Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Primavera à espera



Ei-lo, o Inverno violento -
Fere-nos a fria natureza
Afoga-nos a chuva, o vento
Magoa-nos sem delicadeza.

Não podes tu senão esperar
A vinda outra vez da Primavera.
A mim, se vires quase chorar
Sabe que também estou à espera

Do Sol que nos salva do Inverno:
Vigio cada chão e cada flor
Anoto quanto vejo em meu caderno

Cada nova forma, cada cor.
E se sinto luz num beijo terno
Chamo Primavera ao meu amor.

Ribeira de Pena, 16-12-2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.visitmosca.com.]

ZONA DE PERECÍVEIS (67)



Conhecimento de causa(s)
 Em Retrato do artista enquanto jovem, James Joyce apresenta-se-nos como estudante de um Colégio de Jesuítas, o melhor aluno da sua geração, que obtém – ao longo dos anos de estudo – as mais altas classificações e os mais sentidos louvores de seus mestres e condiscípulos. Chegado o momento da (mui provável) ordenação, comentava-se: que extraordinária figura da Igreja deviria este rapaz, tão profundamente versado já nos segredos da Fé! Que carreira decerto o esperava! Aconteceu, contudo, que o jovem, em vez de confirmar as expectativas à sua volta, disse que não queria ser ordenado. Pior: revelou não acreditar naquilo que a Igreja postulava (conteúdo, forma, rituais). Mas então – contrapunham desconcertadamente os professores, os colegas, os familiares – para que fora tanto estudo e dedicação, e de que servira obter tão elevadas classificações nas múltiplas provas realizadas? O rapaz respondeu-lhes que estudara muito bem tudo quanto era e significava a Igreja para perceber bem o que era e significava a Igreja; que chegara a hora de, com a autoridade de quem comprovadamente sabia do assunto, lhes dizer que não acreditava nos pressupostos, na lógica e nos objectivos da instituição milenar. E, já agora, que ele não tinha fé.
Eu conheci, nos tempos da faculdade, um moço (salvo erro, de Geografia) que fez o exigentíssimo curso dos comandos. Fê-lo, ainda por cima, como voluntário. Passou nos testes preliminares, fez a instrução toda, ultrapassou as variegadíssimas dificuldades de que, só de ouvir dizer, suspeitamos, venceu o sono, a fome, a sede, a fadiga extrema e os fantasmas mais arrepiantes da mente humana. Quando chegou o dia, normalmente glorioso, de receber a boina vermelha, símbolo consabido da condição – adquirida, plena, conquistada – de comando, um graduado fez-lhe a pergunta protocolar (gloso-a de cor): “Aceitas a boina?” Ele respondeu, com a maior desfaçatez, que não. Mas então – contrapuseram oficiais e sargentos, camaradas de curso, familiares, amigos – para que fora e servira tanto esforço e tanta dedicação, se agora recusava os justos louros da cumprida empresa? O jovem disse-lhes, com candura insuportável: “Queria ver se era capaz, mas percebi que isto, para mim, não tem lógica, razão de ser, valor. Não quero.”
Há menos de uma semana, reencontrei um companheiro antigo, dos tempos do futebol coimbrinha. A gente conhecia-o pelo fervor com que militava numa certa juventude partidária: sabia tudo sobre datas de congressos e convenções, eleições, listas de candidatos a isto e àquilo do partido, seus concorrentes eventuais à presidência da jota, etc. Dizíamos, mais com amizade do que com ironia, que ele ia longe. Ele não foi longe, politicamente; mas licenciou-se, tem um emprego agradável, mulher, filhos, corre no Choupal com o cão e ainda tem os pais vivos. Diz-se feliz e assegura que aquilo das jotas é uma ilusão e uma falsidade (ilusão e falsidade juvenis, treino para a ilusão e falsidade adultas). Não me deixa aprofundar as causas do desencanto e do asco: “Eu sei do que falo, Quim!”
E eu, caros leitores, vou sabendo um bocadinho do que escrevo.
Coimbra, 15 de Dezembro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 17-12-2016.]

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (66)



Uma colher de prosa
Em parceria com a CPCJ (Comissão de Protecção de Crianças e Jovens) de Cabeceiras de Basto, a minha Escola assinalou, em finais de Novembro, a importância de prevenir e atacar as agressões sobre mulheres. Coincidiu o facto de, na leitura matutina do JN (edição de 25-11, página 22), ter ficado a saber que “a GNR de Braga actuou em mais de mil crimes de violência doméstica nos primeiros dez meses do corrente ano”.
Deixei que o assunto tomasse conta de parte da minha aula de Português, comovido com o interesse dos alunos do meu 7.º ano de escolaridade. Disse-lhes que se trata de um flagelo (expliquei-lhes o que é um flagelo); que só há pouco tempo passou a tratar-se trata de um crime público (o Z.M. perguntou-me: “Mesmo que a polícia soubesse, o gajo não ia para a prisão?”); que a melhor – a única – maneira de reagir à primeira agressão do namorado ou do marido é deixá-lo de vez; que é pior se o agressor tiver oportunidade de agredir novamente, porque se passará a sentir dono da vítima, capaz de matar para proteger, no futuro, a sua “propriedade”; que tenho uma Filha e que já lhe disse o que agora lhes dizia a eles (“É como se nós também fôssemos seus filhos”, disse a T.C., e ninguém se riu).
Depois, o V.L. disse que também havia homens agredidos pelas mulheres e que alguns até tinham vergonha de se queixar. Entre gargalhadas, o S.M. disse que nunca bateria numa mulher, mas que também não a deixaria “molhar a sopa” nele. A T.C., que é uma inteligência admirável, disse que os homens, nestes casos, estavam “entre a espada e a parede”, pois não podiam bater nelas por ser uma cobardia, nem podiam queixar-se à polícia para evitar o ridículo.
O C.C. achou que esse problema, comparado com o das mulheres, era “uma gota no oceano”, já que a maioria das agressões caía sobre as desgraçadas das namoradas ou das esposas.
Eu tinha de falar dos graus dos adjectivos e procurei rematar o debate, sublinhando a necessidade de rapazes e raparigas estarem alerta para as ameaças de que faláramos. Relembrei-lhes a importância (vital) da “tolerância zero” para com os agressores. Acordei-os para a indignidade daquela frase antiga – “entre marido e mulher, não metas a colher”.
A T.C. ainda se saiu com esta: “Se a pessoa tolera, depois já não pode fazer nada.” Eu contrapus: é sempre tempo de (re)agir, de fugir da companhia de uma besta violenta. Ela retorquiu-me (com a evidente concordância de muitos dos seus colegas): “Mas depois pode haver filhos e a mulher já aguenta tudo por causa deles…”
Eu não desisti de uma conclusão optimista e insisti: os filhos não são felizes num contexto de constantes ameaças e agressões à Mãe. E obriguei-os (digamos assim) a prometer-me que, agora e sempre, se recusariam à escravatura da resignação e do medo. Lancei-lhes uma pergunta (quase retórica): “De acordo?” 
Obtive algumas (raras) respostas murmuradas: “De acordo.”
Mas o que se ouvia mais, nessa hora epilogal, era o mutismo muito circunspecto daquelas meninas e daqueles meninos. Que histórias domésticas (interrogo-me) haverá por detrás desse silêncio? Que dramas? 

Vila Real, 04 de Dezembro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 08-12-2016.]

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (65)




Criadores, criaturas e criados
 
Certa figura pública (aliás, certo figurão com grande notoriedade mediática) terá publicado – dizia-se, diz-se – livros cuja autoria real coube a outra pessoa. A ser verdade, o episódio acrescenta à criatura objectivas razões para a nossa repulsa e o nosso nojo moral. Com efeito, ter um livro publicado que, afinal, não escrevemos, para além do óbvio ridículo, é um sintoma de profundíssima patologia: significa o absoluto desprezo pela verdade e, em particular, pela ideia de talento. O medíocre, incapaz de criar, compra e exibe como sua a arte alheia. Que fenómenos haverá nas catacumbas da consciência do vigarista, de cada vez que alguém lhe dá palmadinhas nas costas e o felicita pela “sua” obra?
O pior dos cenários é o falso autor desvalorizar esses quaisquer rebates de consciência que, numa pessoa normal, decerto haveria. Os remorsos, na perspectiva dos cínicos incuráveis, são manifestações de fraqueza. Discípulos de Maquiavel, recusam-se a ver imoralidade no que fazem e são perigosos, naturalmente, pois a amoralidade é, a par dos fundamentalismos mais primários, a pior ameaça dos nossos dias.
O caso de quem vende o seu talento académico-literário, abdicando da paternidade oficial do trabalho realizado, é igualmente merecedor de reflexão. Será que todo o dinheiro do mundo compensa a frustração (concomitante ou deveniente) de ver outrem a colher os louros do nosso esforço? Na verdade, creio que a situação é ainda mais hedionda: apetece-me comparar esta gente aos pais que vendem os filhos. Talvez haja neste universo misterioso dos ghost writers, quando vistos à mesma luz dos pseudo-escritores, uma simétrica amoralidade. (Ou então, na mais mirabolante e bondosa das hipóteses, uma santíssima abdicação da ribalta.)
Se, por hipótese, um grande escritor - amado e consagrado escritor - me viesse pedir que lhe vendesse (a preço de ouro) um simples poema da minha autoria, saberia nesse instante que ele não era, de facto, grande, nem amável, nem digno de sagração. E eu ficaria com o meu poema. Sem o seu dinheiro. Essencialmente rico, portanto.
 
Vila Real, 25 de Novembro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 01-11-2016.]

Café do Perestrelo (Machico, Madeira) - ou o que é a Felicidade



Perguntas: A felicidade, o que é?
Certa vez (digo eu) num Café...

Histórias, não (dizes), um conceito
Que possas explicar e eu percebê-lo.
Respondo: um momento perfeito –
Eu no Café do Perestrelo.

Está a bica, o jornal, o Sol brilhando
Tu pensando em mim onde estiveres
A rua da Árvore guardando
O voo andarilho das mulheres;

Ao fundo, a praia perto, o Mar
Inquietações de barcos, pescadores
Turistas ocupados a guardar
Mil cheiros, mil formas e mil cores.

E tudo ser meu completamente
No cósmico instante d’existir!
Ó serena exaltação desse Presente!
Ó alegre juventude d’existir!

Perguntas: a felicidade, o que é?
Respondo: eu, certa vez, num Café...


Vila Real, 27 de Novembro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, na net.]

 

ZONA DE PERECÍVEIS (64)




Dinis para o povo

Ando, desde Junho do corrente ano, a divulgar o meu livro Júlio Dinis – As Pupilas do senhor escritor, versão (mais elegante) de um trabalho académico sobre o autor de A Morgadinha dos Canaviais.
Comigo, já tive amigos e conhecidos em Ribeira de Pena, Coimbra, Ovar e Cabeceiras de Basto. Em cada apresentação, tenho tentado explicar o meu amor pela literatura e, em concomitância ilustrativa, o enlevo provocado por Júlio Dinis a um menino de dez anos, sedento de histórias (sedento de mundo) e já irremediavelmente apaixonado por esse objecto para sempre extraordinário – o livro.
Nestas ocasiões, tenho confessado (sem orgulho no relato feito) que, pouco depois da conclusão do ensino primário, roubei um exemplar de As Pupilas do Senhor Reitor, retirando-o veladamente de um escaparate. O crime ocorreu em plena baixa coimbrã, a meio da manhã, junto ao quiosque onde minha Mãe comprava a Crónica Feminina: usando como luva o jornal A Bola (à época, um trissemanário gigantesco em tamanho e em qualidade literária), libertei o romance da mola aprisionadora e trouxe-o entre as notícias do campeonato de futebol de 1973. Perante o facto consumado (roubo e vaidade desavergonhada do relato), a minha Mãe pregou-me uma bofetada sonora e garantiu-me que, na próxima oportunidade, devolveria o livro ao dono. Nunca se cumpriu essa promessa. Mas eu formei-me em Letras, fiz pós-graduações, mestrado e doutoramento – e defendi, em Julho de 2011, uma tese intitulada Acção, Cenas e Personagens na Narrativa Dinisiana – As Pupilas do Senhor Escritor. Acreditei (acredito) que assim paguei a dívida à minha progenitora (não, hélas, a que eternamente me ficou para com o dono do quiosque).
Poupo os meus leitores à revisitação do conteúdo essencial da dissertação, mas trago para a crónica um sumário fundamental: que há no fenómeno da literatura (e, em particular, no da narrativa) real interesse e real utilidade; que a literatura nos ajuda a organizar/verbalizar/tornar visível - sob a forma de palavras, i.e., de vida(s) – o que, de outro modo, seria menos claro, menos gratificante, menos lindo. E ainda: que, na escolha do cânone escolar para o ensino básico e secundário (selecção de autores e obras a estudar, no contexto da educação literária e no da aquisição de hábitos e gosto de leitura), nem sempre as eminências & reverências & excelências da universidade têm razão. Há alguns nomes que, não obstante o relativo desprezo a que são votados, são mais indicados pela sua leveza, pela sua graça, pela sua simplicidade, pela sua amabilidade, pela sua eficácia narrativa. [Não confundir, por favor, leveza, graça, simplicidade, amabilidade e eficácia com vulgaridade ou banalidade!]
Um Amigo, que fez o favor de apresentar o meu livro em Ovar, usou uma forma lapidar para a enunciação desta acessibilidade ideológico-fruitiva da obra dinisiana – disse que Júlio Dinis escreveu “para o povo”.
O povo leitor somos (todos) nós, os mais ou os menos instruídos, os dotados de maior ou de menor conhecimento vocabular e sintáctico. E isto de se amar a literatura à roda de um mesmo autor, cujo génio foi (é), por natureza, avesso a rótulos cómodos ou fáceis (um autor que apenas quis contar histórias, de forma simples, elegante e clara), não será coisa de somenos.
Eu tinha dez anos e vi aquele livro de capa azul no escaparate de um quiosque, preso por uma mola. Libertei-o da prisão e trouxe-o comigo para sempre. Tirando o pormenor – lamentável - do roubo, foi (sei-o hoje) um acto de liberdade e de amor.
 
Coimbra, 20 de Novembro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 24-11-2016.]

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (63)



Notícias da inactualidade
 
No ano de 1933, aí pelas oito da manhã, é possível que um casal alemão, ele e ela na idade sensata dos 40-50 anos, tenha adivinhado o horror iminente, no seu país e no mundo. Um homem que culpava as nações vizinhas pela crise alemã, que acusava uma raça da maiúscula Culpa de todos os males do planeta, que desprezava os direitos humanos, que ameaçava tudo & todos com perseguições e guerra em nome do nacionalismo mais primário, fora eleito.
Um belo livro de Bernard Schlink (O Leitor, Ed. ASA) explica o escândalo da eleição com um argumento pertinente, mas não completamente verdadeiro: ignorância e analfabetismo do povo alemão. Mas sabe-se que a ideologia nazi granjeou, à época, na Alemanha e em vários países ocidentais, adeptos muito bem informados. Houve políticos, militares, professores, artistas, filósofos, cidadãos pobres e ricos que aderiram às causas mais bárbaras e demenciais do Partido do Führer – e diligentemente participaram no genocídio deveniente, no esforço de guerra contra os outros países, na perseguição aos que, por não serem capazes de não pensar livremente, punham em causa o unanimismo da máquina nazi.
Um casal de alemães, dizia eu, aí pelas oito da manhã do dia seguinte às eleições, terá previsto o horror. Ele talvez tenha dito: “Nunca mais de lá o tiram!” E ela talvez tenha dito: “É melhor não falares em voz alta. Ainda te chamam comunista, ou judeu, ou traidor…”
Este casal residia (ficciono eu) num bairro popular de Berlim, onde conviviam, até aos primeiros anos da década de 30 do século XX, os ricos, os remediados e os pobres. Entre eles, haveria um homem que, por estar desempregado e ter a cargo um filho doente (vítima de gases na Primeira Grande Guerra), cantava agora a plenos pulmões uma cantiga xenófoba. E haveria uma mulher que, recentemente despedida de uma alfaiataria de um judeu, exaltava agora publicamente o orgulho de ser “uma verdadeira alemã”. E haveria quem, por não acreditar em ninguém, tomava agora por boa aquela alternativa ruidosa ao que fora, até aí, o seu mundo. E haveria ainda quem, por preguiça ou medo, fingisse acreditar no clichê anti-políticos muito em voga por ali – “que eram todos iguais, que tanto fazia um como outro, que tudo ficaria na mesma independentemente do que cada um votasse”.
Depois, foi o que se sabe. A verdade está nos livros de História, não obstante as dúvidas do inefável senhor Le Pen (pai daquela Marine que se prepara para ser presidente da França). 
 
PS: Era para escrever sobre a eleição de Donald Trump, mas já não há tempo. 
 
PPS (Nota aniversária): O Ribatejo faz 31 anos. Do lugar de onde o vejo, este jornal afigura-se-me o contrário daquele Berlim da minha crónica. Tem sido mesmo um orgulho escrever para este País de Liberdade que é O Ribatejo, sob a brilhante e sempre calorosa orientação do nosso Director, Joaquim Duarte. Parabéns, Companheiros, & muitos anos de vida! 
 
Ribeira de Pena, 11 de Novembro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 17-11-2016.]

terça-feira, 15 de novembro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (62)


Ir à bola com Assis Pacheco
 Esta crónica começa com um fait-divers: houve um polaco que, quando médicos e família já desesperavam, saiu do coma. O que alegadamente o devolveu ao mundo foram os golos de Cristiano Ronaldo, relatados por (creio) um locutor de Varsóvia.
Esta notícia contraria o que, nos anos 70 do século XX, era habitual ouvirmos sobre o futebol. Isto: que, como a religião e o fado, a bola servia para adormecer o povo, distraí-lo das questões verdadeiramente importantes.
Custou-me muito, na primeira adolescência, casar a paixão pelo futebol com as minhas convicções antifascistas. O meu vizinho Chico, que era (e é) benfiquista fervoroso, andou uns meses a falar-me nos três efes do fascismo – Fátima, Fado, Futebol. Já o meu Pai, pouco dado a fundamentalismos e com o gozo de, enquanto sportinguista, o contrariar, dizia-lhe que havia outro efe ainda mais relevante, fonte de prazer egoísta e garante da demografia pátria. Riam-se os dois e talvez eu, por instantes, julgasse que aludiam à palavra Felicidade.
De qualquer modo, sempre achei que o meu amado futebol valia muito mais que aquele labelo circunstancial. Nem de propósito, tive a oportunidade de reler, no passado (saudoso) Agosto, um livrinho de Fernando Assis Pacheco, intitulado Memórias de um craque. Trata-se de um conjunto de textos que aquele jornalista e escritor escreveu para o Record, há uns 40 anos, e que eu me lembro de, in illo tempore, mui gratamente devorar. Num dos capítulos-crónicas, ele lembra a saga da Académica de Coimbra até à final da taça, no Jamor, no ano heróico de 1969. Solidários com os colegas da universidade, os jogadores e os adeptos da Briosa ensaiaram, à época, uma espécie de 25 de Abril temporão, exemplar grito pela liberdade, pela educação e pela justiça. Ora, tal como na historieta do polaco ressuscitado, aqui o futebol serviu, não de manhoso embalo para o esquecimento, mas de despertador. No caso daqueles verdes anos coimbrões, de despertador – atenção ao adjectivo - ético.
Nota final: Fernando Assis Pacheco era, ao contrário de quem vo-lo recorda, adepto da Académica de Coimbra (eu sou do União) e do Benfica (eu sou do Sporting). Mas amava, semelhantemente a este pobre escriba, a futebol, a liberdade, os amigos e a língua portuguesa.


Vila Real, 06 de Novembro de 2016.
 Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 1º-11-2016.]

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (61)

João Lobo Antunes (De profundis)

A morte do médico-investigador-cientista-escritor João Lobo Antunes foi dignamente assinalada pelos média portugueses. Li e ouvi testemunhos de muita gente, a uma voz lamentando a perda do homem-amigo-cidadão. Desse coro resulta a imagem de um Português consensual, estimado e admirado para lá do ruído político-partidário, a salvo da espuma medíocre das tricas e invejas da vidinha. 
Eu gratamente contribuo para esta unanimidade invulgar- Habituei-me a reconhecer a elegância deste compatriota sereno, culto, viajado. Retive, entre discursos, entrevistas e textos de opinião, um prefácio que escreveu para o livro De Profundis, Valsa Lenta, de José Cardoso Pires. Sublinhava, nessa espécie de ensaio, o valor literário e científico daquela obra do escritor consagrado e, por acidente do destino, seu doente. A Valsa Lenta relata, de forma tão precisa que dói ao ler, a doença do autor de O Delfim, o qual subitamente se perdeu de si, tornando-se incapaz de reconhecer pessoas, coisas e objectos, de verbalizar pensamentos ou emoções, de comunicar. (A este fenómeno, os cientistas chamam, salvo erro, “afasia”.) 
Lobo Antunes, para além da estética fruição do testemunho de Cardoso Pires (que entretanto ainda teve tempo de reaprender a linguagem e pôde, assim, explicar, na sua tão limpa prosa, aquela sua saga radical), deu-se conta do tesouro médico-científico da obra: era, como bem esclareceu, uma maneira de leigos e especialistas visitarem, guiados pela luz do escritor, o corredor misterioso e tenebroso da consciência, da profunda Vida. 
Mas o que eu queria sublinhar, acima de tudo, na revisitação deste elogio nacional a João Lobo Antunes, era a gratidão de tantos cidadãos pelo (seu) médico. Desde menino que vejo, nos profissionais de saúde, uma espécie de anjos em missão terrena. Entregamos-lhes a nossa vida e inteiramente confiamos nos seus conhecimentos e nas suas capacidades (como, em devido tempo, fizemos com os nossos pais). Se a esta competência científico-profissional calha acrescentar-se a simpatia, a generosidade, o humanismo – que remédio senão vê-los como seres verdadeiramente maiores e exemplares, merecedores de todos os encómios e agradecimentos? 
Era para vos falar de uma médica bruta e irresponsável, uma avantesma com quem me cruzei há cerca de um ano, num centro de saúde do interior. Escuso de o fazer, assim ganhando - eu, a crónica e os leitores - em matéria de higiene e de bem-estar: bastemo-nos desta ideia de que o pior inimigo de um bom médico (ou de um grande médico, como o Dr. João Lobo Antunes) é um qualquer colega seu sem qualidades profissionais e humanas.
Naturalmente, isto também vale para advogados, professores, canalizadores, engenheiros, caixeiros, fiscais da câmara, políticos, jornalistas, carteiros, mecânicos, militares, etc. Os exemplos ajudam-nos a pôr tudo em perspectiva, não é verdade?


Coimbra, 30 de Outubro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 03-11-2016.]

domingo, 30 de outubro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (60)


Continuação de tudo


O Tempo é, de todos os créditos, o mais cruel. À semelhança do que sucede com os vulgares cartões de plástico, pagamos com juros quanto pedimos emprestado; mas a moeda do Tempo é a nossa própria vida.
Estimo diariamente a minha velhice: de manhã, à hora do escanhoamento burguês, o espelho lembra-me francamente a idade; ao descer ou subir as escadas do prédio, há uma ou outra articulação que não me dói (mas não sei qual é); as próprias notícias da rádio esbarram na minha existência calejada e raramente me parecem novidades.

Vale-nos que o envelhecimento é, em geral, um processo lento e subtil. As mudanças só se percebem bem quando, por acaso, nos cruzamos com uma imagem nossa de há vinte anos e mal reconhecemos, naquela exuberante juventude, o outro que fomos. Sucede algo parecido, embora num plano inverso, quando nos encontramos com gente essencial, após hiato de uma década ou pior: a mais voluptuosa mulher da nossa adolescência, só uns cinco anos mais velha que nós, deveio uma avó enorme, distraída e amarga, com ódio aos imigrantes, aos “jovens de hoje” e à celulite assassina; um dos ídolos futebolísticos dessa era (que talvez tenha seduzido aquela deusa dos nossos catorze anos) tornou-se alcoólico, perdeu cabelo e fortuna, divorciou-se, teve problemas com a polícia – e vive agora num lar, a uns cinquenta quilómetros do Estádio onde brilhou tanto.
Nada podemos contra o Tempo, na verdade. Excepto, digo eu, viver. Conto-vos à laia de exemplar demonstração deste apotegma, o que me sucedeu na última sexta-feira, à noite, na Lousã. Por iniciativa de dois Amigos, uns quarenta ex-jogadores do Atlético Mirandense reuniram-se para homenagear um homem que, na segunda metade do século XX, foi presidente daquele cube. À volta do senhor Aires, que fez oitenta anos nesse dia vinte e um de Outubro, convivemos alegremente por quatro horas ou mais. Revivemos episódios trágicos ou hilariantes; soubemos de doenças, golpes de sorte, emigrações (para o estrangeiro e para a eternidade), filhos & netos, divórcios; partilhámos alguns sonhos, indignações, amarguras. Dou por mim a olhar melancolicamente à volta - como se fosse, por um instante, o cameraman do filme O Caçador (de Michael Cimino, 1978): em slow motion, com fundo musical de Stanley Myers, reparo nas barrigas, nas carecas, nas cãs, nas rugas, na reumática lentidão de alguns gestos. E, de repente, já em velocidade normal, sou parte da acção, entro no ruído amável das gargalhadas, na ressuscitada juventude dos meus companheiros. Um deles desafia-me, pela enésima vez, a pôr em livro as nossas histórias do futebol. Outro corrobora-o gravemente, como num aviso:
- O livro, sim, para as coisas ficarem registadas. Porque tudo passa, Joaquim Jorge!
Invadido por uma momentânea (e estranha) felicidade, eu corrijo-o:
- Continua. Tudo continua, pá.

Coimbra, 22 de Outubro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 27-10-2016.]

domingo, 23 de outubro de 2016

Carta aos Filhos imortais por enquanto



Sabei que os vossos Pais
Foram já em sua hora
Poderosos, imortais
Comos vos sentis agora.

Sabei que no passado

Eles eram o futuro –
Novos, em estado
Lindo e puro.

Antes de o cabelo embranquecer
Das carecas e barrigas colossais
Da geral dor de envelhecer

Sabei que os vossos pais
Na hora de assim ser
Eram, como vós, imortais.

Coimbra, 22-10-2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Texto escrito na madrugada seguinte ao jantar de homenagem ao Presidente Aires (no dia do seu 80º aniversário), com os meus companheiros de Mirandense.]





sábado, 22 de outubro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (59)

Emigrante de sua Mãe

Durante um lento e escuro Sábado, enquanto lá fora caía a mui outonal chuva da minha tristeza, um pequeno apontamento de reportagem televisiva (com a marca da RTP1) interrompeu o frio e iluminou-me a sala: uma mulher de Cabeceiras de Basto fazia 60 anos e, sem que o pudesse prever, viu-se rodeada de filhos e noras e netos, a maioria chegada subitamente de França. Só, sublinhe-se, para estarem com sua Mãe-Sogra-Avó. Um dos filhos explicava à repórter que viera de madrugada e que, no dia seguinte, bem cedinho, viajaria de regresso a Lyon, “porque não se pode faltar ao trabalho”.

A minha França, leitores, é menos longínqua e difícil, fica só a 260 quilómetros de Coimbra, nem 2 horas levo a fazer a viagem. Mas sou, no essencial, esse mesmo emigrante com eternas saudades do cantinho maternal, cheio sempre dessa febre de reencontrar gente cúmplice, ruas conhecidas, edifícios e árvores familiares de há muito, tantíssimo tempo.
Ainda tenho viva a minha Mãe. (Há aqui muita angústia no advérbio “ainda”!) Como se passa com os emigrantes de França, ela é, à distância, o meu País. Duas vezes por mês, em média, chego à sexta-feira com uma querida urgência a queimar-me os olhos: saio do trabalho e apresso o carro até à casa transmontana (minha provisória morada há 21 anos), beijo a mulher, ultimo as malas e desço as escadas, célere como um menino coimbrinha de 1973. Pelo caminho, já telefono para ouvir a sua voz, para aconselhá-la sobre as ruas escorregadias e os perigos do frio ou do calor, para fingir-me chocado com as suas diatribes de adolescente septuagenária, para chocá-la com ideias tolas (que só aduzo para a fazer rir).
Depois, entro pela cidade como quem chega ao quintal de casa, reconheço as luzes, os cruzamentos, as rotundas, a churrasqueira onde compramos, ao Sábado, frango e azeitonas – até aterrar, enfim, na minha Mãe. Então, trocamos beijos, às vezes um ou outro abraço incontrolável e comemos algum doce que haja comprado pelo caminho.
Por dois dias, descanso do manicómio da vida adulta, dessa engrenagem feita de obrigações cínicas, horários fascistas, renúncias (ir)responsáveis, separações dolorosas, desesperos avulsos. Ali alegremente repouso no momento, sultão do universo, portuguesinho milionário e poderoso e feliz.
De tudo quanto escrevo, caros leitores, colhei só duas verdades – ambas cheias dessa querida claridade típica de manhãs limpas: que a minha (nossa) Mãe é a minha (nossa) verdadeira terra natal; e que o Presente - com uns bocadinhos de Passado, em forma de lembrança - é tudo quanto realmente tenho (tudo quanto realmente temos).


Vila Real, 15 de Outubro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 20-10-2016.]

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (58)


Enunciado de ausências

 Num dos mais belos poemas de Aquele Grande Rio Eufrates, Ruy Belo fala de um amigo que partiu para “a outra margem” – e de, naquele abandono de Dor, não haver “tenda verbal” que nos proteja. Estes versos vieram fazer-me companhia no final da semana passada: um homem da minha idade, querido companheiro diário nos últimos 21 anos, despediu-se da vida e deixou mais pobre e triste a “nossa” vila.
A teia da Morte tornou-se-me mais conspícua e assustadora a partir dos 40 anos. Durante décadas, fui pouco menos que imortal, gloriosamente imune a graves doenças (próprias ou próximas). À imagem de Pessoa-menino, foi esse o tempo em que “eu era feliz e ninguém estava morto”. Nos últimos 13 anos, a notícia (velha, afinal) da mortalidade começou a repetir-se-me, despovoando o mundo à minha volta. Adeus, Pai – e adeus, Mestre João (meu sogro e companheiro), Zé Manel e Conceição (meus cunhados tão novos e tão cúmplices e tão alegres), Francisco Botelho (meu Amigo especial), meus vizinhos de Coimbra, meus vizinhos da Madeira, meus vizinhos de Ribeira de Pena, tantíssima gente que eu julgava eterna (escritores, actores, músicos - e futebolistas como Damas, Eusébio, Cruyff). Adeus.
Devim, como é mais ou menos fatal para quem se atreve a permanecer mais de meio século sobre a Terra, um acumulador de ausências, espécie de coleccionador de vazios. Como um velho emigrante que, ao fim de alguns anos, volta à aldeia natal e encontra, para além da paisagem visível, casas e caminhos e pessoas que já não estão e lhe faltam como bocados de si próprio.
Sei muito bem que o problema maior da Morte é a gente pensar nela. Saber que ela existe. Aceitar, contrariado embora, que essa cabra tem o poder de nos levar quem não podemos perder. Quem me dera – exclamo eu, pessoanamente – a ingenuidade das crianças ou dos doidos!
Já agora: soube há dias de um caso – desses muito úteis para crónicas e outros enunciados exemplares – que se terá passado num Lar do interior português. Um dos residentes, com histórico de doença mental (controlada), homem de 60 e poucos anos, assistia à remoção terminal de um companheiro da sua velhice institucionalizada. Perante a inexorável despedida, de olhos arregalados e com inusual rouquidão, saiu-se com esta pérola para a assistente social que ali estava:
- Ontem estávamos todos vivos!
E rematou, numa promessa que, confesso, me soa ao desespero mais pungente de todos:
- Eu não. Eu cá não morro!

Ribeira de Pena, 10 de Outubro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Nota: Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 13-10-2016.]

ZONA DE PERECÍVEIS (58)


Enunciado de ausências
 Num dos mais belos poemas de Aquele Grande Rio Eufrates, Ruy Belo fala de um amigo que partiu para “a outra margem” – e de, naquele abandono de Dor, não haver “tenda verbal” que nos proteja. Estes versos vieram fazer-me companhia no final da semana passada: um homem da minha idade, querido companheiro diário nos últimos 21 anos, despediu-se da vida e deixou mais pobre e triste a “nossa” vila.
A teia da Morte tornou-se-me mais conspícua e assustadora a partir dos 40 anos. Durante décadas, fui pouco menos que imortal, gloriosamente imune a graves doenças (próprias ou próximas). À imagem de Pessoa-menino, foi esse o tempo em que “eu era feliz e ninguém estava morto”. Nos últimos 13 anos, a notícia (velha, afinal) da mortalidade começou a repetir-se-me, despovoando o mundo à minha volta. Adeus, Pai – e adeus, Mestre João (meu sogro e companheiro), Zé Manel e Conceição (meus cunhados tão novos e tão cúmplices e tão alegres), Francisco Botelho (meu Amigo especial), meus vizinhos de Coimbra, meus vizinhos da Madeira, meus vizinhos de Ribeira de Pena, tantíssima gente que eu julgava eterna (escritores, actores, músicos - e futebolistas como Damas, Eusébio, Cruyff). Adeus.
Devim, como é mais ou menos fatal para quem se atreve a permanecer mais de meio século sobre a Terra, um acumulador de ausências, espécie de coleccionador de vazios. Como um velho emigrante que, ao fim de alguns anos, volta à aldeia natal e encontra, para além da paisagem visível, casas e caminhos e pessoas que já não estão e lhe faltam como bocados de si próprio.
Sei muito bem que o problema maior da Morte é a gente pensar nela. Saber que ela existe. Aceitar, contrariado embora, que essa cabra tem o poder de nos levar quem não podemos perder. Quem me dera – exclamo eu, pessoanamente – a ingenuidade das crianças ou dos doidos!
Já agora: soube há dias de um caso – desses muito úteis para crónicas e outros enunciados exemplares – que se terá passado num Lar do interior português. Um dos residentes, com histórico de doença mental (controlada), homem de 60 e poucos anos, assistia à remoção terminal de um companheiro da sua velhice institucionalizada. Perante a inexorável despedida, de olhos arregalados e com inusual rouquidão, saiu-se com esta pérola para a assistente social que ali estava:
- Ontem estávamos todos vivos!
E rematou, numa promessa que, confesso, me soa ao desespero mais pungente de todos:
- Eu não. Eu cá não morro!

Ribeira de Pena, 10 de Outubro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Nota: Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 13-10-2016.]

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (57)

Balada do Neves

João César das Neves, o arauto mais provinciano do neoliberalismo em Portugal, voltou a defender, com misteriosa fúria, o ataque aos vencimentos e às carreiras dos funcionários públicos. Em entrevista a uma televisão, lamentou o facto de a vontade do anterior governo, cúmplice dos seus próprios desejos, ter esbarrado em alguns pormenores (digo eu) irritantes – como aquele da Constituição da República e o do Tribunal Constitucional.
A ideia de que a dívida soberana e o défice decorrem dos privilégios e mordomias da função pública é, como todos sabem, um magno embuste. Valerá a pena lembrar, aliás, que o défice português, apesar da gradual reposição dos rendimentos, decresceu no primeiro semestre de 2016. E também, já agora, que as carreiras continuam congeladas desde 2010.
César das Neves prefere esquecer-se do custo dos estádios do Euro 2004, do abismo do BPN, do terramoto de BES e GES, da ameaça da CGD – e raivosamente clama, uma e outra vez, em debates, entrevistas, artigos de opinião, livrecos, contra os gastos na função pública, os gastos na função pública, os gastos na função pública. Escondida com o rabo de fora, está a agenda do que (ainda) falta cumprir, segundo os ultras do liberalismo económico: a degradação voluntária da qualidade dos serviços oferecidos pelo Estado aos cidadãos, na educação, na justiça, na saúde, na cultura, na segurança, no apoio social. Das cinzas do serviço público, não nos custa adivinhar, surgirá (?) a oferta privada, satisfazendo as necessidades do povo ao preço que as empresas decidirem (aí se perseguindo, acima de tudo, o sacrossanto lucro das grandes multinacionais).
Um amigo lisboeta, licenciado em Economia, aos primeiros alvores da minha indignação, diz-me que estou a gastar demasiada cera com tão pouco defunto; que este anafado Dâmaso Salcede do liberalismo português apenas quer “dar nas vistas”, “aparecer”. Eu temo que César das Neves represente algo pior: uma linha de pensamento que, à força da assanhada repetição e da argumentação enviesada, vai fazendo o seu cínico caminho junto dos média.
Já agora: a referência que este senhor faz ao seu catolicismo militante reduz o discurso à categoria da incongruência mais rasteira e patética. Se, como ele diz, a Igreja Católica não pactua com o neoliberalismo, já era hora de o excomungarem. E em verdade vos digo que, caso o Papa Francisco me telefone um dia destes, eu hei-de sugerir-lhe esta medida higiénica.

Coimbra, 30 de Setembro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho

[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 06-10-2016-]

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (56)


Olha o robot

 Numa crónica publicada no DN em 1971, com o título “História sem palavras”, a escritora Maria Judite de Carvalho dá conta do seu desconforto (aliás, angústia) perante um quotidiano cada vez mais dominado pelas máquinas. Queixa-se sobretudo da falta de comunicação entre as pessoas, resultado da nova lógica que tutela a urbana rotina: uma espécie, digo eu, de pulsão para uniformizar e mecanizar a vida dos humanos. Nesta nova modalidade de existência, não há tempo para conversas particulares ou para pessoais partilhas de ideias, emoções, sentimentos. Maquinalmente obrigadas a sobreviver, as pessoas já não se dão ao luxo antigo de conviver.
Entre o grito da cronista e hoje, passaram-se 45 anos. Registo, com tristeza, que a ameaça reportada no texto se concretizou: do mundo com gente e palavras sobra muito pouca coisa. Pela Escola onde trabalho, cirandam jovens de telemóvel na mão, alienados desde manhã cedo. Quando saem pra o intervalo, já de aparelhos em riste, lembram-me os fumadores da minha infância, esses que, quando a camioneta excursionista parava numa estação de serviço, sofregamente corriam para a rua, desesperados por umas passas de carbono.
Em Ribeira de Pena, por causa dos incêndios, estivemos quatro dias sem serviço de internet, de telemóvel e de televisão por cabo. Entre as queixas gerais, as mais exasperadas eram as de adolescentes e jovens adultos, que se sentiam náufragos, mergulhados (ai deles) nesse moderníssimo síndrome de abstinência – da falta do facebook, do twitter, do instagram. Para matarem o tempo, imagino, alguns tiveram mesmo que dialogar de viva voz com os pais, os irmãos, os avós, os vizinhos.
O mundo globalizado pôs máquinas a cobrar-nos a conta do hipermercado e as portagens. Telefonamos à EDP e quem nos atende é uma voz pré-gravada, enunciando frases como um robot cínico. Tendemos a ser versões digitalizadas de nós mesmos, desprovidos de carne, de ossos, de amor. Diria, a pensar na internet e nas prisões em geral, que devimos cardumes cegos sem alma para fugir da rede.
Maria Judite de Carvalho achava que, em 1971, se vivia já no Futuro e, em remate mineral da sua crónica, anunciava: “Não gosto.” Tendo sofrido quase 50 anos da brutidade seguinte, eu digo-vos agora que também não.
 
 Vila Real, 25 de Setembro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 29-09-2016.]

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (55)




O caminho das formigas

1. Na obra Levantado do Chão, Saramago descreve um carreiro de formigas que, na rotina andarilha de sua sobrevivência, cruzam o chão de uma cela da GNR, no Alentejo, para cá e para lá, testemunhando involuntariamente as torturas infligidas a um camponês acusado de conspiração contra o regime fascista. As formigas são, ali, um silencioso grito contra a impunidade dos algozes, esses mesmos que, confirmada a morte de um interrogado, fabricam uma verdade oficial, anódina e asséptica, para justificar o seu desaparecimento. No caso, se bem recordo, fica escrito, com assinatura (contrariada) do médico de serviço, que o indivíduo se enforcou.
1.1. Eu vejo ali também, naquele movimento negro das formigas, uma espécie de linhas vivas, feito de letras e de palavras movediças, ligadas entre si, buscando-se a condição (cósmica) de frases. Um texto, portanto, fazendo-se.
2. De tão usada, a expressão “trabalho de formiguinha” deixou de ser metáfora. Significa, agora, o denotativo conceito da labuta repetida, paciente, sistemática, prolongada no tempo, que dignamente crê no fruto a haver.
3. Há uns seis anos, iniciei na minha escola um projecto a que chamei “Bem falar, bem escrever” (no original, era “Bem pensar, bem falar, bem escrever”). Com base na análise dos resultados obtidos pelos alunos do 9.º ano na prova final, recorrentemente fracos no que tocava ao grupo III (a “composição”), os professores de Português entenderam urgente melhorar as competências dos alunos no domínio da escrita. Eu defendi, desde o primeiro dia, que o nosso projecto envolvesse também os alunos do 1.º e do 2.º ciclo (pelo menos, desde o 3.º ano de escolaridade em diante). Se a dificuldade era “estrutural”, deveríamos atacá-la na base, certo? Nota importante: tratou-se de um trabalho de equipa; o caminho das formigas faz-se com outras (cúmplices e solidárias) formigas.
3.1. A concretização do projecto fez-se (faz-se) com o treino – repetido, paciente, sistemático – da escrita, sempre a partir da leitura de um texto literário. Em se tratando de um enunciado expositivo-argumentativo, os alunos habituam-se a usar, no espaço e tempo certos, articuladores de discurso como “Por um lado… / Por outro lado…”, “No entanto” (ou “Contudo, Porém”), “Em minha opinião” (ou “Em meu entender”, “A meu ver”), “Em suma” (ou “Resumindo e concluindo”, “Para concluir”). Etc.
3.2. Houve, ao longo dos anos, muita gente que bocejou ou se irritou perante a imposta rotina. Lá lhes fui dizendo que o Ronaldo faz muitíssimas vezes o mesmo gesto nos treinos para, no dia do jogo, o pontapé sair como ele quer – e que “ensaiar”, em francês, se diz “répéter”.
3.3. No início do presente ano lectivo, estivemos a analisar os resultados dos alunos do 8.º ano numa prova de aferição realizada em Junho. No item “Escrita”, a média nacional de sucesso pleno (classificação C, de “Conseguiu”) foi de 78,1%. A do Agrupamento de Escolas onde trabalho (já) andou lá perto. As duas turmas que leccionei obtiveram, neste domínio, um sucesso de 84,2% e 100%.
4. Como adivinhais, sou - hoje e aqui - uma formiguinha orgulhosa e feliz, consciente da importância do caminho diário que, com outras formiguinhas, vou fazendo. Não podemos parar.

Coimbra, 18 de Setembro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 21-09-2016.]

terça-feira, 20 de setembro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (54)



Nomes de Nós

 

Costumo dizer isto aos meus jovens alunos, quando eles se queixam dos nomes recebidos na pia baptismal: não são os nomes que nos fazem grandes ou pequenos, bem ou mal sucedidos; é, quase sempre, a pessoa que “faz” o nome, associando-lhe, aos olhos dos outros, prestígio, má fama ou indiferença. Falo-lhes, como exemplo, do meu desconforto por o meu Pai me ter dado o nome de Joaquim. Achava-o um nome feio, fora de moda, boçal. Até que o meu tio Carlos, convidado para padrinho do filho de um seu grande amigo, sugeriu Joaquim para nome do novel afilhado. Eu soube, por uma tia, que a escolha resultara da minha notoriedade, à época, enquanto estudante e também do meu jeito futebolístico (titular nos iniciados do glorioso União de Coimbra). Ou seja, aquele mal-amado nome deviera, por inconsciente mérito do juvenil proprietário, um nome bonito.

Creio que com as alcunhas é um processo diferente, quiçá oposto. A alcunha é consequência do que, na visão dos outros, nos caracteriza essencialmente – às vezes, fruto de um olhar divertido, outras de um olhar cruel e até insultuoso.

Casado com uma madeirense, estou habituadíssimo a que, nos fait-divers narrados por familiares ilhéus, quase sempre em contextos mui domésticos, as personagens raramente assumam a nomenclatura inscrita no cartão de cidadão. Houve por lá um vizinho rico que era o Graças-a-Deus, um agente de autoridade invariavelmente zangado que era o Merda-Seca, um avô alegre que era o Tim-Trrrim, um comerciante de modos sanguíneos que era o Diabo. E há um político simpático que é o Sem-Nada, uma amiga da família que é a Fera, uma prima altiva que é a Delicada, um continental (ou “cubano”) que é o Engalgado.

Em Coimbra, o meu Pai era o Zé-Bate-Chapas. A minha filha, durante a sua meninice mais tenra, julgou que Bate-Chapas era mesmo o nome do avô paterno. (Eu próprio fui referido, em conversas sobre a minha carreira futebolística, como “o Bate-Chapas-mais-pequeno”.) O meu tio, que era um excelente mecânico de automóveis, foi vítima da fama profissional do meu Pai (seu irmão) e ficou conhecido por Fernando-Bate-Chapas (“O Fernando-Bate-Chapas é um mecânico de se lhe tirar o chapéu!”).

Na terra do Daniel Abrunheiro, vive certo moço, inteligente e simpático como poucos, que é, de sua natureza, muitíssimo magro. O nome por que é conhecido? Tarzan. Também há (isto disse-me o próprio Daniel) um certo senhor muito alto, homem grave e sereno, cuja estatura e pose impressionaram, durante décadas, os conterrâneos. A sua alcunha ficou (abençoada seja a alma que fabricou esta metáfora) Rainha-Santa.

Era para falar-vos de alcunhas que por pouco se me colavam e às quais escapei nem sei bem como. Mas já não há espaço para tal. De modo que remato com uma lida em breve notícia do JN, relativa a um idoso vítima de assalto e infelizmente falecido pouco tempo depois: este senhor era conhecido, na sua terra, por Amor-de-Perdição.

 
Ribeira de Pena, 12 de Setembro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 15-09-2016.]

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Fim de estação



Vemos morrer a cor das folhas

E não nos preocupamos muito

Mesmo que a tristeza perpasse

A paisagem e a luz rareie.

Sabemos que a cor voltará

Às folhas

Pois nada morre para sempre

E que o mesmo sucederá com o Sol

Que voltará a brilhar como antes.

Considerada a natureza com estes olhos

Cremos que não há fim absoluto

Isto é: que o fim é provisório

E que, como tudo na nossa vida, haverá

Novos (inesgotáveis) começos.

Mas depois a minha experiência dói-me

Por dentro.

Porque eu, sabei, sinto excessivamente

A falta de tanta gente amada

Desaparecida

Em bruto eterno inverno.

 

Cabeceiras de Basto, 09 de Setembro de 2016.

Joaquim Jorge Carvalho

[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.bestday.com.]