Carlos Eduardo da Maia viaja serenamente, de Paris para Lisboa, num comboio moderno, mal se apercebendo de montes e vales lusos deslocando-se no sentido oposto ao do movimento ferroviário, ou de alguns animais passeando, pachorrentos, naquele ofício (mais olímpico de todos) de se alimentarem sem dar importância ao ruído de pouca-terra-pouca-terra invadindo a manhã. Ao colo do viajante está um livro vermelho, cujo título a donzela do banco em frente lê com dificuldade: Os Maias, acha ela, semicerrando os olhos cheios de mel que onde estivessem eram a luz.
A donzela viaja com a mãe, uma imponente viúva cheia de amargura, que se habituara à virtude católica como a um espartilho e via em toda a vizinhança masculina uma ameaça à imaculada filha. Desconfiava, claro, daquele quarentão elegante, talvez francês ou espanhol.
Carlos regressa a Portugal dez anos depois de uma paixão funesta pela própria irmã haver implodido, com muito escândalo de particulares e um desgosto mortal do avô Afonso. Nas suas pernas um pouco gordas, repousa a já referida narrativa romanceada de toda a sua existência, que o amigo João da Ega, sob o pseudónimo de Eça de Queirós, assim inscrevera já em páginas (ditas) realistas.
A moça acha bonito o cavalheiro do banco fronteiro, tão distinto e saudável, de pele muito clara, bem penteado, com aquelas discretas cãs anunciando a madura idade. Depois, num assomo de íntimo pudor, recolhe o olhar e desiste do flirt. Parece lembrar-se de algo importante, e o sobrevindo recato talvez tenha a ver com aquele bilhete escondido entre as suas finas luvas, que vem acariciando há horas às escondidas da matrona mãe.
A mãe: coitadinha, tão ali cheia de uma flatulência inoportuna e a custo sustida, já vai cedendo à tentação do sono e alterosamente respira ali, de olhos fechados, desmaiados os braços ao longo do oblíquo corpo.
O bilhete: escreveu-o à moça um tal Cesário Verde, filho de comerciantes (segundo ela percebeu), poeta ainda sem fama e, infelizmente, tuberculoso. O rapaz ainda não se esqueceu dela, desde certo pic-nic em Linda-a-Pastora. E a rapariga abençoava, a posteriori, a ideia da mãe que tanto insistira em que fossem ambas àquela reunião social - ali encontrara duas primitas, cinco meninas desconhecidas e desinteressantes (embora barulhentas), alguns rapazes da sociedade, a tia-avó, um duque recém-chegado à política e três senhores com negócios na Bolsa portuense.
A meio da tarde, a mãe zangara-se a valer com a donzela por esta imprudentemente haver saltado do burrico e ter ido colher, ao chão perigoso, algumas papoulas. As primas haviam rido, o duque lamentara, com verbo severo, o impulso juvenil, e a mater-nal matrona gritara com mais volume que graça. Cesário estava na rectaguarda desta cena, molemente burricando em seu caminho, e nele se acendeu uma súbita admiração – a um tempo sensual e metafísica – pela jovem de olhos claros, disto decorrendo mesmo que, pela tarde adiante, esquecido das horas e da tuberculose, se entregou a uma (talvez excessiva) adoração silente.
A mãe apercebeu-se daquele olhar contínuo sobre os vigorosos mundos que o peito da filha citrinamente desenhava. Era bem no vão do jovem decote que ora jaziam algumas das papoulas colhidas – e para lá se desviavam, por isso, os olhos entusiasmados do poeta. Ora, a viúva não se coibiu de rosnar avisos e, apesar de informada pela tia-avó da doença do infeliz olhador, ali murmurou sem piedade, mesmo à chegada ao solar onde jantariam:
- A tuberculose não é desculpa para a pouca vergonha, minha tia! Arre…
Carlos da Maia ajudou aquela mãe e aquela filha a transportarem malas e caixas em Santa Apolónia, estendendo o galante sacrifício até as senhoras encontrarem uma carruagem disponível. Ao contrário do que o romance Os Maias dizia, João da Ega não esperava, naquele dia, o seu amigo Carlos. É que o brilhante iconoclasta deviera embaixador e estava, por essa altura, algures em Cuba, escrevendo ou vivendo outras histórias.
A casa do Ramalhete estava fechada e uma dezena de heras vigorosas atravessavam verticalmente, como selos judiciários, a porta principal, rumo ao céu. Da sua carruagem alugada, a donzela e a matrona mãe viram Carlos (sem o reconhecerem) mirando aquela casa onde estivera para ser feliz, onde fora feliz, onde deixara de ser feliz. Apertando, entre os seus dedos finos, quatro versinhos apenas de um poema a haver, lavrado por aquele admirador tuberculoso, a rapariga suspirou nesse exacto momento em que os cavalos, puxando as rodas, percorriam a estrada fronteira ao Ramalhete. Muito linda, sob a luz matinal de Lisboa, mais falando para si própria do que para a mãe, disse:
- Parece uma casa como aquelas que vemos descritas nos romances…
A mãe respondeu, indiferente:
- É uma casa como as outras…
Do fundo do balcão da loja de ferragens paterna, Cesário retomava já, no intervalo de uma tosse teimosa e seca (muito pouco romântica, convenhamos), a quadra apressadamente oferecida, naquela tarde inesquecível de Linda-a-Pastora, à doce recolectora de papoulas:
Naquele pic-nic de burguesas
Houve uma coisa simplesmente bela…
Ribeira de Pena, 24 de Maio de de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (casa de Cesário) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.ruialme.blogspot.com. Este meu texto foi publicado no Boletim da Biblioteca da Escola Secundária de Cantanhede, em Dezembro de 2011. À semelhança de outros escritos, enviei-o a pedido de uma exemplar colega, a Clara Póvoa, de quem tenho para sempre saudades.]
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