Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Barco-biografia

Já fui um barco assustado
À beira de naufragar.
Vi-me outras vezes parado
Não podendo navegar
(Que não há barco levado
Sem água para o levar).
Navegar é o meu Fado
Não posso não navegar:
Quero ir p’ra outro lado –
Falta-me às vezes o Mar!

Arco de Baúlhe, 30 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (capa do meu livro Um Barco Chamado Sophia Loren) foi colhida em http://www.muitomar.blogspot.com.]

terça-feira, 29 de maio de 2012

Crónica sobre a profissão principal

Vou falar-vos da minha vida profissional. Faço-o envolto numa ideia que brilha em certo poema de Eugénio (“Poema à mãe”) – a de o destino dos pássaros ser, logo após a aprendizagem do voo, eles partirem, irem-se embora. Voarem para fora de nós.
A minha filha é um desses seres voadores que deu em crescer e em ter vida própria, à revelia dos pais. É assim a vida? É. Eu é que nunca me habituei a tal independência voadora e sofro muito.
A minha biografia, sabei, resume-se hoje ao medo constante de que a ave caia, se magoe, se desiluda, sofra alguma injustiça – e que eu não esteja (não possa estar) por ali perto do seu voo pessoal para, sendo necessário, interferir, domar o destino, evitar a má sorte.
Prometi que falaria da minha vida profissional, não foi? E cumpri, senhores. Ora atentai: nasceu-me, há já vinte e sete anos, uma filha e o meu ofício principal tornou-se, daí em diante, para todo o sempre, ser pai.

Arco de Baúlhe, 29 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (a "Luluzinha" de uma bd que eu e a VL gostamos) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.nomesportugueses.blogspot.pt]

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Vista a coisa, digamos, de comboio



A viagem tem como fatal destino
O fim.
Já isto me dói desde menino
Assim.


Eu indo é que me mereço
O futuro -
E perder quanto vejo é um preço
Duro.


Sim, indo é que me conheço
Vindo –
Mas perder quanto vejo é um preço
Lindo!


Coimbra, 28 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.jomirifefotos.blogspot.com.]


domingo, 27 de maio de 2012

Ai, Verão

Mulheres de leves vestidos
São excessos de calor
E acendem lobos sentidos
No inocente olhador.

Coimbra, 27 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (“Les Demoiselles d’Avignon”, de Picasso) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.art-on-google.com.]

Drama lúdico-lírico (com cacofonia final)

Vou ao Futuro, às vezes, de fugida
Para ver o Mar que há no meu fim;
Mínima parece a minha vida
Vista do Futuro, além de mim.

Outras vezes, no Passado ausente
Busco um curso d’água original
E vejo como novo novamente
O velho rio que corre no Choupal.

Mas é Presente só quanto se passa:
Eu no Café escrevendo o verbo ir -
A resolver com ritmos e graça
O delicado puzzle d’existir.

Coimbra, 26 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.cavalinhoselvagem.blogspot.com.]

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Terra nossa


A gente diz: Vou à terra. Mas, se a terra é um lugar de amor, isto é, uma possibilidade feliz de estarmos-sermos, não é bem disso que se trata. Devia dizer-se, nestes casos: Vou ao céu.
Triste seria andarmos por outras terras quando nelas, nem por instantes, nos sentimos em casa. Não é esse, aleluia, o meu caso.
Pior ainda, imagino eu, é acontecer a um homem não ser de nenhuma terra. Para onde vão estes homens, quando em vão viajam para outro lugar, na busca desesperada de um espaço onde se sintam bem?
Não ter raízes deve ser uma forma de inferno.


Arco de Baúlhe, 25 de Maio de 2012 (hora d'almoço).
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.coimbra.hostel.blogspot.com/.]

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Neo-realismo (im)puro e duro

Docemente cai a tarde, noite a haver, enquanto Portugal regressa a casa (do trabalho, dos gabinetes de emprego, da preguiça voluntária ou sem querer). O país vai jantar no segredo doméstico, queixar-se da vida, suspirar preocupações por facturas de casa-gás-luz-água-fruta. Talvez também atordoar-se com a televisão, ver o mundo da janela alugada, dormir (antes, ou depois, ou em vez do rápido amor).
Ainda vejo transeuntes trocarem múrmuros votos de boas tardes, boas noites. Na padaria, ao pé da minha mesa, lado direito do balcão, uma mulher com – deixai-me adivinhar – cinquenta anos, de velho vestido azul e chinelos pretos, compra dois pães: procura, sob o paciente olhar da empregada, as moedinhas que hão-de perfazer a conta pobre. Recebe, depois, um cêntimo de troco. Sorriem ambas, vendedora e adquirente. Sorrio eu igualmente, mas não alegre.

Coimbra, 24 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.jotaedu.blogspot.com.]

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Sol e Dó (Três quadras d'aquém-mar)

1
Amo o decote cão
Da moça passando agora –
Doce oferta de Verão
Que dura até ir-se embora.

2
Eu te saúdo, Beleza
Meu veneno salvador!
Menina Delicadeza
Nossa Senhora d’Amor!

3
Quem me dera ser patrão
Da minha vida a passar!
Quem me dera comprar pão
Num sítio perto do Mar!

Ribeira de Pena, 23 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (da tão bela Nastassja Kinski, a actriz inesquecível de Tess) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.wikipedia.com.]

terça-feira, 22 de maio de 2012

Pão de homem


É fruto a vida às vezes
Às vezes a vida é pão
Tudo nos é dado às vezes
E outras vezes já não.

É vida o pão afinal
Por ser do homem destino
Ir do trigo inicial
Ao pão que o torne digno.

Arco de Baúlhe, 22 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem ("A Colheita de Trigo", de Pieter Brueghel, século XVI) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.viaintegral.com.]

Escrito a Norte


No Verão de 1980, o Clube de Futebol União de Coimbra estava no Algarve, em Lagos, para um torneio de futebol. No primeiro dia, empatámos 1-1 e eu fiz um grande jogo. À noite, meio acordado, meio a sonhar com o meu futuro brilhante, andei por aquela cidade tão cosmopolita com o Lobo, o Bonacho, o Marroni, talvez o Januário, todos com aquele espanto de que só as crianças e os provincianos gloriosamente são capazes.
Numa festa à entrada de um hotel, vi certa loira muito linda, provavelmente alemã, a dizer (em inglês) a um macho luso que não poderia sair, oh my darling, porque o marido estava just there. Vi um casal quarentão (mais jovens, ambos, do que eu agora, altos, talvez americanos) dançando no cais uma melodia que, ali, mal se ouvia, sem ninguém à volta senão o adolescente encantado à espera do dia certo para escrever sobre a coisa vista. Vi um pescador bastante velho a vomitar num muro da marginal. Vi o meu treinador, o senhor Pinho, numa larga esplanada, a rir-se de uma anedota do director Sarmento. Vi meninas portuguesas e estrangeiras tão bonitas como as mais belas actrizes  que eu conhecia só do cinema e dos sonhos (a preto e branco ou a cores). Vi gajos maricas e senhoras trintonas interrogando-me, com os olhos, sobre a disponibilidade para alguma aventura de rápida carne.
O mar de Lagos sentia-se à roda, mais do que se via. Estava um calor bom de Verão bom. Houve só, por segundos, esse pormenor de muito ao longe algum relógio d'igreja bater as horas. Mas havia festa por todo o lado e eu era tão jovem, tão brilhante, tão cheio de esperanças - que não poderia adivinhar o outro lado daquilo: o estar, trinta e dois anos depois, escrevendo sobre a falta que me faz Lagos, isto é, esse exacto tempo e esse exacto lugar da minha muito amada juventude.
Na manhã seguinte, mal dormidos, ganhámos a final (golo, creio, do Moinhos) e, no regresso, prometi a mim próprio que, mal me reformasse do futebol, aplicaria parte da fortuna ganha na aquisição de casa junto à praia, naquele cantinho do Algarve que afinal ficou, para sempre, demasiado a Sul de mim.

Ribeira de Pena, 21 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (foto de Lagos) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.barlionheart.com/.]

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Sempre Sporting. Sporting sempre


O meu Sporting perdeu a final da taça de Portugal. Ganhou (creio que sem brilho especial) a Académica, essa equipa que a comunicação social imaginosamente apresenta como "dos estudantes".
- Está triste ou alegre? - questionaram-me alguns conhecidos, no fim do jogo do Jamor. Sabiam do meu amor verde&branco, por um lado, e da minha origem coimbrinha, por outro.
Se me conhecessem melhor, poupar-se-iam ao trabalho da pergunta. Ainda por cima, essa curiosidade amigável atiçou-me a azia de mais uma desilusão.
Sou, desde menino, do União de Coimbra e do Sporting. E tenho um particular carinho pela Académica amadora (AAC - Secção de Futebol). O resto importa-me pouco. Não exulto com os insucessos da Académica dos profissionais, atenção, mas tão-pouco me orgulho das suas pontuais proezas.
De modo que o sumário lírico-desportivo do dia de hoje é (mais) uma derrota. Injusta, segundo a razão crítica do meu pobre coração.
Mas, tal como não deixo de dizer do 25 de Abril, Sporting - sempre!

Ribeira de Pena, 20 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (foto de um dos meus queridos ídolos de infância e adolescência, o Senhor Manuel Fernandes) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.daduvida.blogspot.pt/.]

domingo, 20 de maio de 2012

Totoloto



No intervalo da escrita e da leitura
Queria o totoloto, se possível
Que eu preciso de literatura
E o meu carro de combustível.

Ribeira de Pena, 20 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

Tenda pontual

Um acidente terrível. A Morte. O Fim em versão de inevitabilidade antecipada. Aquela escura mancha dos funerais. O frio e a chuva.
Em Aquele Grande Rio Eufrates, Ruy Belo fala de despedida como uma ida à "outra margem" e lamenta a inexistência de "tenda verbal" que diga tudo quanto se sente perante tão magna dor.
Com a idade, sentindo isto na própria carne ou na dos nossos semelhantes (amigos, colegas, conhecidos, contemporâneos), cada vez melhor e mais tragicamente percebemos a fragilidade de existir e de, sobre a nossa impotência face a inexistir, ser tão difícil dizermos tudo quanto sentimos.
Monto aqui a minha tenda verbal e deixo-me estar, por lutuosos instantes, dentro dela. A delicada construção não me livra do frio nem da chuva.
Abraço para a C. que perdeu subitamente o pai.

Ribeira de Pena, 19 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www/.idadecerta.com.]

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Palavras por cidade

As palavras são perigosas. Pode começar-se uma guerra com palavras. E uma guerra pode, por exemplo, destruir uma inteira cidade. Mas as palavras também podem ajudar a reconstruir uma cidade. (Não bem reconstruir, se formos rigorosos, porque uma cidade destruída nunca mais pode voltar a ser a mesma cidade.)
As palavras podem matar, portanto, uma cidade. E extensões da cidade, já agora: a simpli-cidade, a feli-cidade. Dá-se ainda o caso de outras palavras poderem ajudar a reconstruir estes territórios destruídos. (Não bem reconstruir, se formos rigorosos, porque a simplicidade e a felicidade, uma vez destruídas, nunca mais poderão voltar a ser as mesmas coisas.)
O pior de tudo, neste panorama perigoso das palavras, talvez seja a cumpli-cidade. Nenhuma palavra é capaz de, uma vez destruído este reduto tão puro, lindo e querido, nos devolver o oxigénio cúmplice em que, por instantes, fomos-somos capazes de residir.
A cidade da cumplicidade é um condomínio fechado e raro, não obstante ser um lugar e um tempo fundamentalmente simples. Podemos ser felizes lá.

Ribeira de Pena, 18 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (da melhor série de sempre, Seinfeld) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.alternative-prison.blogspot.pt.]

Défice de eternidade

A única coisa que por estes dias me parece eterna é, descontadas outras hipérboles menores, a dívida da casa à Caixa Geral de Depósitos.

Ribeira de Pena, 18 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.tocadacotia.com.]

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Sinal

Recebe as rosas, rigorosa Razão,
Dos dias sucedendo em marcha incerta;
Dá-lhes a água da tua atenção
E toma do perfume dessa oferta
Vívido sinal do Coração
Que o mínimo sol, em ti, desperta.


Arco de Baúlhe, hora d’almoço, 16 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.paranoidj.wordpress.com.]

terça-feira, 15 de maio de 2012

Interrupção


Soube, de rajada, que dois colegas (a H. e o T.) perderam, respectivamente, Pai e Mãe.
Como se sabe, a gente vê na dor dos contemporâneos a nossa própria vida passada, presente e futura.
O meu abraço inútil é toda a utilidade que sou capaz de, neste momento tão triste, oferecer.
É tão grande a Morte e tão pequeninos, em comparação, os nossos pobres suspiros!
Um abraço (cheio desta frágil, patética, humana indignação perante o Fim) para os meus colegas, meus irmãos.
Aqui estou convosco.
Aqui estamos.

Cabeceiras de Basto, 15 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.madalena.blogs.sapo.pt.]

domingo, 13 de maio de 2012

Ponto G


Voltou a falar-se, nos últimos dias, no famoso (e inconsensual) “ponto G”. Apesar dos estudos científicos vindos a lume, continua a haver quem se recuse a crer na real existência dessa zona do corpo feminino.
Como observador atento da questão, tendo a tomar como verdadeiras as conclusões da Ciência. E, sobre o cepticismo remanescente, atrevo-me a dizer: quem diz que o “ponto G” não existe são as más línguas.

Coimbra, 13 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.cantinhodacher.blogspot.com.]

sábado, 12 de maio de 2012

Quadra sobre o género quadras

Gosto de quadras, amor
Por nelas soar tão bem
O momentâneo fulgor
Que às vezes a vida tem.

Coimbra, 12 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (retrato de Antero de Quental) foi colhida, com a devida vénia, na wikipédia.]

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Laurel & Hardy

O dr. Passos Coelho disse, com a solenidade dos inimputáveis, que o desemprego (cito de cor) "não deve ser visto como um estigma, mas sim como uma oportunidade" (abençoada, presumo eu...) "de mudar de vida".
Eu conheço familiares, amigos e conhecidos que estão há muito tempo no limbo trágico do desemprego duradouro - e sinto-me, como é normal, revoltado com este cinismo ignorante. Como quem, preciso, é atacado à traição com um ferro quente.
Não sei se lá no planeta de Marte (ou Vénus, ou Saturno) onde decerto vive o senhor primeiro-ministro, o desemprego é assim coisa tão despicienda e até, valha-nos Deus, virtuosa. Mas pelas ruas que cruzo, aqui na Terra, vê-se uma realidade diferente.
Depois dessa Vacuidade Presumida que foi Sócrates, aparece-nos esta Fábrica de Asneiras e de Irresponsabilidade... Será que, de facto, o PS e o PSD não têm mesmo melhor que "isto" para o país?

Ribeira de Pena, 11 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.ibelieveicanflybells.blogspot.com.]

Instante

Deixei que o olhar, como ave, partisse
Para longe, livre, saísse de si -
Depois escondi-o antes que se visse
A dor de o meu corpo não sair daqui.

Arco de Baúlhe, almoço, 11-05-2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (auto-retrato de Monet) foi colhida em http://www.maguetas,com.]

Noção de indiferença útil

Paulo Ferreira, subdirector do Jornal de Notícias, num texto de opinião publicado neste jornal (“Gabriel, o pensador”, ed. De 10-05-2012, p. 16), cita Jorge Luis Borges:
“Não odeies o teu inimigo porque, se o fazes, és de algum modo seu escravo.”
Odiar dá o seu trabalho, já se sabia. Mas Jorge Luis Borges vai mais longe. E, reconheça-se, tem alguma (muita) razão.
Eu ando há muito tempo a libertar-me, tanto quanto posso, desse fardo pior de todos, o ódio. Estou a especializar-me no que, à falta de outra expressão, designarei por “indiferença estrategicamente aplicada”. Trata-se de uma espécie de homicídio virtual, pois consiste em tornar inexistentes os desprezíveis.
Apesar de morosa, a tarefa a que me propus afigura-se-me, já hoje, promissora e gratificante. Seguramente que me torno mais leve, mais limpo e mais livre.

Arco de Baúlhe, 10 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (de Jorge Luis Borges) foi recolhida, com a devida vénia, em http://www.es.wikipedia.org.]

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Quadra de um príncipe farto de esperar pela sua princesa num cabeleireiro

Minha querida princesa
Não cuide tanto do esmero
Que haver em si mais beleza
É exagero.

Arco de Baúlhe, 10 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.pt.dreamstime.com.]

terça-feira, 8 de maio de 2012

O lugar certo

Dois versos do americano Robert Frost andaram-me na cabeça durante quase todo o dia. Foram uma espécie de avesso desta fúria funcionária que tomou conta da minha terça-feira:

"Earth is the right place for love.
I don’t know where is likely to go better."
Traduzo (livremente):

"A Terra é o lugar certo para o amor.
Outro não conheço para onde irmos."

Deve isto fazer sentido, senhores, porque estes versos são quase tudo quanto me resta da jornada que deixei à porta do prédio.
O nosso mundo não é sempre bom, mas é o nosso. Paciência e esperança, pois.

Ribeira de Pena, 08 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

Tanta gente dentro da literatura e vice-versa

Carlos Eduardo da Maia viaja serenamente, de Paris para Lisboa, num comboio moderno, mal se apercebendo de montes e vales lusos deslocando-se no sentido oposto ao do movimento ferroviário, ou de alguns animais passeando, pachorrentos, naquele ofício (mais olímpico de todos) de se alimentarem sem dar importância ao ruído de pouca-terra-pouca-terra invadindo a manhã. Ao colo do viajante está um livro vermelho, cujo título a donzela do banco em frente lê com dificuldade: Os Maias, acha ela, semicerrando os olhos cheios de mel que onde estivessem eram a luz.
A donzela viaja com a mãe, uma imponente viúva cheia de amargura, que se habituara à virtude católica como a um espartilho e via em toda a vizinhança masculina uma ameaça à imaculada filha. Desconfiava, claro, daquele quarentão elegante, talvez francês ou espanhol.
Carlos regressa a Portugal dez anos depois de uma paixão funesta pela própria irmã haver implodido, com muito escândalo de particulares e um desgosto mortal do avô Afonso. Nas suas pernas um pouco gordas, repousa a já referida narrativa romanceada de toda a sua existência, que o amigo João da Ega, sob o pseudónimo de Eça de Queirós, assim inscrevera já em páginas (ditas) realistas.
A moça acha bonito o cavalheiro do banco fronteiro, tão distinto e saudável, de pele muito clara, bem penteado, com aquelas discretas cãs anunciando a madura idade. Depois, num assomo de íntimo pudor, recolhe o olhar e desiste do flirt. Parece lembrar-se de algo importante, e o sobrevindo recato talvez tenha a ver com aquele bilhete escondido entre as suas finas luvas, que vem acariciando há horas às escondidas da matrona mãe.
A mãe: coitadinha, tão ali cheia de uma flatulência inoportuna e a custo sustida, já vai cedendo à tentação do sono e alterosamente respira ali, de olhos fechados, desmaiados os braços ao longo do oblíquo corpo.
O bilhete: escreveu-o à moça um tal Cesário Verde, filho de comerciantes (segundo ela percebeu), poeta ainda sem fama e, infelizmente, tuberculoso. O rapaz ainda não se esqueceu dela, desde certo pic-nic em Linda-a-Pastora. E a rapariga abençoava, a posteriori, a ideia da mãe que tanto insistira em que fossem ambas àquela reunião social - ali encontrara duas primitas, cinco meninas desconhecidas e desinteressantes (embora barulhentas), alguns rapazes da sociedade, a tia-avó, um duque recém-chegado à política e três senhores com negócios na Bolsa portuense.
A meio da tarde, a mãe zangara-se a valer com a donzela por esta imprudentemente haver saltado do burrico e ter ido colher, ao chão perigoso, algumas papoulas. As primas haviam rido, o duque lamentara, com verbo severo, o impulso juvenil, e a mater-nal matrona gritara com mais volume que graça. Cesário estava na rectaguarda desta cena, molemente burricando em seu caminho, e nele se acendeu uma súbita admiração – a um tempo sensual e metafísica – pela jovem de olhos claros, disto decorrendo mesmo que, pela tarde adiante, esquecido das horas e da tuberculose, se entregou a uma (talvez excessiva) adoração silente.
A mãe apercebeu-se daquele olhar contínuo sobre os vigorosos mundos que o peito da filha citrinamente desenhava. Era bem no vão do jovem decote que ora jaziam algumas das papoulas colhidas – e para lá se desviavam, por isso, os olhos entusiasmados do poeta. Ora, a viúva não se coibiu de rosnar avisos e, apesar de informada pela tia-avó da doença do infeliz olhador, ali murmurou sem piedade, mesmo à chegada ao solar onde jantariam:
- A tuberculose não é desculpa para a pouca vergonha, minha tia! Arre…
Carlos da Maia ajudou aquela mãe e aquela filha a transportarem malas e caixas em Santa Apolónia, estendendo o galante sacrifício até as senhoras encontrarem uma carruagem disponível. Ao contrário do que o romance Os Maias dizia, João da Ega não esperava, naquele dia, o seu amigo Carlos. É que o brilhante iconoclasta deviera embaixador e estava, por essa altura, algures em Cuba, escrevendo ou vivendo outras histórias.
A casa do Ramalhete estava fechada e uma dezena de heras vigorosas atravessavam verticalmente, como selos judiciários, a porta principal, rumo ao céu. Da sua carruagem alugada, a donzela e a matrona mãe viram Carlos (sem o reconhecerem) mirando aquela casa onde estivera para ser feliz, onde fora feliz, onde deixara de ser feliz. Apertando, entre os seus dedos finos, quatro versinhos apenas de um poema a haver, lavrado por aquele admirador tuberculoso, a rapariga suspirou nesse exacto momento em que os cavalos, puxando as rodas, percorriam a estrada fronteira ao Ramalhete. Muito linda, sob a luz matinal de Lisboa, mais falando para si própria do que para a mãe, disse:
- Parece uma casa como aquelas que vemos descritas nos romances…
A mãe respondeu, indiferente:
- É uma casa como as outras…
Do fundo do balcão da loja de ferragens paterna, Cesário retomava já, no intervalo de uma tosse teimosa e seca (muito pouco romântica, convenhamos), a quadra apressadamente oferecida, naquela tarde inesquecível de Linda-a-Pastora, à doce recolectora de papoulas:
Naquele pic-nic de burguesas
Houve uma coisa simplesmente bela…


Ribeira de Pena, 24 de Maio de de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (casa de Cesário) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.ruialme.blogspot.com. Este meu texto foi publicado no Boletim da Biblioteca da Escola Secundária de Cantanhede, em Dezembro de 2011. À semelhança de outros escritos, enviei-o a pedido de uma exemplar colega, a Clara Póvoa, de quem tenho para sempre saudades.]

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Liberdade pequininha

Gosto de não ser daqui
De não pertencer a nenhum lugar
De ser sempre alguém de fora
Encostado à árvore, na margem, vendo o rio
Passar -
Também desta condição incerta, fugidia
Depende a minha inteira liberdade
De ser.
Os meus lugares são, como o Tempo, provisórios
E a minha circunstância é volátil como as sombras
Tremeluzindo ao mínimo capricho da luz
Ou do vento.
Perene, diria eterno, é o meu amor
Por ti.

Vila Real, 06 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.kenwoodtravel.com.]

Confissão por escrito

Apresentei ontem, pelas dez da noite, no Auditório Municipal de Ribeira de Pena, um livro intitulado Hhomens, de Antónia Áurea Ferreira (Lisboa, Ed. Vieira da Silva, 2012). A obra em causa é uma espécie de ramalhete de memórias e de pensamentos-ideias que a autora, uma ribeirapenense radicada em Sintra há já dezasseis anos, reuniu sob a forma sobretudo de pequenas narrativas. Aproveitei a ocasião para, uma vez mais, perorar sobre o imenso poder da literatura – e, em particular, da narrativa – em matéria de ordenação/explicação da vida e do mundo.
A autora só me foi apresentada pessoalmente no exacto momento da cerimónia. Mas disse-lhe, menos a brincar que a sério, na altura de a cumprimentar, que já a conhecia bastante bem. Não era uma piada, não: ficamos a saber muito de alguém que se expõe por centenas de páginas adentro (ainda que sob a capa de episódios e nomes pintalgados de ficção).
Sei do que falo, que eu próprio me sinto, a cada texto escrito-revelado, um frágil devoto na hora transparente da confissão de ser.

Vila Real, 06 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho


As time goes by


Minha mãe, dói-me o destino
De o tempo nunca parar –
Quem me dera ser menino
Para sempre ao pé do mar!

Vila Real, 06 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (belíssimo trabalho assinado por Angela Fey) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.angela fey.wordpress.com.]

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Necessidades comunicativas especiais

No porteiro, no taxista, na mulher enganada
Na criança, no poeta, no homem a morrer
Há esta urgência incontrolada
De tudo dizer.

Ribeira de Pena, 04 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem é a da capa de Mares do Sul, de Manuel Vásquez Montalbán, obra que é muito mais do que um romance policial e por andam – mais ou menos - as personagens desta minha quadra.]

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Coisa filha da outra

O senhor Valter apareceu na televisão, durante a marcha do 1.º de Maio. Interrogado sobre o significado da data, afirmou:
- O significado depende dos olhos de quem vê o mundo e do coração. Eu tenho a mania de acreditar que devemos revoltar-nos contra a exploração e a injustiça.
Um colega do funcionário veio dizer-lhe, no dia seguinte, com prudentes mesuras e delicada moderação vocal, que o chefe do serviço gostava pouco de livres pensadores. Queria juízo, equilíbrio, respeitinho.
O destinatário do recado ficou a matutar e, após alguns minutos de sofrida reflexão, escreveu e afixou, numa vitrina junto ao seu guichê de trabalho, o seguinte anúncio:
"Aviso toda a gente, incluindo quem por acidente legal é meu superior hierárquico, que a minha dignidade não está à venda."
Por baixo, havia ainda duas linhas ilegíveis, disfarçadas com um borrão de tinta. Um carteiro, amigo do senhor Valter desde a infância, assim invisibilizara a última afirmação produzida, que era:
"A intolerância é filha da ignorância. Puta que a pariu!"
À tardinha, riram-se ambos do episódio, entre duas cervejas e alguns bocadinhos de queijo.

Ribeira de Pena, 03 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.noticias.sapo.pt.]

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Noção de pureza

O senhor Valter sabia que o quiosque da praça mudara de gerência. O Nocas Bifanas (assim chamado, em parte, devido à sua experiência profissional anterior, na área das sandes e da cerveja, com roulotte à altura da empresa) partira para Santarém, dizia-se que por motivos passionais, e o negócio dos jornais e das revistas ficara sem dono. No início de Abril, em passeio com a esposa pelas imediações do mercado, o funcionário dos correios viu a nova proprietária e sentiu um sobressalto sísmico de considerável dimensão: era a Nelinha, namorada dos tempos do Liceu José Falcão, e estava talvez mais linda do que nunca, embora (notou) mais gordinha.
Assim que pôde, lá foi comprar o Jornal de Notícias e, fingindo surpresa, gritou:
- Nelinha! Tu?...
A mulher reconheceu-o também, mas o coração feminino, se o avaliássemos pelo calor morno da resposta, parecia não corresponder exactamente ao entusiasmo do namorado antigo.
- Olá, Valter. Como estás?
À hora do almoço, por uns quinze minutos, souberam de novas recíprocas: Valter falou à senhora do emprego repetido, da ausência de descendência, da querida foca que tivera em casa; Nelinha disse-lhe tudo do seu divórcio (por culpa, dixit, de uma farmacêutica com menos dez anos do que ela), da doença da mãe, de dois filhinhos em França, da dieta que experimentava desde há dois meses.
A dona Gracinda bem notou a evidente felicidade do marido nas semanas seguintes. A Valter custava-lhe, apesar de tudo, admitir que estava apaixonado, mas então que era aquilo – os suspiros, a paz universal que os seus olhos viam, a lágrima fácil perante a humanidade mais comezinha, as saudades a cada quarto de hora da dona do quiosque, aquele escandaloso bom humor no trabalho, a paciência misteriosa contra as habituais recriminações da esposa?
Por isso lhe custou muito saber que a Nelinha, nem três meses depois daquela manhã de Abril, abandonaria o negócio herdado do Nocas Bifanas e partiria, hélas, para França. Pior: ela própria lhe disse, com a candura das almas boas, que na origem principal da sua súbita emigração estava o ex-marido, entretanto feito sócio dos filhos e já livre da loira da farmácia.
Na última conversa, o funcionário dos correios confessou:
- Cheguei a pensar que haveria algo entre nós, Nelinha…
Ela respondeu-lhe com uma simplicidade desarmante:
- E tivemos. Só faltou irmos para a cama, homem…
Acendeu-se no funcionário a esperança de que talvez a coisa, depois de verbalizada, pudesse afinal – ainda – concretizar-se.
- Mas isso resolve-se – disse, pois, como se brincasse.
Ela retorquiu, solenemente:
- Não, Valter. O nosso amor há-de ser sempre uma coisa de liceu. Mãos, olhos e mais nada.
Ele suspirou. A Nelinha prosseguiu, comovida:
- É uma coisa espiritual, percebes? Nós os dois somos puros, virgens…
Valter permitiu-se, então, uma observação em tom brejeiro:
- Virgens? Tu e eu? Achas mesmo que sim, Nelinha?
Mas ela concluiu, grave, como se recitasse um poema:
- Virgens um para o outro.

Ribeira de Pena, 02 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.newsletter.com-lisboa.pt, e depois ligeiramente trabalhada por mim.]

terça-feira, 1 de maio de 2012

Reconhecimento e novidade

Recebi um email do Daniel Abrunheiro, poeta maior do meu tempo, com um poema de Luiza Neto Jorge intitulado "Cidades do Sul" Ei-lo:
Nas cidades do sul
há violência e há excesso,
de semente.
Estalam os rios e foge a água.
O corpo, encortiçado, racha.

Lendas vêm de há séculos assoreando
as margens.
E quando à boca de um poço vamos
provar o nosso eco,
águas puras irrompem,
noutra língua.

É tudo aqui certo e profundo, mas uma imagem em particular me fere, tamanha é a violência da beleza e da inteligência ditas: "à boca de um poço vamos / provar o nosso eco, / [e] águas puras irrompem / noutra língua." Creio que há aqui um tratado essencial sobre a memória, a escrita, a leitura, a vida. Todos partilhamos o mesmo poço, sim - mas para nele reconhecermos, afinal, a individualidade única que cada pessoa (cada um de nós) é. E a expressão do que individualmente somos é, embora originária desse veio comum, algo sempre novo, matéria consubstancial a cada eu.
Isto é: na literatura, nos amores, na vida - é tudo sempre a mesma coisa, e nunca é (mas nunca é) a mesma coisa.
Ao poço circunstancial de Luiza Neto Jorge fui-vos eu agora buscar este meu eco, senhores.

Ribeira de Pena, 01 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.poetasportuguesesseculoxx.wikispaces.com.]