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Número de Ondas

sábado, 17 de abril de 2010

A Bela e o Nojo


A história não se passou comigo. Mas é minha porque me comoveu suficientemente para falar dela. Passa-se numa reunião com encarregados de educação. A propósito dos problemas de um aluno, a mãe desata subitamente a chorar e fala no regime de terror que há, todos os entardeceres, na sua casa.
Violência doméstica, está-se mesmo a ver. É um assunto sempre penoso, que a todo o instante pode ferir susceptibilidades, suscitar processos judiciais, gerar vinganças e remorsos. Um mundo, enfim, de silêncios e de indignidades secretas. O mais fácil é ignorar, encolher os ombros, suspirar q.b. e andar para a frente. Entre marido e mulher, etc...
Mas há, nos homens a sério, um problema. O problema de um homem chama-se espelho. É quando nos não revemos, à hora de nos auto-mirarmos, naquela figura covarde e resignada, que desiste de ser gente e opta pela medíocre tranquilidade de não ter chatices. Acontece na profissão, na família, na vida.
O caso da violência doméstica assume contornos mais trágicos quando há, no meio desse novelo neo-realista, crianças vítimas. Vou a uma imagem dada à luz por Soeiro Pereira Gomes para as descrever: homens de amanhã que não chegam a ser meninos hoje.
Trata-se, a bem dizer, de vários crimes ao mesmo tempo: usurpação da infância, da adolescência, da juventude. Usurpação da felicidade presente e futura.
A encarregada de educação diz ao director de turma do seu filho que já levava pancada desde moça, desde o namoro. Tivera um dia a esperança de que, após o casamento, o agressor prescindisse desses hábitos bestiais. Tivera depois a esperança de que o nascimento dos filhos conseguisse o que o casamento não conseguira. Até que ao ingénuo esperar sucedeu o desespero e a descrença. Tudo isto rodeado de sangue e de lágrimas que custam muito mais a sentir do que a descrever.
Tomou, em certa noite de gritos e de pancadaria, a decisão enfim de sair de casa, levando os filhos. Mas não já. Tem ainda de esperar. E explicou à directora de turma o porquê do adiamento desta liberdade.
Em pequenina, quando fizera a primeira comunhão, já não tinha pai; e custara-lhe muito essa ausência, vendo os amigos serem beijados pelos respectivos patriarcas. Queria, portanto, esperar pela primeira comunhão do filho, antes de correr com o marido agressor de tantos anos. Para que, já se vê, não fosse o descendente privado (como ela) da presença paterna, nessa altura solene.
O capricho desta mãe tem razões de amor que não há legislação ou filosofia capazes de combater. Mas suscita também esta ideia perturbadora, embora bela, de haver quem prescinda de ser feliz para que os outros sejam felizes. Não seria isto particularmente grave, se não houvesse por aqui também a questão da dignidade humana...
Tem de haver um limite para nos sacrificarmos, nos humilharmos, nos adiarmos. Esse limite chama-se, já disse, dignidade.
Abaixo desse equador das nossas vidas, já não somos pessoas.


Coimbra, já 17 de Abril de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A 1.ª versão deste texto foi publicada em Novembro de 2005, no “Ecos de Cabeceiras”. A imagem-supra é do filme “Dou-te os Meus Olhos”, de Icíar Bollaín (Espanha, 2003).]

1 comentário:

Paulo Pinto disse...

Acho que sim, que ainda somos pessoas. A dignidade reside lá muito no fundo do ser. Há pessoas que não podem ter o luxo de uma vida digna (não só materialmente, mas também do modo que essa mulher não a tinha), por fraqueza própria ou por constrangimentos alheios, ou por ambas as razões. Mas a dignidade não se extinguiu: o Equador real fica muito para além do Equador aparente.