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Número de Ondas

sexta-feira, 12 de maio de 2017

O carpinteiro sem jeito



Era uma vez um viúvo com dois filhos a cargo. O mais velho cedo começara a acompanhar o pai nos trabalhos do campo. O mais novo, apesar de mostrar uma inteligência invulgar e uma enorme aptidão para a escrita, era visto pela população como preguiçoso e inútil: mal sabia cavar, cansava-se (ou aborrecia-se rapidamente) e não poucas vezes era apanhado pelo irmão mais velho a ler, escondido atrás de uma árvore ou de um muro, livros de aventuras. O pai irritava-se com ele e, de vez em quando, castigava-o à noite, suprimindo-lhe o jantar. 
O padre da aldeia, que andava a ler As pupilas do senhor reitor, de Júlio Dinis, sugeriu que o viúvo pusesse o filho num seminário, pois a vida religiosa garantiria ao rapaz uma vida virtuosa, merecedora do respeito de todos e, assim que se ordenasse, também com direito a casa e a comida oferecidas pelos paroquianos que lhe coubesse em sorte. E lá foi o rapaz para o Porto, sem entusiasmo que se visse. Desistiu, contudo, ao fim de poucos meses. 
- Aquilo não é para mim, meu pai. Eu prefiro a natureza, o convívio com as pessoas… e hei-de querer, um dia, uma mulher e uma família!
O pai encolheu os ombros e tentou, com paciência de santo, ensinar-lhe o ofício de carpinteiro (ocupação a que se dedicava o próprio irmão, há trinta anos). Mas o filho revelava pouco jeito e era frequentemente vítima da troça do tio (irmão do pai), que a toda a gente garantia, sobre o sobrinho, que era “a maior ave rara que já vira na vida”.
Aos vinte e dois anos, o irmão mais velho era já um lavrador respeitado pela aldeia e arredores. O pai lamentava-se:
- Que há-de ser do futuro deste rapaz? Agora deu-lhe para escrever versos!...
O tempo passou. Morreu entretanto o tio carpinteiro e o poeta teve de se dedicar mais a sério à carpintaria. Mas era mais frequente vê-lo na escrita do que a serrar tábuas ou a martelar pregos. Pouco dinheiro retirava do seu trabalho, na verdade. Por piedade, o irmão, já casado e com filhos, lá o convidava para almoçar ou jantar, pois bem notava a sua magreza e a sua palidez.
Até que a escrita de tantos anos deu em compensar: veio um prémio de Lisboa, atribuído pelo Ministério da Cultura; depois, uma medalha oferecida pelo Presidente da República; elogios, dinheiro e prestígio de indivíduos e instituições diversas.
O carpinteiro tornou-se escritor famoso e quase rico. Na condição de remediado, o irmão mais velho, certo dia, lamentou-se na tasca do Manuel Tibúrcio:
- Fartei-me de trabalhar e mal ganho para as sopas. O meu irmão passou a vida a escrever e só falta beijarem-lhe os pés… Acha justo, ó Tibúrcio?
Foi um velho professor, já reformado, quem lhe respondeu:
- Tu és um homem bom, trabalhador e honesto, não há dúvida! Mas o teu irmão não te fica atrás – o seu ofício é que é outro. É um poeta!
- E para que serve isso, senhor professor? – reagiu o taberneiro, que estava inclinado a tomar o partido do irmão mais velho.
O professor suspirou e disse:
- Para pôr em palavras o que vemos, sentimos e não somos capazes de dizer. Para nos confortar. Ou simplesmente para criar beleza. Parece-te pouco?
Ao longe, sob o Sol, uma cigarra cantava, e era como se a sua música fizesse parte da luz que iluminava a aldeia.

Arco de Baúlhe, 03 de Maio de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, na internet.]

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