Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quinta-feira, 26 de abril de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (134)


O neto do Gaitinhas escreveu ao cronista

Alhandra 24 de Abril de 2018. 

Caro Amigo, 

Andava há anos para lhe escrever. Soube, por conhecidos e familiares, da sua estima e da sua admiração por Soeiro Pereira Gomes, o autor de Esteiros. Comoveram-me alguns textos, lidos em jornais, blogues e trabalhos académicos, que dedicou à obra desse tão talentoso e tão honesto escritor. Eu sou neto do Gaitinhas, veja bem. Do Gaitinhas, sim, um desses meninos a quem roubaram, sem remédio, essa condição. Ouvi muitas vezes o meu avô, por aqui, nos arredores de Paris, recordar o Guedelhas, o Gineto, o Maquineta e Sagui, seus camaradas de sonhos e de tristezas. 
Escrevo-lhe por ser véspera do glorioso dia 25 de Abril. Em 1974, já o senhor Soeiro Pereira Gomes estava morto há mais de vinte anos e o meu avô tinha meio século de idade. Sofria de uma doença nos pulmões, não sei se lhe disseram – e dessa doença também morreria, aliás, alguns anos antes, a minha bisavó, sua mãe, vítima da pobreza em geral e de tuberculose e solidão em particular. Ainda rapaz, o meu avô emigrou para França, à procura do pai. Nunca o encontrou, apesar de por muito tempo o ter procurado. No dia do seu casamento (com uma concierge madeirense, que trabalhava no prédio onde vivia o patrão de ambos), lá soube que o pai morrera há alguns anos, num estaleiro próximo. 
O meu avô Gaitinhas teve uma filha. (“Ainda bem que não foi um rapaz”, costumava ele dizer, ”para evitar chatices com a tropa.”) A filha do meu avô teve dois filhos – o meu irmão António, que foi para a Bélgica trabalhar na televisão, como cameraman, e eu próprio, que herdei de meu pai (também português) uma empresa pequenina de construção civil. Brevemente, o meu genro (um francês de Saint-Galmier) tomará esse lugar, e eu poderei enfim ir viver para Portugal. A minha mulher é espanhola, nada e criada até aos seus doze anos na Galiza, e não se opõe a esta minha vontade. 
Eu nasci em França, caro amigo, mas escolhi ser português por tanto ouvir o avô falar do País. Ele, a quem o regime fascista roubou a infância, o pai e a mãe, o futuro, amou sempre Portugal, fiel como um cão. Conversava connosco em Português, cantava em Português, celebrava a Liberdade, a Democracia e a Igualdade em Português. 
No dia 26 de Abril de 1974, vi-o chorar, à hora do almoço, junto ao rádio, confirmando a chegada do futuro ao seu (nosso) País. Em sua casa, a “Grândola, Vila Morena”, do Zeca, era tão solene como o hino nacional. E a cançoneta “Somos livres”, da actriz Ermelinda Duarte, valia por todos os programas políticos que diariamente eram divulgados por jornais, rádio e televisão. “Não voltaremos atrás”, cantávamos eu e ele em coro. 
O meu avô teve muita pena de não poder celebrar a liberdade com o amigo Soeiro Pereira Gomes, tão cedo falecido. Mas ainda abraçou algumas das personagens de Esteiros. Lembro-me de o ouvir dizer a um deles: “Mesmo que isto já não seja para nós, há-de ser bom para os vindouros, pá!” 
Eu, à época, era um vindouro. Agora, em viagem para velho, sabe-me bem confirmar o vaticínio do Gaitinhas. E comungar a gratidão que ele publicamente manifestava por quem fez a revolução. 
Bem sei que o nosso País continua inevitavelmente imperfeito, mas já não é normal que as crianças sejam mão-de-obra adulta à força; que a miséria seja uma sorte fatal e hereditária; que o destino de todos seja determinado pela tirania de uns poucos. 
Não é como neto do Gaitinhas que lhe agradeço o interesse por Esteiros, caro Amigo. É como português, amante da Liberdade. A ideia de, pela leitura, manter vivo Soeiro Pereira Gomes é, na essência, algo muito parecido com a celebração viva e grata da revolução de 1974. A escritora Agustina fala (salvo erro, na Sibila) de “memória do amor”. Eu fico-me pela memória do meu avô Gaitinhas, que vem a dar ao mesmo. 

Um abraço! 

VL 

[Nota: Esta carta, embora fictícia, está longe de ser mentira. Quem não acreditar, como diria o cronista há 45 anos, a propósito de tudo, é fascista.] 

Vila Real, 22 de Abril de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 26-04-2018. A imagem, já utilizada neste blogue, é da autoria do meu Amigo Manuel Vilela, que a fabricou, a pedido, para um libreto relativo ao espectáculo teatral A Noite de 24 de Abril. (Nota: esta peça, levada já por diversas vezes à cena, com interpretação de alunos ou docentes, é uma adaptação minha da obra A Noite, do grande José Saramago.]

sexta-feira, 20 de abril de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (133)


Crónica do não feito

Hipermercado de uma grande superfície comercial coimbrinha. Na zona da fruta, enquanto hesito entre tangerinas e clementinas, um homem ricamente vestido (fato cinzento, camisa creme sob colete talvez azul-escuro, gravata de fundo castanho com oblíquas riscas da cor do colete) queixa-se a um funcionário de algum equívoco no preço das bananas. O funcionário, um moço com não mais de 25 anos, de aspecto honesto e bondoso, ouve-o com grande deferência e, logo que o reclamador se cala para tomar fôlego, pede-lhe desculpas em nome do patrão, usando para o efeito, note-se, vocabulário e sintaxe exemplares.
Percebo facilmente que se trata de uma troca de etiquetas, da responsabilidade de algum funcionário do turno anterior, que confundira o preço da banana importada com o da banana da Madeira. Percebo tudo facilmente porque a explicação do jovem funcionário é ali sempre clara e concisa, para além de amável. Mas o senhor elegante faz questão de se queixar mais e mais, como se a lógica e a gentileza do moço lhe acendessem ou avivassem maiores azedumes e fúrias. Em voz sonorosa, como se discursasse perante um grupo de discípulos relapsos, de insubordinados militares ou de réus culpados dos maiores crimes, garante que a ele não o tomam por parvo, que “vocês não sabem com quem estão a lidar”, que a explicação do empregado é “um chorrilho de tangas”. Em certo momento, olha à volta para colher os aplausos que a sua aristocrática bravata talvez colhesse do público admirador ou (julga o pavão) cúmplice. Eu miro-o com a mais eloquente reprovação de que sou capaz, por me parecer tão evidente a sem-razão daquela gritaria e daquela arrogância, mas isso não lhe diminui o arzinho triunfante. Já com as clementinas ensacadas e pesadas, tenho de me afastar do local. São umas nove e meia da noite. O jovem funcionário deve estar em funções há muito tempo, percebe-se o seu ar cansado, o esforço zigomático para o sorriso profissionalmente cordato, a humilde vontade de resolver o (putativo) problema e de voltar à normalidade pacífica do seu ofício.
Disse-vos, senhores, o que aconteceu. Digo-vos agora o que deveria ter acontecido. Eu deveria ter voltado atrás e cumprimentado o rapaz. Dizer-lhe que eram admiráveis a paciência, a simpatia e a competência ali demonstradas, face à fera do fato rico e da voz sonorosa. Sim, eu deveria ter voltado atrás e dito ao senhor Excremento Nobre que aquela brutalidade contra o funcionário era injusta e parva. Que o rapaz ali sujeito à gratuita humilhação era um simples funcionário a cumprir exemplarmente os seus deveres (à razão provável do ordenado mínimo), sem culpa dos grandes males do mundo ou das pessoais frustrações das excelências engravatadas. Deveria ter voltado atrás, senhores, e soltado a minha própria acrimónia, aliás repetível sempre que (com demasiada frequência) topo com as bestas quadradas da vida.
Perdoai o desabafo, se vos for possível, mas sucede-me pensar, muitas vezes, que a estupidez infernizadora do mundo só se resolve com recurso ao insulto. Ou à chapada. Ou, por razões de civilização, de saúde e de oportunidade, à crónica de jornal.

Vila Real, 14 de Abril de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 19-04-2018. A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http:/educaforum.blogspot.pt.]


segunda-feira, 16 de abril de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (132)



O (o)caso de Lula


Terá sido Pierre Vergniaud a dizer, das revoluções, que se assemelhavam a Cronos, também elas devorando os seus filhos. O próprio Vergniaud serviu de ilustração para este mortal apotegma, como se sabe. 
Em Portugal, Otelo será, entre outros exemplos, a mais viva prova do que o francês do século XVIII axiomaticamente postulou. Rosto imperecível do 25 de Abril da nossa liberdade e da nossa democracia, acabou por se meter, no tempo seguinte à madrugada da claridade máxima, em algumas alhadas bem menos luminosas, que envolveram acusações graves e até prisão.
Em muitas latitudes, abundam nomes de anjos populares que, de um momento para o outro, devêm vilões odiados e perseguidos. Quase sempre ocorre, no entretanto, alguma degradação da conduta de cada ainda-agora-tão-amado-herói, e a posteriori a leitura política ou histórica da sua biografia lá tenderá a arrumá-lo numa nevoenta nota de rodapé mais dada ao opróbrio cínico que à elegia épica.
Agora, Lula da Silva. Sob a sua liderança, por anos seguidos, o Brasil foi um maravilhoso exemplo de emancipação democrática e de progresso social e económico. O País promoveu a igualdade dos brasileiros no acesso à educação, à saúde e à justiça, tornando-se, aos olhos de todo o mundo – e com base em insuspeitos estudos e indicadores –, num lugar mais digno, mais justo, mais decente. Que sucedeu depois? O mais fácil é ler o fenómeno à luz da natureza corruptível de todos os seres humanos: talvez o homem do povo se tenha deslumbrado com as mordomias do poder e da riqueza, quiçá acreditando que tantos sacrifícios e méritos pessoais justificariam alguma retribuição venal. Talvez.
Mas essa percepção não elimina a fortíssima suspeita de que todo o processo começara já no oportuno-oportunista descrédito que sofreu o Partido dos Trabalhadores - com culpas próprias, naturalmente -, seguido do impeachment de Dilma Rousseff e culminando na entrega da presidência ao sinistro Michel Temer (sem, note-se, aquela maçada das eleições). Lula seria provavelmente o próximo presidente do Brasil, o que representava, para muitos brasileiros saudosos da ditadura ou assustados com o regresso da esquerda ao governo, um perigo. A sua prisão, nesse contexto, afigura-se muitíssimo conveniente.
Ponto de ordem: Lula da Silva não está, não pode estar acima da lei. Nem os maiores heróis de um País podem, num estado de direito, fugir à justiça. Mas - perdoai a desconfiança de quem, à distância, segue esta telenovela nos média – cheira aqui muito a esturro. E não é irónico que o beneficiário imediato da queda do PT seja um presidente acusado de numerosas ilegalidades, homónimo de um verbo no infinitivo tão curioso como Temer?

Coimbra, 08 de Abril de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi pubçicada no semanário O Ribatejo, edição de 12-04-2018. A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.observador.pt.]



terça-feira, 10 de abril de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (131)





Marx, ópio e futebol

Se Marx visitasse o planeta dos nossos dias, decerto reformularia aquela famosa metáfora que explicava a religião como “o ópio do povo”. À ideia de anestesia servida como combate de fé, acrescentaria (digo eu) uma outra mais moderna e quiçá mais folclórica, mas não menos letal – o futebol. 
Mesmo involuntariamente, testemunho todos os dias a omnipresença da futebolice no quotidiano do mundo, em particular na paróquia da minha circunstância, Portugal. Tenho percebido, com facilidade e melancolia, a semelhança de modos e de argumentação que há entre o clubismo e outras formas mais bárbaras de intolerância, como o racismo, a xenofobia, etc.. 
Nos jornais, na televisão, na rádio, nos cafés, nas escolas, nos hospitais, nas repartições, nas mercearias, nas fábricas do País, a gritaria mais bestial vem substituindo quaisquer hipóteses de convívio ou fraternidade com o outro. Não é sem espanto ou susto que observo, nos olhares, nos gestos, nas palavras dos meus interlocutores pontuais, um absoluto ódio à gente de outros clubes, i.e. à diferença. 
As claques são elas próprias uma espécie de alegoria do futebol dos nossos dias: por um lado, representam uma dimensão estética e emocional que, a inexistir, tornaria o espectáculo muito mais pobre; por outro lado, significam o fanatismo mais primário e perigoso, ali formalmente elevado à categoria de instituição. 
Eu joguei futebol durante muitos anos e, antes & depois desse alegre parênteses biográfico, amei de forma profunda e generosa esta modalidade. Ainda sofro, ó triste, com o meu Sporting, como se em campo estivesse o meu Pai, de quem naturalmente herdei este amor leonino. Sabei que vibro com os golos da minha equipa e, embora com mágoa, também com a qualidade deste ou daquele jogador dos rivais. Mas não tenho paciência já para a vozearia ignorante, balofa e boçal dos que, à roda do futebol, na maioria dos casos sem perceber sequer um átomo desse fenómeno, inundam os média e as nossas ruas de bílis mortal e de escarros palavrosos. 
Atenção: não defendo, com este desabafo higiénico, que a justiça deixe de investigar as alegadas trapaças ultimamente divulgadas. Era o que faltava! Mas gostaria sobretudo de regressar, no aconchego do sofá ou do estádio, àquele estado de pura e feliz comunhão com os que, como o cronista, amam o seu clube e, concomitantemente, o futebol. 
Ópio, senhor Marx? Por um lado, talvez; por outro lado, não. Vista a coisa destas perecíveis linhas, acredite, trata-se sobretudo de uma festa.

Coimbra, 01 de Abril de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.waysup.com.]