Bússola do Muito Mar

Endereço para achamento

jjorgecarvalho@hotmail.com

Número de Ondas

quinta-feira, 15 de abril de 2010

APESAR DE TUDO


A convite da minha colega e amiga Clara Póvoa, tenho colaborado com o boletim da Biblioteca da Escola Secundária de Cantanhede. Recebi entretanto, via email, o último número e li-o de enfiada. Partilho, já agora, neste “Muito Mar”, a crónica que, em Junho de 2009, assinei. Chama-se, como acima se diz,

APESAR DE TUDO



1. Amanhece, em finais de Junho, no esconso íntimo de alunos e de professores, um coração perguntador. Ouçam-no.
2. Vale a pena o cumprimento repetido repetido repetido repetido da faina diária? Tem sentido o esforço e a esperança que fabricamos todos os dias? É legítimo o sonho? É razoável acreditar?
3. Às quatro interrogações responderei, prometo, no penúltimo parágrafo. Por agora, estou um pouco triste: duas alunas minhas não foram admitidas a exame. Tratou-se de uma infelicidade anunciada, que percorreu conversas, cartas, reuniões, planos de apoio e de recuperação, psicologia e cumplicidade. Perderam. Perdi. Perdemos.
4. Ao longo do ano, viajei com os meus alunos por muitos verbos (quase todos transitivos). Treinei-os. Cumprimentei-os. Critiquei-os. Ameacei-os. Castiguei-os. Recompensei-os. Dei-lhes ordens, orientações, conselhos. Ouvi-os. Concordei com eles, discordei deles. Experimentei modos, sugeri caminhos, sofri com eles, ri com eles, tive medo por mim e por eles. Errei e acertei com eles. Estudei com eles. Iludi-me, desapontei-me, reiludi-me.
5. No final do exame de Língua Portuguesa, eu tinha chocolates para todos. Em boa verdade, a ideia (singela, ingénua) era oferecer-lhes um suplemento energético antes da prova; mas eles e eu estávamos tão nervosos que as tabletes ficaram, por duas horas, esquecidas num silencioso saco de hipermercado. A cada chocolate havia risos – e alguns repetiram a dose, sem cerimónia. “Nós merecemos”, garantiram-me, debitando desabafos sobre as orações coordenadas e as palavras derivadas por prefixação. Uma espécie de festa, feita de genérico alívio e de juventude, percorria o hall de entrada do edifício escolar. Elas e eles achavam que a prova correra muito bem. Eu escondi, então, o meu temor persistente e trágico, que desconfia de tanta facilidade percebida. Contudo, fui também tocado pelo brilho e pela música da alegria que a turma do 9.º A, a minha, ali era.
6. Eles vão, quase todos, partir para nunca mais. Vão para o secundário, para cursos técnico-profissionais, para o mundo do trabalho ou da falta de trabalho. Vão para longe daqui. E vão definitivamente para um “lugar estrangeiro”, como diz Manuel António Pina, chamado (outro) tempo.
7. Tenho saudades, já, dos seus rostos. Esqueci-me, como por magia, dos episódios de preguiça, de injustificadas ausências, de trabalhos de casa por fazer, de indiferença ou irresponsabilidade face ao estudo. São rapazes e raparigas cheios de futuro. Eu andei por aqui a prepará-los para a felicidade – mas não posso garantir nada.
8. Digo-lhes adeus daqui, deste lugar onde estou (onde fico). Deste lugar onde sou. Vistas as coisas à luz do meu coração, quem manda no meu ofício são estes jovens tão celeremente outra coisa que ainda não sabemos. A legislação verdadeira que intimamente sigo tem a ver com as suas necessidades, os seus anseios, os seus direitos. Um dia hei-de explicar isto a certo secretário de estado quando ele já não for secretário de estado.
9. A minha biografia, tão castigada nos últimos anos, recomeça hoje. Tenho já a frase para primeiro parágrafo do que haverá para contar: “Aqui estou, apesar de tudo.”
10. E isto significa que as respostas às quatro perguntas feitas no dealbar deste textinho são: Sim. Sim. Sim. Sim.
11. Talvez o futuro confirme o meu optimismo ingénuo.



Ribeira de Pena, já data querida de 15 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

[A imagem-supra é a da capa do boletim da Biblioteca da Escola Secundária de Cantanhede (ver em http://be.escantanhede.pt). O texto foi escrito e remetido a 18-06-2009.]

4 comentários:

Nelson disse...

Ora viva!
Como eu comprendo aquilo que, deliciosamente, relatas nesta crónica.
E no final, apesar de tudo, cá ficaram muitos deles... guardados num cantinho da memória.

Queria ainda deixar-te um abraço e felicitar-te nesta (tão tua querida) data de 15 de Abril. Parabéns.

Abraço.
Nelson

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Caro Amigo,
duplo obrigado pelas tuas palavras.
A tua cumplicidade é um tesouro, como decerto bem sabes.
Abraço!
JJC

Clara disse...

Parabéns também... embora atrasados!

Estou a travar conhecimento hoje, pela primeira vez, nesta amena tarde de Domingo de Maio, com o "Quim Jorge em versão blogger" e devo dizer que não consigo parar de ler!
A variedade dos temas que abordas, o imprevisto da tua escrita são absolutamente viciantes!

É uma honra contar contigo como colaborador do nosso Boletim da Biblioteca!

Bj.

Clara

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Que honra, Clara, teres vindo ao Mar e teres gostado.
Vem mais vezes, s'il te plaît!
Bj.
JJC