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Número de Ondas

segunda-feira, 1 de maio de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (85)


Abril, segundo o senhor Mateus

Eu já tinha um irmão em França, na região de Paris”, disse-me o senhor Delfim Mateus (nome fictício), octogenário de uma vila transmontana onde estou há já 21 anos. “O meu irmão tinha sido chamado para a tropa e deu em pensar que, uma vez embarcado no famoso Niassa, era certo e sabido o adeus para sempre à metrópole, ou o regresso final em caixão. Metrópole era como então se dizia Portugal sem as colónias. Fugiu e, digo-o sem remorsos, fez bem, que aquela guerra era uma causa perdida, mais do interesse de outros cujos filhos nem lá punham os pés.”
Mas eu fui. Passei pela Escola Prática de Administração Militar, ali ao Lumiar, perto do estádio do Sporting, e depois abalei para Moçambique. Não viajei de barco, por acaso, mas de avião. Ainda me doem os braços e as lágrimas de minha mãe, à despedida, que o meu pai, esse, não chorou coisa que se visse. Na vinda, dois anos mais tarde, só estava a minha mãe, e o abraço repetiu-se, talvez ainda com mais lágrimas (dela e minhas). O meu pai já estava com o meu irmão em Bezon, a lutar contra a miséria da sua vida portuguesa.
Disse-me a minha mãe que antes assim, porque lhe custara muito a visita de dois pides, certa noite, convocando o marido para uma conversa na esquadra da GNR da terra. E tudo porque, num Sábado à noite, na tasca, dera em dizer mal do país e da guerra, responsabilizando o Marcelo Caetano pela minha eventual morte. À saída da missa, na semana seguinte, o doutor Tibúrcio (que, segundo o povo, era bufo da polícia política), recomendou-lhe, com má catadura, muito cuidado e juizinho na cabeça.
Em menos de meio ano, já eu estava também em França. Fui a salto, que era um modo de chegar ao destino sem a chatice dos papéis e dos interrogatórios. A França, senhor! Se soubesse o que aquilo parecia a um emigrante português! Alguns dizem, para explicar isto, que era outro país, muito diferente do nosso. Mas eu creio que a diferença era coisa muito mais profunda e, como agora se diz, radical. A França, vista pelos olhos de quem lá chegava, vindo da pobreza e da escuridão lusas, era outro planeta! Isso mesmo: outro planeta!
Havia trabalho, progresso, direitos garantidos para quem trabalhava (salário digno, subsídios, médicos e medicamentos para quem precisasse, férias, licença de maternidade, boas escolas para os filhos). Andava-se por estradas decentes, modernas, muito diferentes dos caminhos de cabras que então havia entre a minha aldeia e a sede do concelho. Toda a gente tinha casa de banho, água canalizada, luz. E as pessoas eram livres, compreende? Livres de falar, de pensar pelas suas cabeças, de reclamar na justiça, de escolher o melhor para as suas vidas.
Eu digo, às vezes, que Portugal é agora como a França que eu conheci. Mas nós chegámos lá com uns 40 ou 50 anos de atraso, não é verdade?
Na nossa vila, hoje, há escolas, centro de saúde, campos desportivos, biblioteca, até piscinas. Somos nós que escolhemos os governantes. Vivemos em democracia e liberdade. Há problemas? Há razões de queixa dos políticos, dos partidos, dos governos? Claro que sim. Mas isso é próprio da vida, que nunca é perfeita, e da humanidade, que nunca está completamente satisfeita.
Ainda hoje digo aos mais novos que, a par do casamento e do nascimento dos filhos (e de um ou outro golo do Yazalde), o 25 de Abril foi o dia mais importante da minha vida.

Coimbra, 23 de Abril de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 27-04-2017.]

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