantem que o uso e o conhecimento correctos da Língua Portuguesa tornam os cidadãos mais capazes e mais livres.
Agora, é contigo. Se quiseres, lê. Mas não digas que não te avisaram.



Era isso que eu pensava-escrevia em 2009.
É isso que penso-escrevo hoje.

Coimbra, já 08 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Café Lusa Nova

Na idade em que comecei a beber café (“beber a bica”, como se diz em Coimbra), aí pelos catorze anos, o principal Café da minha rua era o “Lusa Nova”. Havia, no outro lado da rua, outro Café (o “Lancer”), mas esse parecia-me reservado aos senhores importantes, que usavam casaco, água-de-colónia francesa e tinham esposas loiras e carros novos. No Lusa Nova, pedia-se o jornal ou o café aos gritos: Ó João! Ó Zé! A minha bica? E um dos irmãos respondia, tranquilamente: Está-se a vestir… No Lusa Nova, o barulho era sempre o de uma festa que se prolongasse pelo ano todo. No Lancer, ouvia-se perfeitamente a novela brasileira de horário nobre. À 3.ª feira, o Lusa Nova fechava. Os clientes habituais atravessavam a rua e iam ao Lancer. Eram serões taciturnos, esses. Falava-se mais baixo, raramente se ouvia um palavrão, o dono era um senhor cujo nome me escapou entretanto. Desde que o destino me separou de Coimbra, não voltei ao Lusa Nova. Não tive motivos para tal, senão este triste hábito que há em mim de me antecipar ao fim, como se o fim acontecesse por minha livre e espontânea vontade. Deixei de aparecer, desapareci. Há tempos, passando anonimamente de carro, percebi que o Lusa Nova estava fechado para obras. Entretanto, descobri que o meu Café da juventude (onde vi o meu pai ganhar infinitas cervejas jogando “à moeda”, um sportinguista com um poster do Sporting ao pescoço numa noite de Junho, o Álvaro a chamar nomes ao árbitro do França-Portugal, o Lúcio e o Manaca contando anedotas de franceses, ingleses, espanhóis e portugueses) fora vendido e se tornara uma pastelaria com um nome diferente. Soube que o Senhor João e o senhor José haviam mantido uma parcela daquele território – a papelaria, com o totoloto e a máquina de fotocópias. Ainda bem. Para mim, é até como se o Cinema Paraíso do Tornatore não morresse completamente. (Em Coimbra, “Cinema Paraíso” pode significar “Sousa Bastos”.) O senhor João era talvez o único portista a sério que, nos anos 70, assumia publicamente essa excentricidade. Durante uns bons dez anos, olhávamos para aquele homem como uma aberração simpática que interrompia, com o viço da novidade que era, a habitual disputa entre Benfica e Sporting. Com o tempo, vieram as vitórias do F. C. Porto e as nossas conversas com o proprietário do Café devieram mais frequentes e menos amigáveis. Engraçado, na minha vida, foi ter encontrado em Ribeira de Pena um Café que parece ser a versão transmontana do Lusa Nova. O “senhor João”, aí, é benfiquista. As conversas que mantenho agora, pensando bem, são as mesmas que tive na Rua Dr. Manuel Almeida e Sousa, no Café da minha rua. De certo modo, a humanidade repete-se-me. A minha rua, em 1977, era o centro do universo. O Café Lusa Nova era o coração social da minha rua. Visto o fenómeno de Ribeira de Pena, 32 anos depois, o centro do universo mudou-se. O coração do mundo é onde estamos, portanto. (Mas, atenção, nem sempre estamos onde nos vêem.) 

Coimbra, já 07 de Abril de 2010. 
Joaquim Jorge Carvalho

terça-feira, 6 de abril de 2010

Saudades-Luz


Na Praia de Mira, hoje, havia
Mais areia do que barcos
Mais mar do que areia
E mais luz do que mar.

No meu coração
(que é uma espécie de praia
vista por dentro)
havia só saudades.
Mais saudades do que luz.


Coimbra, já 06 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

Crato & a Escola Pública


Mário Crespo conduz, desde há algum tempo, na Sic Notícias, um programa de debate político.
Um dos seus comentadores residentes é o professor Nuno Crato, que ganhou notoriedade nos média portugueses com desassombradas opiniões sobre a Educação.
Já me aconteceu concordar com este senhor: estou com ele quando recusa o discurso dos alunos coitadinhos, incapazes de triunfar no mundo dos estudos por indelével desvantagem social (sou filho de operários e sei bem que há uma parte importante do nosso destino que depende da vontade, da persistência, do inalienável mérito); estou com ele quando recusa a fatalidade de a Escola ser um território obrigatoriamente em conformidade com o mundo "lá fora" (por exemplo: se lá fora se vê mais televisão do que se lê literatura, assume-se como vantajosa a inclusão, nos manuais, de textos informativos, de crítica televisiva, de nomes "populares" do star system...).
Mesmo o seu asco público às ciências da educação tem alguma razão de ser: também eu me revoltei, uma vez por outra, contra propostas e medidas nascidas mais de teorias abstrusas do que do conhecimento efectivo do terreno educativo. O problema é que, aqui, a radical rejeição dos contributos das ciências da educação é tão cega como a cega aceitação da sua bondade (e Nuno Crato está indisponível para o reconhecer).
Ontem, vi Crato, na Sic Notícias, pela enésima vez perorando sobre a Escola pública. Entre outros dislates, considerava que as boas classificações dos alunos inscritos em colégios privados resultavam de estes estabelecimentos de ensino terem "os melhores professores".
Esta falácia continua a fazer as delícias dos distraídos ou dos que, por razões de ideologia ou de mercearia particular, defendem o investimento no ensino privado.
Eu não me esqueço do facto de, no ano lectivo de 2001/2002, a Escola E. B. 2, 3 de Ribeira de Pena (Vila Real, Trás-os-Montes) haver conquistado um lugar no "top ten" nacional em Filosofia. Dizia-o o tão requisitado, por "opinion makers" pátrios, ranking de escolas: com base nos resultados obtidos no 12.º ano, aquela Escola (pública) fora uma das melhores a ensinar Filosofia. Aleluia? Não bem.
Acontece que, nesse ano lectivo, não houvera professor de Filosofia; a Escola oferecera, em vez dessa disciplina, uma outra - Sociologia. Os alunos (cerca de uma dezena) que participaram no exame fizeram-no a título de auto-propostos. Eram, na sua maioria, bons alunos, de estrato económico razoável, com bom ambiente familiar. O que o exame comprovou foi essa realidade sobre os discentes, que infelizmente não eram - do ponto de vista do perfil social e académico - a maioria.
Ora, os colégios privados escolhem os seus alunos: o crivo começa no poder económico (e, concomitantemente, social e cultural) dos respectivos agregados, e pode ir até à selecção dos melhores dos melhores, com base em referências disciplinares e académicas. Depois, por muito má (ou até inexistente) que seja a docência, os resultados académicos aparecem.
Já à Escola pública comete-se aceitar obrigatoriamente todos os alunos. Incluir em lugar de excluir.
É difícil perceber isto?
Sou o primeiro a defender uma necessidade de melhorar a Escola pública (no grau de exigência, na defesa da disciplina, na resposta adequada aos vários públicos que inevitavelmente existem em cada estabelecimento de ensino).
Mas, aos Nunos Cratos do país, eu deixo este recado fundamental: não é pela demagogia ou pela análise (voluntária ou involuntariamente) falha de rigor que se começa a mudança.


Coimbra, já 06 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em video.sapo.pt]

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Rua (fugindo)


Cortaram mais uma árvore
Na rua onde fui menino

Cada vez há menos árvores
E a rua vai-me fugindo.


Coimbra, já 05 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este poema faz parte do meu livro “Desapontamentos dos Dias” (Ed. A Mar Arte, Coimbra, 1995). Foto VLOSC.]

domingo, 4 de abril de 2010

Esperança


Na minha sala, em Coimbra, há uma reprodução de um muito lindo quadro de Vieira da Silva: “A Poesia Está na Rua”.
É um quadro sobre Abril de 1974 e, mais do que isso, sobre a própria ideia de liberdade em festa.
Às vezes, parece-me que, em vez de estar eu a olhar para ele, está ele olhando para mim. E a inversão da normalidade olhadora tem consequências: não sou eu a perguntar por Abril, pela dívida que temos para com os que sonharam, no quartel do Carmo, um país melhor do que este; é Abril a perguntar por mim, pelo que é feito da minha imortalidade cheia de esperança.
Digo-lhe: Ó Viera da Silva, com a idade, chega a doença e a morte de quem amamos, chega a desilusão, chegam os problemas na próstata, chegam as saudades e o chega o cinismo…
E o quadro responde-me: Mas isso que nos chega não chega para matar a esperança, homem! Não tens uma filha? Não tens alunos? Que direito tens tu de desistir da esperança?
Aceno, por dentro dos olhos, afirmativamente. E vou ver se consigo, por um mês que seja, ter sobre o país uma ideia bondosa.
Desculpai-me, se puderdes. A ingenuidade, por enquanto, está na minha rua.


Coimbra, já 04 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[O quadro-supra (“XXV de Abril de 1974 (A Poesia está na rua)”) é de Vieira da Silva.]

sábado, 3 de abril de 2010

Nicolau & Mar


Em entrevista ao i, conduzida por André Rito, Nicolau Breyner fala do respeito que um artista deve ter pelo público. E, depois, do perigo mortal que comporta a ausência de respeito.
“O público”, diz ele, “é como o mar: se não houver respeito, engole-nos.”
A imagem é boa e compreende outros contextos, outras situações.
Em boa verdade, a vida é ela própria como o mar: se não houver respeito (e cuidado), em vez de navegar, naufragamos.
E, já agora, uma boa entrevista é como um porto de abrigo: descansamos e aprendemos.


Coimbra, já 03 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto-supra é de Filipe Casaca e foi colhida – com a devida vénia – no jornal i, edição de 02-04-2010.]

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Encontro


Uma vez por ano no regaço de Agosto
Abraçamo-nos e falamos da idade, da Venezuela,
De doenças e (menos amigavelmente) de futebol.
Chamamos àquela mesa do Café do Alberto
A nossa mesa – e o dono ri-se.
Um dia, o teu cancro ou o meu há-de separar-nos
E ainda assim a mesa, talvez nossa, falará de encontros.


Coimbra, já 03 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Trata-se do poema “Encontro”, do meu livro “Inquietação de Barcos” (Ribeira de Pena, Ed. Fórum Metanóia, 2006). Foto JJC.]

Marca



Na Banda d’Além, a tinta
Há uma marca que celebra
O dia em que as águas subiram
Até à altura perigosa de um corpo.

Duvida-se de relatos desse dilúvio antigo
E sorri-se a prováveis excessos de contadores locais.
Mas depois alguém conduz o céptico à Banda d’Além
E dá-lhe a ver a marca testemunhal do fenómeno.

É esse o vosso problema com o que sou:
Precisais da diluviana inocência de acreditar
Que eu já fui puro
Como um peixe atlântico.

Aos sorrisos incrédulos e às espadas acusadoras das línguas
Eu aponto para dentro de mim próprio
Para a marca
Da Banda d’Além de mim
(que não se vê).


Coimbra, 02 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Trata-se do poema “Marca”, do meu livro “Inquietação de Barcos” (Ribeira de Pena, Ed. Fórum Metanóia, 2006). A Banda d’Além é um zona próxima da praia de Machico, na Madeira; a marca referida existe mesmo, gravada na parede da capela dos Milagres, assinalando a altura a que subiram as águas, no início do século XX. A 1.ª foto é do autor, com talvez 3 anos, ao lado do irmão mais velho, o Zé-Tó, com talvez 5 anos. A 2.ª é a mesma fotografia, entretanto acrescentada de 40 anos.]

Estação do Mesmo


Manuel António Pina, o mais saboroso e lúcido cronista do nosso jornalismo (além de altíssimo escritor), lembra no JN, no seu artigo de 1 de Abril, o facto de o famoso bloco central governar o nosso país há décadas e de, «mais “campanha negra” menos “campanha negra”, mais ou menos gritaria de “violação do segredo de justiça!”, mais robalo menos robalo», ser cada vez mais «problemático distinguir uns dos outros».
Eu tenho andado sombrio como um cínico. Mas minha passividade é só aparente. Por dentro, hesito ainda entre uma indiferença superadora e o ressentimento revolucionário. Tenho lido revelações sobre os vencimentos dos senhores administradores, e das milionárias transferências de clientelas pê-esses e pê-esse-dês do governo para as grandes empresas públicas e para os grandes grupos económicos. É a mesma gente que, com cara de pau, debita nas televisões e nos semanários sobre a necessidade de o Estado poupar, de enfermeiros e professores serem uns privilegiados, de se gastar demasiado com apoios sociais, de as rendas das casas serem demasiado baixas. A seguir, presumivelmente, vão à missinha e rezam pelos mais desfavorecidos.
Ao meu sogro atribuíram uma reforma de quatrocentos euros, no final de cerca de 45 anos de trabalho e de descontos, em vez dos quinhentos que a lei determinava. Negaram-lhe, depois, o direito à reparação da injustiça porque – explicaram administrativos, chefes de divisão, secretários de Estado, o próprio ministro – aquele infeliz contribuinte havia deixado prescrever o prazo para solicitar a correcção. Caridosamente, convidavam-no a utilizar os serviços de um advogado (talvez prescindindo, entretanto, de comprar os seus remédios e de alimentar a família).
A gente desaponta-se, lamenta-se, desacredita, reacredita (cada vez menos), vota de novo (cada vez menos), desaponta-se, lamenta-se de novo, desacredita (cada vez mais).
Tudo parece repetir-se a cada governo: rasgam-se as promessas programáticas, critica-se quem esteve antes no poder, acena-se com crises terríveis que obrigam a sacrifícios, assegura-se o conforto aos amigos, aos correlegionários, aos compadres, à prole própria e à prole próxima.
Lembro-me de, viajando no metro em Lisboa, ouvir a voz gravada de uma donzela a informar sobre a “próxima estação”. No caso do nosso país, é tão grande o desencanto que a mim me parece sempre estar viajando da porcaria para a porcaria. A próxima estação já cheira mal antes de lá chegarmos.


Coimbra, já 02 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto-supra (rosto de Manuel António Pina) foi colhida – com a devida vénia - no “JN”, edição de 01-04-2010.]