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Número de Ondas

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Noção de pureza

O senhor Valter sabia que o quiosque da praça mudara de gerência. O Nocas Bifanas (assim chamado, em parte, devido à sua experiência profissional anterior, na área das sandes e da cerveja, com roulotte à altura da empresa) partira para Santarém, dizia-se que por motivos passionais, e o negócio dos jornais e das revistas ficara sem dono. No início de Abril, em passeio com a esposa pelas imediações do mercado, o funcionário dos correios viu a nova proprietária e sentiu um sobressalto sísmico de considerável dimensão: era a Nelinha, namorada dos tempos do Liceu José Falcão, e estava talvez mais linda do que nunca, embora (notou) mais gordinha.
Assim que pôde, lá foi comprar o Jornal de Notícias e, fingindo surpresa, gritou:
- Nelinha! Tu?...
A mulher reconheceu-o também, mas o coração feminino, se o avaliássemos pelo calor morno da resposta, parecia não corresponder exactamente ao entusiasmo do namorado antigo.
- Olá, Valter. Como estás?
À hora do almoço, por uns quinze minutos, souberam de novas recíprocas: Valter falou à senhora do emprego repetido, da ausência de descendência, da querida foca que tivera em casa; Nelinha disse-lhe tudo do seu divórcio (por culpa, dixit, de uma farmacêutica com menos dez anos do que ela), da doença da mãe, de dois filhinhos em França, da dieta que experimentava desde há dois meses.
A dona Gracinda bem notou a evidente felicidade do marido nas semanas seguintes. A Valter custava-lhe, apesar de tudo, admitir que estava apaixonado, mas então que era aquilo – os suspiros, a paz universal que os seus olhos viam, a lágrima fácil perante a humanidade mais comezinha, as saudades a cada quarto de hora da dona do quiosque, aquele escandaloso bom humor no trabalho, a paciência misteriosa contra as habituais recriminações da esposa?
Por isso lhe custou muito saber que a Nelinha, nem três meses depois daquela manhã de Abril, abandonaria o negócio herdado do Nocas Bifanas e partiria, hélas, para França. Pior: ela própria lhe disse, com a candura das almas boas, que na origem principal da sua súbita emigração estava o ex-marido, entretanto feito sócio dos filhos e já livre da loira da farmácia.
Na última conversa, o funcionário dos correios confessou:
- Cheguei a pensar que haveria algo entre nós, Nelinha…
Ela respondeu-lhe com uma simplicidade desarmante:
- E tivemos. Só faltou irmos para a cama, homem…
Acendeu-se no funcionário a esperança de que talvez a coisa, depois de verbalizada, pudesse afinal – ainda – concretizar-se.
- Mas isso resolve-se – disse, pois, como se brincasse.
Ela retorquiu, solenemente:
- Não, Valter. O nosso amor há-de ser sempre uma coisa de liceu. Mãos, olhos e mais nada.
Ele suspirou. A Nelinha prosseguiu, comovida:
- É uma coisa espiritual, percebes? Nós os dois somos puros, virgens…
Valter permitiu-se, então, uma observação em tom brejeiro:
- Virgens? Tu e eu? Achas mesmo que sim, Nelinha?
Mas ela concluiu, grave, como se recitasse um poema:
- Virgens um para o outro.

Ribeira de Pena, 02 de Maio de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.newsletter.com-lisboa.pt, e depois ligeiramente trabalhada por mim.]

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