O caminho das formigas
1. Na obra Levantado do
Chão, Saramago descreve um carreiro de formigas que, na rotina andarilha de
sua sobrevivência, cruzam o chão de uma cela da GNR, no Alentejo, para cá e
para lá, testemunhando involuntariamente as torturas infligidas a um camponês
acusado de conspiração contra o regime fascista. As formigas são, ali, um silencioso
grito contra a impunidade dos algozes, esses mesmos que, confirmada a morte de
um interrogado, fabricam uma verdade oficial, anódina e asséptica, para
justificar o seu desaparecimento. No caso, se bem recordo, fica escrito, com
assinatura (contrariada) do médico de serviço, que o indivíduo se enforcou.
1.1. Eu vejo ali também, naquele movimento negro das formigas,
uma espécie de linhas vivas, feito de letras e de palavras movediças, ligadas
entre si, buscando-se a condição (cósmica) de frases. Um texto, portanto,
fazendo-se.
2. De tão usada, a expressão “trabalho de formiguinha” deixou
de ser metáfora. Significa, agora, o denotativo conceito da labuta repetida,
paciente, sistemática, prolongada no tempo, que dignamente crê no fruto a
haver.
3. Há uns seis anos, iniciei na minha escola um projecto a
que chamei “Bem falar, bem escrever” (no original, era “Bem pensar, bem falar,
bem escrever”). Com base na análise dos resultados obtidos pelos alunos do 9.º
ano na prova final, recorrentemente fracos no que tocava ao grupo III (a
“composição”), os professores de Português entenderam urgente melhorar as
competências dos alunos no domínio da escrita. Eu defendi, desde o primeiro
dia, que o nosso projecto envolvesse também os alunos do 1.º e do 2.º ciclo
(pelo menos, desde o 3.º ano de escolaridade em diante). Se a dificuldade era
“estrutural”, deveríamos atacá-la na base, certo? Nota importante: tratou-se de
um trabalho de equipa; o caminho das
formigas faz-se com outras (cúmplices e solidárias) formigas.
3.1. A concretização do projecto fez-se (faz-se) com o treino
– repetido, paciente, sistemático – da escrita, sempre a partir da leitura de
um texto literário. Em se tratando de um enunciado expositivo-argumentativo, os
alunos habituam-se a usar, no espaço e tempo certos, articuladores de discurso
como “Por um lado… / Por outro lado…”,
“No entanto” (ou “Contudo”, “Porém”), “Em minha opinião” (ou “Em
meu entender”, “A meu ver”), “Em suma” (ou “Resumindo e concluindo”, “Para
concluir”). Etc.
3.2. Houve, ao longo dos anos, muita gente que bocejou ou se
irritou perante a imposta rotina. Lá lhes fui dizendo que o Ronaldo faz
muitíssimas vezes o mesmo gesto nos treinos para, no dia do jogo, o pontapé sair
como ele quer – e que “ensaiar”, em francês, se diz “répéter”.
3.3. No início do presente ano lectivo, estivemos a analisar
os resultados dos alunos do 8.º ano numa prova de aferição realizada em Junho.
No item “Escrita”, a média nacional de sucesso pleno (classificação C, de “Conseguiu”) foi de 78,1%. A do
Agrupamento de Escolas onde trabalho (já) andou lá perto. As duas turmas que
leccionei obtiveram, neste domínio, um sucesso de 84,2% e 100%.
4. Como adivinhais, sou - hoje e aqui - uma formiguinha
orgulhosa e feliz, consciente da importância do caminho diário que, com outras
formiguinhas, vou fazendo. Não podemos parar.
Coimbra, 18 de
Setembro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 21-09-2016.]
1 comentário:
Ainda há e sempre haverá formigas laboriosas e incansáveis na profissão docente. Mas tu és das que faz plenamente jus a essa metáfora, e tenho a certeza de que quem te conhece profissionalmente (colegas, alunos, funcionários, pais...) te tem nessa conta. Os resultados têm que aparecer, e aparecem, mas a um preço tremendo. Somos como garimpeiros: movemos e filtramos toneladas de areia e terra para tirar, aqui e ali, algumas pepitas douradas. Vale a pena, mas porra, ganha-se muito calo e dores nas costas.
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