Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

terça-feira, 10 de abril de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (131)





Marx, ópio e futebol

Se Marx visitasse o planeta dos nossos dias, decerto reformularia aquela famosa metáfora que explicava a religião como “o ópio do povo”. À ideia de anestesia servida como combate de fé, acrescentaria (digo eu) uma outra mais moderna e quiçá mais folclórica, mas não menos letal – o futebol. 
Mesmo involuntariamente, testemunho todos os dias a omnipresença da futebolice no quotidiano do mundo, em particular na paróquia da minha circunstância, Portugal. Tenho percebido, com facilidade e melancolia, a semelhança de modos e de argumentação que há entre o clubismo e outras formas mais bárbaras de intolerância, como o racismo, a xenofobia, etc.. 
Nos jornais, na televisão, na rádio, nos cafés, nas escolas, nos hospitais, nas repartições, nas mercearias, nas fábricas do País, a gritaria mais bestial vem substituindo quaisquer hipóteses de convívio ou fraternidade com o outro. Não é sem espanto ou susto que observo, nos olhares, nos gestos, nas palavras dos meus interlocutores pontuais, um absoluto ódio à gente de outros clubes, i.e. à diferença. 
As claques são elas próprias uma espécie de alegoria do futebol dos nossos dias: por um lado, representam uma dimensão estética e emocional que, a inexistir, tornaria o espectáculo muito mais pobre; por outro lado, significam o fanatismo mais primário e perigoso, ali formalmente elevado à categoria de instituição. 
Eu joguei futebol durante muitos anos e, antes & depois desse alegre parênteses biográfico, amei de forma profunda e generosa esta modalidade. Ainda sofro, ó triste, com o meu Sporting, como se em campo estivesse o meu Pai, de quem naturalmente herdei este amor leonino. Sabei que vibro com os golos da minha equipa e, embora com mágoa, também com a qualidade deste ou daquele jogador dos rivais. Mas não tenho paciência já para a vozearia ignorante, balofa e boçal dos que, à roda do futebol, na maioria dos casos sem perceber sequer um átomo desse fenómeno, inundam os média e as nossas ruas de bílis mortal e de escarros palavrosos. 
Atenção: não defendo, com este desabafo higiénico, que a justiça deixe de investigar as alegadas trapaças ultimamente divulgadas. Era o que faltava! Mas gostaria sobretudo de regressar, no aconchego do sofá ou do estádio, àquele estado de pura e feliz comunhão com os que, como o cronista, amam o seu clube e, concomitantemente, o futebol. 
Ópio, senhor Marx? Por um lado, talvez; por outro lado, não. Vista a coisa destas perecíveis linhas, acredite, trata-se sobretudo de uma festa.

Coimbra, 01 de Abril de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.waysup.com.]

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