Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sábado, 20 de maio de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (88)



Aparição


Num dos seus grandes romances, Aparição, Vergílio Ferreira relata um episódio cheio de uma religiosidade estética que para sempre me impressionou: uma menina (Cristina) toca piano de forma tão bela que Alberto Soares, a personagem principal da narrativa, voa para fora de si próprio e, por instantes, parece atingir o Absoluto. 
Num ensaio sobre a ideia de clássico, o escritor sul-africano (nobelizado) J. M. Coetzee fala do seu encontro com Bach, num improvável contexto de ruralidade e simplicidade tropicais, desse modo provando, com base em sua própria experiência, a natureza mágica, transtemporal e universal da arte (neste caso, da música).
Aconteceu comigo, aí por Março do corrente ano, enquanto tardiamente jantava, ouvir cantar, na televisão, um moço de aspecto estranho. Sobre o meu sofá (sobre o meu prédio, sobre Ribeira de Pena) caiu um manto de inefabilíssima beleza. Aos gritos, chamei a minha mulher, ocupada a corrigir testes de Português, e pedi-lhe que comigo testemunhasse o que ali se passava. E ela sucumbiu, como eu, ao encanto que vos digo. O rapaz, soubemos depois, chamava-se Salvador Sobral e a canção, “Amar pelos dois” (letra e música de Luísa Sobral, irmã do cantor). O programa que passava era o Festival RTP da Canção, primeira eliminatória. E nós, que há mais de vinte anos ignorávamos ostensivamente este concurso tão cada vez mais pimba, ficámos, desde logo, a torcer pelo apuramento daquele concorrente. Um júri formado por gente da música e do espectáculo deu-lhe, por unanimidade, o 1.º lugar. Mas o sistema de votação, como a seguir percebemos, também implicava votos telefónicos da turba espectadora – de modo que “Amar pelos dois” ficou, salvo erro, na 4ª posição (ainda assim apurado para a final).
Na minha Escola, para além deste vosso cronista, o maior entusiasta da canção foi o professor de Música. No geral, notei só indiferença ou menosprezo. Veio a final e Salvador Sobral voltou a convencer o júri, apesar de obter apenas um 2.º lugar no televoto. Contas feitas, foi declarado vencedor e eleito representante da RTP no Festival da Eurovisão, em Kiev (Ucrânia). Eu estava, na altura, a borrifar-me para o Eurofestival, juro. Mas atrevi-me a, nesse mês de Março, fazer um pequeno comentário no Facebook sobre o tema escrito pela Luísa Sobral. Online e ao vivo, entre agradáveis cumplicidades, soube igualmente de uma espécie de desprezo, ora pedante, ora bruto, à volta da canção. As opiniões mais patuscas (para ser simpático) diziam que “aquilo não era nada”, que seria “mais uma vergonha para Portugal lá fora”. E eu bem tentava responder-lhes que isso dos votos não me interessava coisa alguma, que apenas me parecia profundamente bonita a canção, que o Salvador Sobral era um grande intérprete, que eu nem sequer estava interessado em telever o Festival.
Entretanto, segundo li depois, as “bolsas de apostas” começaram a falar do – surpreendente – favoritismo da canção portuguesa. Músicos consagrados (incluindo, por exemplo, o senhor Caetano Veloso) confessaram-se encantados com “Amar pelos dois”. Notei, então, online e in vivo no Café diário, um certo incómodo da parte dos “especialistas” em eurofestivais, que temiam estar errados. Lá admitiam que talvez fosse bonita a melodia, sim, mas – acrescentavam – “não era para festivais”.
Finalmente, sucedeu que o Salvador Sobral e a irmã convenceram alguns milhões de ouvintes/telespectadores: aconteceu-lhes, creio, o mesmo que a mim e à minha mulher naquela noite de Março, quando a Beleza desceu sobre Trás-os-Montes e nos fez reféns (gratos) daquela melodia e daquela voz.
Não assisti em directo ao concurso (estava em Vila Real a ver o meu Sporting perder com o Feirense). Mas a minha Filha, via telefone, foi-nos relatando, no regresso a Ribeira de Pena, o que ia sucedendo. E o que os três nos rimos quando soubemos da irónica conclusão disto tudo: a tal canção que, por muito bonita que fosse, “não era para festivais”, tinha ganho!
O que veio depois já é do domínio lamentável da pimbalhada mediática (só faltou dizer-se que o Salvador era o quarto pastorinho de Fátima). Eu não sou fã do rebanho patrioteiro que foi para o aeroporto cantar o hino de Portugal, e muito desconfio que o Salvador Sobral também não. Talvez, até, se o adivinhasse, ele houvesse optado por recusar o convite da irmã e preferisse ficar descansado a cantar o seu jazz (a propósito: ouçam Excuse me, o primeiro álbum do rapaz – e deliciem-se).
Sumário de quanto vos queria dizer: nasceu uma formosíssima canção, “Amar pelos dois” (que confirma o talento da Luísa Sobral) e revelou-se-nos um extraordinário cantor (e músico), Salvador Sobral. Desejo aos dois irmãos, da varanda d’O Ribatejo e do meu coração, muitas felicidades para as suas carreiras. Por eles e por mim, que gosto de música e de arte em geral.

Vila Real, 15 de Maio de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 18-05-2017. Na versão digital do jornal, o texto é exactamente o mesmo; na versão em papel, por razões gráficas, os primeiros dois parágrafos não aparecem. A foto (com Salvador Sobral e Luísa Sobral) foi colhida - com a devida vénia - em http://www.flash.pt.]

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