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Número de Ondas

domingo, 28 de maio de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (89)


Uma fraude chamada ensino vocacional

O tema cai-me nos braços durante uma conversa, em Coimbra, à hora do café domingueiro, num centro comercial que serve de espreguiçadeira à pequena burguesia do meu contexto. Certa colega queixa-se, chorando, das grosserias (impublicáveis) de alunos de um curso vocacional. À notícia da violência, o seu director, diz-me ela, agiu de imediato, como lhe competia: falou com a turma, lembrou-lhes os direitos e os deveres dos alunos, ameaçou-os com punições e, enfim, incentivou-os a melhorar o comportamento em nome do sucesso escolar e da cidadania. Entre parênteses, introduziu uma nota sentimental, referindo o estado sofrido e frágil da docente queixosa, em lágrimas no seu gabinete. No dia seguinte, conta a colega, o inferno regressou: foi recebida com cantilenas jocosas, em que a palavra “chorona” aparecia como mote, refrão & voltas, entre gargalhadas e paródias de carpidação. 
O ensino vocacional, de que o auto-incensado ex-ministro Crato se ufanava – e serodiamente se ufana – é, em Portugal, uma quase absoluta fraude. Alunos com insucesso recorrente, por motivos que vão de incapacidades várias e respeitáveis à mais pura preguiça, e que se movem, regra geral, num quadro de clara desmotivação, são conduzidos para cursos vocacionais de cariz diverso – informática, agricultura, jardinagem, etc. Na prática, os piores alunos da Escola, quer do ponto de vista do rendimento, quer do ponto de vista do comportamento, juntam-se em grupos potencialmente (corrijo: fatalmente) explosivos, e “estudam”, em disciplinas consideradas fundamentais, o mesmo que os alunos do ensino regular/tradicional: em Português, Cesário Verde, Eça de Queirós, Garrett, Saramago; em Matemática, Álgebra, Geometria, e por aí adiante.
Fechados nas salas de aula, como antes, sujeitos ao mesmo tipo de ensino em que sobejamente se mostraram insusceptíveis de adaptação – eles reagem de forma impaciente, depois incorrecta, depois agressiva e grosseira. Tacitamente percebem que o sistema pretende oferecer-lhes, para sua (do sistema) própria sobrevivência, o diploma, pelo que pouco ou nada têm a perder com as atitudes menos adequadas que adoptam. Para piorar o panorama, sucede que a reunião de alunos problemáticos num mesmo grupo/turma tende (é dos livros) a potenciar os comportamentos disruptivos, a marginalidade, o puro Mal.
As vítimas, para além dos próprios discentes (condenados a ser, naqueles contextos tipificados, os vilões ou fracassados da Escola) são sobretudo os professores. Sei do que falo: não é só o penoso quotidiano de enfrentar as feras cinco, seis ou sete horas por semana (sujeitos ao enxovalho repetido, à desautorização, à vil rudeza e, em alguns casos, à agressão verbal ou física) – é ainda a miserável depressão em que mergulham, vivendo-vegetando tristemente, contando as aulas que faltam para acabar o pesadelo. Os alunos podem faltar, não fazer os seus módulos, manifestar todo o desprezo e nojo que lhes suscitam a matéria e o docente, mas é o professor que, em consequência, tem de compensar as aulas que as majestades discentes perderam, e de elaborar novas provas que finalmente aprovem (como é suposto/obrigatório) os “estudantes” relapsos.
Se o ensino vocacional não fosse a anedota que é em Portugal, estes alunos teriam aulas diferentes, em espaços diferentes, com matérias diferentes. A colega de Coimbra diz-me que já desistiu de fazer participações disciplinares (“Não lhes acontece nada e ainda acabam por gozar comigo ou por me ameaçar…”), de solicitar aos alunos que desliguem os telemóveis e não durmam nas mesas, de ordenar que não usem palavrões na aula, de pedir que se virem para a frente (“Para olhar para si?! Ainda se fosse nova e boa!”). Chora, pois, em silêncio, sobretudo em casa. Agarra-se aos seus alunos do 8.º ano (que são “educados, correctos, normais e querem mesmo aprender coisas”) por eles a fazerem sentir-se, ainda, um bocadinho professora. E risca no calendário as aulas que vai cumprindo no curso vocacional, como (diz-se) fazem os prisioneiros ou degredados de longa duração.
O Doutor Crato que limpe as mãos ao que, para glória fátua do seu umbigo fátuo, inventou.

Vila Real, 20 de Maio de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, ed. de 25-05-2017.]

sábado, 20 de maio de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (88)



Aparição


Num dos seus grandes romances, Aparição, Vergílio Ferreira relata um episódio cheio de uma religiosidade estética que para sempre me impressionou: uma menina (Cristina) toca piano de forma tão bela que Alberto Soares, a personagem principal da narrativa, voa para fora de si próprio e, por instantes, parece atingir o Absoluto. 
Num ensaio sobre a ideia de clássico, o escritor sul-africano (nobelizado) J. M. Coetzee fala do seu encontro com Bach, num improvável contexto de ruralidade e simplicidade tropicais, desse modo provando, com base em sua própria experiência, a natureza mágica, transtemporal e universal da arte (neste caso, da música).
Aconteceu comigo, aí por Março do corrente ano, enquanto tardiamente jantava, ouvir cantar, na televisão, um moço de aspecto estranho. Sobre o meu sofá (sobre o meu prédio, sobre Ribeira de Pena) caiu um manto de inefabilíssima beleza. Aos gritos, chamei a minha mulher, ocupada a corrigir testes de Português, e pedi-lhe que comigo testemunhasse o que ali se passava. E ela sucumbiu, como eu, ao encanto que vos digo. O rapaz, soubemos depois, chamava-se Salvador Sobral e a canção, “Amar pelos dois” (letra e música de Luísa Sobral, irmã do cantor). O programa que passava era o Festival RTP da Canção, primeira eliminatória. E nós, que há mais de vinte anos ignorávamos ostensivamente este concurso tão cada vez mais pimba, ficámos, desde logo, a torcer pelo apuramento daquele concorrente. Um júri formado por gente da música e do espectáculo deu-lhe, por unanimidade, o 1.º lugar. Mas o sistema de votação, como a seguir percebemos, também implicava votos telefónicos da turba espectadora – de modo que “Amar pelos dois” ficou, salvo erro, na 4ª posição (ainda assim apurado para a final).
Na minha Escola, para além deste vosso cronista, o maior entusiasta da canção foi o professor de Música. No geral, notei só indiferença ou menosprezo. Veio a final e Salvador Sobral voltou a convencer o júri, apesar de obter apenas um 2.º lugar no televoto. Contas feitas, foi declarado vencedor e eleito representante da RTP no Festival da Eurovisão, em Kiev (Ucrânia). Eu estava, na altura, a borrifar-me para o Eurofestival, juro. Mas atrevi-me a, nesse mês de Março, fazer um pequeno comentário no Facebook sobre o tema escrito pela Luísa Sobral. Online e ao vivo, entre agradáveis cumplicidades, soube igualmente de uma espécie de desprezo, ora pedante, ora bruto, à volta da canção. As opiniões mais patuscas (para ser simpático) diziam que “aquilo não era nada”, que seria “mais uma vergonha para Portugal lá fora”. E eu bem tentava responder-lhes que isso dos votos não me interessava coisa alguma, que apenas me parecia profundamente bonita a canção, que o Salvador Sobral era um grande intérprete, que eu nem sequer estava interessado em telever o Festival.
Entretanto, segundo li depois, as “bolsas de apostas” começaram a falar do – surpreendente – favoritismo da canção portuguesa. Músicos consagrados (incluindo, por exemplo, o senhor Caetano Veloso) confessaram-se encantados com “Amar pelos dois”. Notei, então, online e in vivo no Café diário, um certo incómodo da parte dos “especialistas” em eurofestivais, que temiam estar errados. Lá admitiam que talvez fosse bonita a melodia, sim, mas – acrescentavam – “não era para festivais”.
Finalmente, sucedeu que o Salvador Sobral e a irmã convenceram alguns milhões de ouvintes/telespectadores: aconteceu-lhes, creio, o mesmo que a mim e à minha mulher naquela noite de Março, quando a Beleza desceu sobre Trás-os-Montes e nos fez reféns (gratos) daquela melodia e daquela voz.
Não assisti em directo ao concurso (estava em Vila Real a ver o meu Sporting perder com o Feirense). Mas a minha Filha, via telefone, foi-nos relatando, no regresso a Ribeira de Pena, o que ia sucedendo. E o que os três nos rimos quando soubemos da irónica conclusão disto tudo: a tal canção que, por muito bonita que fosse, “não era para festivais”, tinha ganho!
O que veio depois já é do domínio lamentável da pimbalhada mediática (só faltou dizer-se que o Salvador era o quarto pastorinho de Fátima). Eu não sou fã do rebanho patrioteiro que foi para o aeroporto cantar o hino de Portugal, e muito desconfio que o Salvador Sobral também não. Talvez, até, se o adivinhasse, ele houvesse optado por recusar o convite da irmã e preferisse ficar descansado a cantar o seu jazz (a propósito: ouçam Excuse me, o primeiro álbum do rapaz – e deliciem-se).
Sumário de quanto vos queria dizer: nasceu uma formosíssima canção, “Amar pelos dois” (que confirma o talento da Luísa Sobral) e revelou-se-nos um extraordinário cantor (e músico), Salvador Sobral. Desejo aos dois irmãos, da varanda d’O Ribatejo e do meu coração, muitas felicidades para as suas carreiras. Por eles e por mim, que gosto de música e de arte em geral.

Vila Real, 15 de Maio de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 18-05-2017. Na versão digital do jornal, o texto é exactamente o mesmo; na versão em papel, por razões gráficas, os primeiros dois parágrafos não aparecem. A foto (com Salvador Sobral e Luísa Sobral) foi colhida - com a devida vénia - em http://www.flash.pt.]

sexta-feira, 12 de maio de 2017

Mar de mim


O Mar:
Versão eternamente virgem de si
Repetição afinal não afinal novidade
Corpo absoluto do Tempo
Filme de acção sem princípio nem fim
Máquina de estar sempre a acontecer
Vidas, Vida.

Olhai, senhores, a espuma
Memória da última onda
Expectativa do que há-de seguir-se
Esperanças.
Olhai, senhores, a vaga nascente-crescente
Adamastor esbracejante e magno
Hipérbole do limite excessivo de si próprio.
Olhai, senhores, a rebentação na areia
Os milhares de átomos da bruta força
A espuma.

O Mar:
Eu ao espelho da minha infância
Eu durante a enganosa imortalidade dos sonhos
Eu espalhado pela areia insegura
Eu espuma.

Arco de Baúlhe, 09 de Maio de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, na internet.]

ZONA DE PERECÍVEIS (87)


Expectativa e surpresa

A rotina, ao contrário do que defendem alguns idealistas, é (ou pode ser) um espaço de felicidade, oferecendo-nos um dos mais belos, embora prosaicos, rostos da maiúscula Paz – a segurança. Mas é-nos indispensável também, convenhamos, a expectativa de uma surpresa que nos salve da repetição bruta e cínica. Consola sabermos que o Sol voltará depois do ocaso, e que a noite interromperá, em (e por) tempo oportuno, o ruído fatigante da selva por onde andamos de dia. Sorrimos à probabilidade de vermos rostos conhecidos nos lugares habituais; de ouvirmos as vozes que é costume ouvirmos; de testemunharmos o funcionamento regular da vida antes de falir. Mas secretamente esperamos que uma qualquer novidade alienígena venha colorir esta amável pasmaceira das horas, seja na forma de um rosto tão lindo que não podia ser verdade, seja na qualidade de um telefonema, carta (ou email) de gente amada, seja ainda como abraço vosso, ou livro do Ondjaki, ou canção do Salvador Sobral, ou golo do Cristiano Ronaldo.
(A ideia do golo mete-se-me na escrita, mas a aparição dá-me jeito.)
Acordamos para a vida como quem se prepara para ir a um campo de futebol, com a ideia de assistirmos a um jogo do nosso clube. Tudo é, na base, repetição, rotina, protocolo: estacionar o carro, comprar o bilhete, esperar na fila, com as outras formigas, pela revista das forças de segurança, procurar o nosso lugar, aplaudir o anúncio da equipa titular, sorrir ao nome do árbitro (que já nos prejudicou milhões de vezes). Depois, começa a partida – e tudo é movediço e etéreo como alguns sonhos: sobre um chão de regras, de tácticas e de estratégias, vemos numerosíssimas danças mais acontecidas que ensaiadas, falhanços impossíveis (inadmissíveis), ressaltos de sorte & azar, glórias anunciadas ou improváveis, pesadelos adamastores, gritos, cânticos, palavrões, desassossego, dúvida, esperança, medo que já não haja tempo para um final feliz.
A boa literatura tem muito desta mesma mistura, seja qual for o modo por que viajemos: nos bons romances e nos bons dramas, a sistemática repetição de gestos e eventos dá-nos a ilusão do tempo a passar (tempo realista, verosímil, político, isto é, tempo percebido-sentido na nossa pele, com rugas e tudo) - e depois há, por exemplo, a surpresa de um amor impossível que, por milagre, se afigura possível, e que depois, como temíamos (temêramos) falece tragicamente. Na poesia, por entre frases denotativas e simples, refulgem versos originais e provocatórios que nos mudam, para sempre, a linguagem e a própria vida, ou sons que, partindo da normalidade comezinha, desaguam subitamente em rimas, assonâncias, aliterações, música (dita-ouvida-pensada).
O meu dia começa com o toque do alarme para despertar. Levanto-me. Abro a janela e peço instruções à paisagem para a roupa (muita ou pouca) a usar. Tomo 50 mg de Losartan para a tensão. Faço a barba, lavo os dentes, tomo banho, visto-me. Se o relógio me autorizar, ainda bebo uma chávena de café e engulo um pão com manteiga. Beijo a mulher. Desço a escada, ponho o carro a trabalhar, ligo o rádio, viajo. Na escola, cumprimento os contemporâneos habituais da minha sorte e começo a trabalhar. No meio desta virtuosa rotina, hão-de acontecer-me, sei-o bem, coisas extraordinárias. Talvez versos (lidos, escritos, quiçá testemunhados em seu estado de pré-literatura). E, caros amigos, como poderia eu (como poderíamos nós) viver sem esta expectativa?

Coimbra, 06 de Maio de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 11-05-2017.]

O carpinteiro sem jeito



Era uma vez um viúvo com dois filhos a cargo. O mais velho cedo começara a acompanhar o pai nos trabalhos do campo. O mais novo, apesar de mostrar uma inteligência invulgar e uma enorme aptidão para a escrita, era visto pela população como preguiçoso e inútil: mal sabia cavar, cansava-se (ou aborrecia-se rapidamente) e não poucas vezes era apanhado pelo irmão mais velho a ler, escondido atrás de uma árvore ou de um muro, livros de aventuras. O pai irritava-se com ele e, de vez em quando, castigava-o à noite, suprimindo-lhe o jantar. 
O padre da aldeia, que andava a ler As pupilas do senhor reitor, de Júlio Dinis, sugeriu que o viúvo pusesse o filho num seminário, pois a vida religiosa garantiria ao rapaz uma vida virtuosa, merecedora do respeito de todos e, assim que se ordenasse, também com direito a casa e a comida oferecidas pelos paroquianos que lhe coubesse em sorte. E lá foi o rapaz para o Porto, sem entusiasmo que se visse. Desistiu, contudo, ao fim de poucos meses. 
- Aquilo não é para mim, meu pai. Eu prefiro a natureza, o convívio com as pessoas… e hei-de querer, um dia, uma mulher e uma família!
O pai encolheu os ombros e tentou, com paciência de santo, ensinar-lhe o ofício de carpinteiro (ocupação a que se dedicava o próprio irmão, há trinta anos). Mas o filho revelava pouco jeito e era frequentemente vítima da troça do tio (irmão do pai), que a toda a gente garantia, sobre o sobrinho, que era “a maior ave rara que já vira na vida”.
Aos vinte e dois anos, o irmão mais velho era já um lavrador respeitado pela aldeia e arredores. O pai lamentava-se:
- Que há-de ser do futuro deste rapaz? Agora deu-lhe para escrever versos!...
O tempo passou. Morreu entretanto o tio carpinteiro e o poeta teve de se dedicar mais a sério à carpintaria. Mas era mais frequente vê-lo na escrita do que a serrar tábuas ou a martelar pregos. Pouco dinheiro retirava do seu trabalho, na verdade. Por piedade, o irmão, já casado e com filhos, lá o convidava para almoçar ou jantar, pois bem notava a sua magreza e a sua palidez.
Até que a escrita de tantos anos deu em compensar: veio um prémio de Lisboa, atribuído pelo Ministério da Cultura; depois, uma medalha oferecida pelo Presidente da República; elogios, dinheiro e prestígio de indivíduos e instituições diversas.
O carpinteiro tornou-se escritor famoso e quase rico. Na condição de remediado, o irmão mais velho, certo dia, lamentou-se na tasca do Manuel Tibúrcio:
- Fartei-me de trabalhar e mal ganho para as sopas. O meu irmão passou a vida a escrever e só falta beijarem-lhe os pés… Acha justo, ó Tibúrcio?
Foi um velho professor, já reformado, quem lhe respondeu:
- Tu és um homem bom, trabalhador e honesto, não há dúvida! Mas o teu irmão não te fica atrás – o seu ofício é que é outro. É um poeta!
- E para que serve isso, senhor professor? – reagiu o taberneiro, que estava inclinado a tomar o partido do irmão mais velho.
O professor suspirou e disse:
- Para pôr em palavras o que vemos, sentimos e não somos capazes de dizer. Para nos confortar. Ou simplesmente para criar beleza. Parece-te pouco?
Ao longe, sob o Sol, uma cigarra cantava, e era como se a sua música fizesse parte da luz que iluminava a aldeia.

Arco de Baúlhe, 03 de Maio de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, na internet.]

terça-feira, 9 de maio de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (86)



 Saudades de Carlos Pinhão

À semelhança do que ocorre, hoje, com a maioria dos jornais, A Bola está longe de ser aquele espaço de excelência jornalística e, sobretudo, literária que os leitores do século XX testemunharam e aproveitaram. Sinal dos tempos, diz-se. Mau sinal, digo eu.
Entre os muitos notáveis daquela prosa de primeira água que havia n’A Bola, destaco três: Carlos Miranda, que está para Joaquim Agostinho como Luís de Camões para Vasco da Gama; Vítor Santos, cujos textos eram antologias de saber e ética; e Carlos Pinhão (o meu preferido), dono de uma escrita luminosa e cheia de graça. Tive a felicidade de conhecer pessoalmente este último. Nos meus primeiros anos de professor, ousei fotocopiar crónicas suas e dá-las a degustar aos alunos, com óbvio benefício deles e meu. Na prosa de Carlos Pinhão, havia um raciocínio claro e fino, acompanhado quase sempre de certo sorriso cúmplice e divertido, que os leitores mais adivinhavam do que viam.
Aí por 1990, quando leccionava no Paião (vila contígua à majestosa Figueira da Foz), tomei em mãos o projecto de trazer à escola este senhor – para que os alunos o conhecessem, quer na qualidade de repórter e cronista, quer na qualidade de escritor. Tinha lido já, por essa altura, aos meninos e às meninas do 7.º ano, o seu livro Era uma vez um coelho francês, espécie de alegoria divertida e eficaz contra o racismo, e ocorrera-me a ideia de fazer dessa narrativa um textinho para teatro. “Não era engraçado”, perguntei eu à turma, “representarmos esta peça com o autor da história no público?” E a proposta foi aprovada por trinta sins a zero.
Escrevi para A Bola, o Carlos Pinhão respondeu-me, combinámos conversa telefónica. Lembro-me da primeira vez em que ouvi a sua voz franca e meio gaguejada: “Boa noite, professor. Fez bem em telefonar só a seguir à novela…” Um mês depois, se bem recordo, viajou até Coimbra, de comboio, e aí o recebi, acompanhado da sua amabilíssima esposa. Instalei-os num hotel da cidade e, no dia seguinte, manhã cedo, levei-os no meu carro até à escola. O nosso programa dividia-se em duas partes: de manhã, o convidado falaria aos alunos do 8.º e 9.º anos sobre a importância do jornalismo no mundo moderno (havia a primeira invasão do Iraque como pano de fundo); de tarde, assistiria à representação da peça “Era uma vez um coelho francês” e falaria, depois, aos alunos do 7.º ano sobre a sua obra literária, tendencialmente dirigida ao público infantil e juvenil.
A visita foi um imenso sucesso, e o prazer do Carlos Pinhão não foi o menor dos motivos para a minha tão grande felicidade de então. Recordo em especial aquela tarde em que o vi sorrir perante o seu coelho francês adaptado ao teatro; a emoção da sua esposa por ouvir, no final da peça, a canção “Amigo”, do amado Zeca Afonso; as suas respostas certeiras e geralmente divertidas às perguntas (preparadas ou espontâneas) dos alunos – por exemplo, quando o interrogaram sobre o melhor livro escrito por si: “Ó pá, tu nunca perguntes a um pai qual é o seu filho favorito!
Impressionou-me igualmente o aspecto de namorados que ele e a esposa mantinham, apesar da idade já madura de ambos. Ainda hoje retenho, até como referência para a minha própria vida familiar, aquela cumplicidade especial, aquela harmonia de gestos e de palavras entre os dois, aquela serenidade e doçura que deles emanava. A propósito: na viagem entre Coimbra e o Paião, o Carlos Pinhão pediu-me para deixar a mulher na Figueira da Foz até à hora do almoço, pois ela – dizia – “já estava farta de o ouvir dizer sempre as mesmas coisas”. Eu preparava-me para anuir ao pedido-ordem do convidado ilustre, mas a sua companheira de tantos anos saiu-se com esta: “Ó Carlos, a mim parece-me que é sempre a primeira vez que te ouço!” E ele, rindo-se, evidentemente feliz: “Já viu, professor? Tenho ou não tenho muita sorte?” A sorte, pensei eu, foi terem-se os dois conhecido (e haver gente tão bonita para grato consumo do mundo).
Que pena tive, senhores, anos mais tarde, quando soube do falecimento do senhor Carlos Pinhão, esse tão grande nome do jornalismo limpo, ledo e lindo que já houve em Portugal.

Vila Real, 28 de Abril de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 04 de Maio de 2017.]

segunda-feira, 1 de maio de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (85)


Abril, segundo o senhor Mateus

Eu já tinha um irmão em França, na região de Paris”, disse-me o senhor Delfim Mateus (nome fictício), octogenário de uma vila transmontana onde estou há já 21 anos. “O meu irmão tinha sido chamado para a tropa e deu em pensar que, uma vez embarcado no famoso Niassa, era certo e sabido o adeus para sempre à metrópole, ou o regresso final em caixão. Metrópole era como então se dizia Portugal sem as colónias. Fugiu e, digo-o sem remorsos, fez bem, que aquela guerra era uma causa perdida, mais do interesse de outros cujos filhos nem lá punham os pés.”
Mas eu fui. Passei pela Escola Prática de Administração Militar, ali ao Lumiar, perto do estádio do Sporting, e depois abalei para Moçambique. Não viajei de barco, por acaso, mas de avião. Ainda me doem os braços e as lágrimas de minha mãe, à despedida, que o meu pai, esse, não chorou coisa que se visse. Na vinda, dois anos mais tarde, só estava a minha mãe, e o abraço repetiu-se, talvez ainda com mais lágrimas (dela e minhas). O meu pai já estava com o meu irmão em Bezon, a lutar contra a miséria da sua vida portuguesa.
Disse-me a minha mãe que antes assim, porque lhe custara muito a visita de dois pides, certa noite, convocando o marido para uma conversa na esquadra da GNR da terra. E tudo porque, num Sábado à noite, na tasca, dera em dizer mal do país e da guerra, responsabilizando o Marcelo Caetano pela minha eventual morte. À saída da missa, na semana seguinte, o doutor Tibúrcio (que, segundo o povo, era bufo da polícia política), recomendou-lhe, com má catadura, muito cuidado e juizinho na cabeça.
Em menos de meio ano, já eu estava também em França. Fui a salto, que era um modo de chegar ao destino sem a chatice dos papéis e dos interrogatórios. A França, senhor! Se soubesse o que aquilo parecia a um emigrante português! Alguns dizem, para explicar isto, que era outro país, muito diferente do nosso. Mas eu creio que a diferença era coisa muito mais profunda e, como agora se diz, radical. A França, vista pelos olhos de quem lá chegava, vindo da pobreza e da escuridão lusas, era outro planeta! Isso mesmo: outro planeta!
Havia trabalho, progresso, direitos garantidos para quem trabalhava (salário digno, subsídios, médicos e medicamentos para quem precisasse, férias, licença de maternidade, boas escolas para os filhos). Andava-se por estradas decentes, modernas, muito diferentes dos caminhos de cabras que então havia entre a minha aldeia e a sede do concelho. Toda a gente tinha casa de banho, água canalizada, luz. E as pessoas eram livres, compreende? Livres de falar, de pensar pelas suas cabeças, de reclamar na justiça, de escolher o melhor para as suas vidas.
Eu digo, às vezes, que Portugal é agora como a França que eu conheci. Mas nós chegámos lá com uns 40 ou 50 anos de atraso, não é verdade?
Na nossa vila, hoje, há escolas, centro de saúde, campos desportivos, biblioteca, até piscinas. Somos nós que escolhemos os governantes. Vivemos em democracia e liberdade. Há problemas? Há razões de queixa dos políticos, dos partidos, dos governos? Claro que sim. Mas isso é próprio da vida, que nunca é perfeita, e da humanidade, que nunca está completamente satisfeita.
Ainda hoje digo aos mais novos que, a par do casamento e do nascimento dos filhos (e de um ou outro golo do Yazalde), o 25 de Abril foi o dia mais importante da minha vida.

Coimbra, 23 de Abril de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 27-04-2017.]