Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (109)


Felicidade básica

A conversa partiu de uma frase de Manuel António Pina sobre a felicidade. O saudoso (sempre vivo) autor de Nenhuma Palavra & Nenhuma Lembrança escreveu no JN, em 2006, uma bela crónica sobre o tema. A ideia essencial, que ali esculpiu em poucos caracteres, era bem singela: mais do que pensar muito sobre as razões e os caminhos para sermos felizes, devemos viver a vida (i.e., aproveitá-la), com a gratidão ou a paciência necessárias. Mas o Saul, aluno do 8.º ano de escolaridade do ensino básico, divergiu livremente do cronista. Aventou, alternativo: “Eu acho que não há mal nenhum em pensarmos no assunto. Para mim, ser feliz é sentir que a vida vale a pena.
A discussão estalou por uma eternidade de, talvez, trinta e cinco minutos. A Rosa, de mãos dadas com Manuel António Pina, defendeu que pensar na felicidade não fazia sentido, uma vez que “a vida vale sempre a pena”. Logo contrapôs o Saul que aos doentes, aos pobres e aos refugiados talvez não. O Vítor, muito sério, ajeitando os seus óculos de (dir-se-ia) homem mais velho, declarou que, mesmo nessa situação, “todos querem viver”. “Daquela maneira?”, perguntou a Sónia, corroborando romanticamente a perspectiva do Saul. “Desde que tenham esperança…”, sugeriu a Vânia.
Uns minutos antes do final da aula, lá consegui um concerto razoável sobre o conceito debatido: “Ser feliz é sentir que a vida vale a pena, mesmo quando não corre bem, desde que haja esperança.” Reforça-se o sentido, deste modo, de um famoso aforismo: “A esperança é a última [coisa] a morrer” (ou seja, a morte só nos vence verdadeiramente quando desistimos de acreditar).
No fim-de-semana seguinte, faleceu o Pai de uma aluna do sétimo ano - e eu revisitei, com o coração, aquela crónica de Pina. Reparei entretanto que faltou à escola, hoje, a menina vítima deste roubo maior. Conversei sobre os alunos da sua turma sobre o sucedido. Confessei-lhes que uma dor assim nunca desaparece, apenas se torna suportável com o tempo e as novidades que hão-de vir. Aconselhei-os a falar do assunto com a colega apenas quando esta o quiser. Sugeri-lhes que a fizessem sentir-se acompanhada. Pedi-lhes que estivessem vigilantes, atentos, disponíveis. Eles escutaram-me com desusado silêncio e rara quietude.
A minha crónica é dedicada ao imenso Manuel António Pina, senhor tão precocemente desaparecido, com quem converso há muitos anos sem jamais ter tido a graça de lhe apertar a mão. É também dedicada a uma menina com saudades do seu Pai. E é, finalmente, uma homenagem ao Sol que teimosamente habita a condição humana. Esclareço: a condição humana representada pelos meus buliçosos alunos do ensino básico, que são literal e simbolicamente o contrário da morte, e que vejo sempre cheios de uma irreprimível vontade de afirmar o que pensam, sentem, sonham. Em português e em liberdade.

Vila Real, 22 de Outubro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 26 de Outubro de 2017. A foto (com Manuel António Pina) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.ibliotecariodebabel.com.]

domingo, 22 de outubro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (108)


Meia dúzia de óbvios

1. Ao contrário do que alguns pedantes pensam e grandiloquamente defendem, dizer o óbvio vale, quase sempre, a pena. A Verdade merece, como tantas grandes canções de sucesso, um refrão que regularmente assinale, com ritmo e melodia eficazes, o essencial de nossas vidas.
2. Por exemplo: nascemos e morremos; entre o princípio e o fim, vivemos ou duramos. É assim, é óbvio que é assim. Mas aquela (óbvia) diferença entre viver e durar tem que se lhe diga – e é crucial lembrarmo-nos disso, em cada esquina funcionária, em cada lapso caminhante, em cada fôlego horário. Aqui entre nós: ainda agora telefonei à minha Mãe, só para ter, por minutos, a graça da sua voz. Dispensável, direis. Talvez; mas imaginai que sabíeis do iminente desaparecimento do Sol. Ficaríeis o dia todo fechados em casa, sem dele recolher quanto pudésseis em luz e temperatura?
3. Tenho um amigo que, de quando em vez, me telefona das ruas onde eu gostaria de estar. Não sinto inveja, juro; ao contrário, experimento a gratidão por me ser concedido esse bónus de mundo ao meu quotidiano migrante. E, enfim, por ter camaradas capazes de tamanha generosidade. Que faço, pois, quando toca o telefone? Aproveito, como é óbvio.
4. Um amigo é um tesouro. De tão repetida, a evidência pode devir clichê, sei-o bem, mas dizer o óbvio é, também aqui, justificável e justo. Eu falo muitas vezes do meu amor por família e amigos. Habituei-me a ouvir que aquela não se escolhe e que estes, sim. Creio que tendemos, em geral, a considerar família as avulsas pessoas por quem temos afeição, e a preferir, na tribo familiar, os que, para além da fatalidade sanguínea, são merecedores da nossa amizade.
5. Há uma oncologia comum que mata frequentemente a amizade: é a zanga, depois ressentimento, depois ódio irracional. Não poucas vezes, tudo começa numa divergência fútil, caprichosa, despicienda. Com o tempo, o veneno tumoral pode matar o vínculo afectivo. Eu conheço muitos exemplos de gente que se especializou no ódio, porém esquecida, já, do motivo que a trouxe a esse afastamento radical. Não valeria a pena trocar tanta raiva por um abraço e, em concomitância, pela possibilidade de dar nova vida à amizade interrompida? Parece-me tão óbvio que sim.
6. Estava já a crónica feita, e a boca voraz, traiçoeira e cínica do Fogo veio a Portugal por mais alimento, somando às mortes e à destruição anteriores a destruição e as mortes de agora. Logo regressaram também os tudólogos da pátria, apontando culpados, expelindo (entre vaidade & baba) as medidas certas a tomar, regurgitando (entre baba & vaidade) as medidas erradas que se tomaram. Ainda bem que, na madrugada do dia 17, ouvi finalmente a chuva e pude, enfim, juntar o meu suspiro grato ao suspiro do próprio chão saudoso de frescura. É tempo de chorar os mortos e de ajudar os vivos que perderam tanto. Mas também de nos livrarmos dos fogos da má-língua e da politiquice mais rasteira – e de, serenamente-sensatamente-responsavelmente, preparar o País para os problemas a haver. Também isto, amáveis leitores, me parece óbvio.

Vila Real, 15 de Outubro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, na maravilhosa BD Calvin & Hobbes, de Bill Watterson.]

ZONA DE PERECÍVEIS (107)



Espuma autárquica

Os resultados das últimas autárquicas não devem, naturalmente, ser lidos como se se tratasse de uma eleição idêntica à das legislativas. Mas tão-pouco me parece avisado ignorar o cariz fatalmente nacional da consulta. Enquanto eleitor, já me habituei a votar em diferentes candidatos/partidos numa mesma eleição autárquica – e uma ou outra vez lá engoli o meu sapo, ajudando a eleger presidentes de câmara que não convidaria sequer para um café; nesses casos, reservo a minha sinceridade maior para a escolha do presidente da Junta ou da Assembleia Municipal. Trata-se de pensar no País em geral, no primeiro caso, e de confiar pessoalmente nos nomes a sufrágio, no segundo. 
Já toda a gente opinou sobre as vitórias e as derrotas mais conspícuas do dia 01 de Outubro (aqui se destacando o evidente sucesso do PS, claro). Creio, contudo, que poucas vozes se têm ocupado de um certo fenómeno importante, aparentemente larvar, no panorama político de Portugal – o do esvaziamento do PSD em benefício já não apenas do PS, mas do CDS-PP. É verdade que no Porto o partido de Assunção Cristas se abrigou sob a asa magna do independente Rui Moreira; mas bastaria reparar nos resultados em Lisboa para se perceber o extraordinário reforço dos chamados “centristas”. A quem, no PSD, a acusava de traição, Cristas já veio dizer que Passos Coelho menorizou as autárquicas, nunca assumindo a urgência, nesse plano, de um trabalho aturado, consistente e próximo nas ruas e bairros da capital.
Julgo que as ideias, a atitude e o discurso de Passos, enquanto primeiro-ministro, muito contribuíram para esta emancipação do CDS-PP, que passou a ser visto, não só como muleta do partido principal da Direita, mas como alternativa moderada e razoavelmente humanista a um certo liberalismo de pacotilha (espécie de Margaret Thatcher requentada). Sintomaticamente, em Loures, o CDS-PP envergonhou-se do discurso troglodita de André Ventura. Esse pudor, do ponto de vista do eleitor nacional, é uma relevantíssima afirmação de higiene e de decência, que pode, a prazo, ser um trunfo não despiciendo. A confirmar nas legislativas.
Os resultados do PCP mereceriam uma crónica inteira. Ainda assim, à laia de telegrama, aduzo algumas notas. É mais ou menos unânime a ideia de que os autarcas da CDU são, em geral, competentes, dedicados e honestos. A perda (dramática) de poder autárquico representa, neste caso, o preço a pagar pela aproximação dos comunistas, na Assembleia da República, ao PS (e, concomitantemente, uma tácita legitimação da transferência de votos para o partido de António Costa)? Pode ser. Mas o que sobretudo ressalta da situação, não apenas conjuntural, é esta aparente incapacidade de o PCP se renovar, actualizando alguns dos seus conceitos fundadores, sob pena de morte por obsolescência.
A Direita diz que o PCP não pode mudar porque, se o fizer, desaparece. Mas pode, creio eu, suceder o contrário: desaparecer (ou tornar-se residual) por não mudar.

Coimbra, 08 de Outubro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.educacao.cc.]

sábado, 7 de outubro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (106)


Morrer-nos alguém

Vou regularmente a um cemitério coimbrinha, acompanhando a minha irmã num ritual de saudade: ela limpa a campa do marido, falecido há três anos, e renova-lhe o arranjo floral que decora aquela ausência em pedra. O ausente, para além de cunhado, era também o meu melhor amigo – e a toda a hora me faz falta o mundo (muito mais rico e completo) que, antes da sua partida, éramos e fazíamos. Todas as mortes, creio, nos doem como se se tratasse da nossa própria Morte. E com o desaparecimento de quem nos é próximo, é isso mesmo que sucede, mas em pior.
Na semana que passou, a terra transmontana onde resido (há mais de vinte anos) perdeu um homem importante. Era meu rival no futebol e, talvez, na mundividência política, mas era sobretudo um cúmplice da minha existência essencial, amante dos simples prazeres da vida, do humor, da conversa, das histórias, da família, dos pequenos-grandes sonhos que tornam menos árido o quotidiano dos homens. Era mais novo que eu três ou quatro anos, cheio de força tão pouco antes de adoecer: é, aliás, dessa saúde que me lembro, agora, como um parênteses alegre e lindo encravado na Noite definitiva.
Ouvi, pela enésima vez, durante o caminho entre a igreja e o cemitério, alguém dizer “É a vida” e “A morte toca a todos”. Mas até essas palavras, apesar de vestidas de resignação, sabem ao vinagre da impotência, senão ao veneno da revolta.
No dia 27 de Setembro, televi, na RTP2, o documentário “Gabo, a magia da realidade”, datado de 2015, do realizador Justin Webster. Nele, Gabriel García Márquez fala, em discurso directo, da condição fatalmente mortal da condição humana. Cito: “Eu a única opção que aceito é a de não morrer. O importante é estar vivo. E acho que a morte é uma armadilha, uma traição que incondicionalmente nos captura. Para mim é muito sério e grave o facto de tudo se acabar, e praticamente sem aviso… Acho que é injusto.” A jornalista pergunta-lhe: “Que podemos fazer para o evitar?” E Gabo responde: “Escrever muito.
Um dos irmãos do senhor Avelino disse-me, durante o abraço de pêsames, na noite do velório: “É preciso recordarmos os bons momentos…”
Dei por mim a pensar: certo e triste; triste e certo. E escrevo-o.

Coimbra, 30 de Setembro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 06 de Outubro de 2017. A foto, com o saudoso Avelino Borges, data de 2006, quando ainda éramos todos ainda razoavelmente imortais.]