Ganhar a vida
A reportagem do
JN (edição de 09-08-2016, página 22), à roda de Paulo Moreira, um professor
contratado que, no Verão, ganha a vida a vender bolas de Berlim, por praias
algarvias, tinha quase tudo para me fazer cúmplice: um homem a lutar pela vida;
um homem que teima em ser professor, apesar da ausência ou da brutidade das
colocações; um homem que tem a família como motivo primeiro e aconchego último;
um homem que não desiste.
Severo de Melo,
que foi meu ínclito Mestre no ensino secundário, ensinou-me que não há, num
Estado de direito, trabalhos indignos – há é profissionais menos e mais sérios.
Eu inclino-me perante aqueles que, com maiores ou menores habilitações, estão
disponíveis para todos os trabalhos, sem pruridos chiques nem complexos
atávicos. Orgulha-me o facto de a minha filha, já licenciada, antes de exercer
advocacia ou de ser jurista, ter trabalhado, sem pejo, numa loja da Zara e num call center ligado à (falecida) PT,
assim assumindo – muito cedo – responsabilidades no pagamento das despesas da
casa.
Quando esta
minha filha nasceu, eu era professor provisório. O adjectivo “provisório”
significava, então como agora, “sem vínculo definitivo”, i.e. “contratado”, i.e.
sujeito a ficar, de um instante para o outro, sem emprego. O meu instinto
(burguês) de sobrevivência obrigava-me a equacionar essa ameaça: que faria eu
no caso de perder o meu trabalho? À época, jogava futebol em escalões menores,
ganhando alguns patacos informais, mas era pouco para as necessidades do meu
agregado. De modo que me ocorria a possibilidade de trabalhar como “trolha”,
emprego certo (cria eu) numa altura em que florescia a construção civil. Mais
tarde, como a idade é, em tamanho, inversamente proporcional à saúde (e também
porque o imobiliário edificado se foi tornando cada vez mais esparso), a
alternativa deveio fatalmente outra. Já vo-la digo.
Tive um tio que,
durante quase 50 anos, foi empregado de mesa, num Café em Leiria. Era um homem
elegante, muito educado, com apurado sentido de família, bastante bem-falante.
Sempre gostei dele e o admirei. Visitei-o no hospital, em Coimbra, aí por 1983,
pouco antes da sua morte. Dizia, sorrindo, que amava tanto a sua família e os
seus amigos que, se pudesse, levaria atada a si, pelo mundo fora, com uma corda
gigante, toda essa gentinha. Era também, decerto, devido a essa forma de ser e
de comunicar que os clientes gostavam tanto do tio Zé Melo. Ora, o meu plano B,
hoje em dia, é este: em caso de desemprego na docência, gostaria de exercer o métier do meu familiar, com a diligência
e a simpatia inteiras de que fosse capaz. É-me grata a ideia de conviver com os
clientes, de participar (ainda que de viés) nas vidas dos meus contemporâneos,
de comunicar (até em línguas estrangeiras), de partilhar humor e literatices
com sei lá quem.
Doer-me-ia
ganhar menos do que ganho, é certo. Mas não me preocupo – de todo – com o maior
ou menor “valor social” da profissão exercida. Tenho na cabeça a lição de
Mestre Severo e, por outro lado, sei muito bem que a primeira obrigação dos
viventes é sobreviver (dignamente, bem entendido), seja nas escolas, nas
oficinas, nos escritórios, nos quiosques, nos mercados – ou nas praias a vender
bolas de Berlim.
Coimbra, 29 de Agosto de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica
foi publicada no semanário O Ribatejo,
edição de 01 de Setembro de 2016.]
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