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Número de Ondas

domingo, 4 de setembro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (52)

Ganhar a vida

A reportagem do JN (edição de 09-08-2016, página 22), à roda de Paulo Moreira, um professor contratado que, no Verão, ganha a vida a vender bolas de Berlim, por praias algarvias, tinha quase tudo para me fazer cúmplice: um homem a lutar pela vida; um homem que teima em ser professor, apesar da ausência ou da brutidade das colocações; um homem que tem a família como motivo primeiro e aconchego último; um homem que não desiste.
Severo de Melo, que foi meu ínclito Mestre no ensino secundário, ensinou-me que não há, num Estado de direito, trabalhos indignos – há é profissionais menos e mais sérios. Eu inclino-me perante aqueles que, com maiores ou menores habilitações, estão disponíveis para todos os trabalhos, sem pruridos chiques nem complexos atávicos. Orgulha-me o facto de a minha filha, já licenciada, antes de exercer advocacia ou de ser jurista, ter trabalhado, sem pejo, numa loja da Zara e num call center ligado à (falecida) PT, assim assumindo – muito cedo – responsabilidades no pagamento das despesas da casa.
Quando esta minha filha nasceu, eu era professor provisório. O adjectivo “provisório” significava, então como agora, “sem vínculo definitivo”, i.e. “contratado”, i.e. sujeito a ficar, de um instante para o outro, sem emprego. O meu instinto (burguês) de sobrevivência obrigava-me a equacionar essa ameaça: que faria eu no caso de perder o meu trabalho? À época, jogava futebol em escalões menores, ganhando alguns patacos informais, mas era pouco para as necessidades do meu agregado. De modo que me ocorria a possibilidade de trabalhar como “trolha”, emprego certo (cria eu) numa altura em que florescia a construção civil. Mais tarde, como a idade é, em tamanho, inversamente proporcional à saúde (e também porque o imobiliário edificado se foi tornando cada vez mais esparso), a alternativa deveio fatalmente outra. Já vo-la digo.
Tive um tio que, durante quase 50 anos, foi empregado de mesa, num Café em Leiria. Era um homem elegante, muito educado, com apurado sentido de família, bastante bem-falante. Sempre gostei dele e o admirei. Visitei-o no hospital, em Coimbra, aí por 1983, pouco antes da sua morte. Dizia, sorrindo, que amava tanto a sua família e os seus amigos que, se pudesse, levaria atada a si, pelo mundo fora, com uma corda gigante, toda essa gentinha. Era também, decerto, devido a essa forma de ser e de comunicar que os clientes gostavam tanto do tio Zé Melo. Ora, o meu plano B, hoje em dia, é este: em caso de desemprego na docência, gostaria de exercer o métier do meu familiar, com a diligência e a simpatia inteiras de que fosse capaz. É-me grata a ideia de conviver com os clientes, de participar (ainda que de viés) nas vidas dos meus contemporâneos, de comunicar (até em línguas estrangeiras), de partilhar humor e literatices com sei lá quem.
Doer-me-ia ganhar menos do que ganho, é certo. Mas não me preocupo – de todo – com o maior ou menor “valor social” da profissão exercida. Tenho na cabeça a lição de Mestre Severo e, por outro lado, sei muito bem que a primeira obrigação dos viventes é sobreviver (dignamente, bem entendido), seja nas escolas, nas oficinas, nos escritórios, nos quiosques, nos mercados – ou nas praias a vender bolas de Berlim.

Coimbra, 29 de Agosto de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho

[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 01 de Setembro de 2016.]

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