Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Prenda envenenada


O Jornal de Notícias está a editar clássicos da literatura portuguesa em versão (muito) resumida. De acordo com os promotores da iniciativa, trata-se de um projecto dirigido sobretudo a crianças. Há uns anos, o semanário Sol tentou algo semelhante – e já então critiquei a ideia. Volto à carga, se me dão licença. 
Tomemos como adquirido (para economia retórica) que as intenções são intrinsecamente boas – fomentar a leitura, dar a conhecer títulos e autores importantes, etc. Ainda assim, perdoai: como diz o povo, de boas intenções está o inferno cheio. 
Já me dei ao trabalho de ler algumas destas versões de clássicos. Tirando as ilustrações (que de facto tornam o objecto-livro mais apelativo para leitores muito jovens), o que me ficou foi, de novo, esta ideia de, no afã de bem simplificar (?), aquilo que era um romance, na sua pureza inteira, passar a ser um mero resumo dos acontecimentos principais (digamos assim). Em termos didácticos, dir-se-ia que os adaptadores se esquecem da acção secundária, preferindo exclusivamente a acção principal, ignorando descrições, diálogos longos, monólogos interiores. Em termos mais rigorosos, direi que há um apagamento (deliberado, ergo criminoso) da diegese em favor do enredo
Ler estas versões é um pouco como ler aqueles resumos dos episódios telenovelescos que aparecem em certas revistas. Ou os famosos resumos da Europa-América, amados pelos cábulas, textos que utilitariamente reduzem as obras estudadas a tópicos e a paupérrimas sínteses de cada narrativa. Ou ainda àqueles testemunhos de quem foi ao cinema e conta a quem lá não foi a história, “dispensando” o receptor da experiência espectadora, feita de atenção e de emoção estética (essa sim, pessoal e intransmissível). 
Mais: os jovens leitores que hoje tropecem nestas versões minimalistas dificilmente investirão tempo de leitura, mais tarde, nos originais. Ficarão para sempre iludidos com a ideia de que “já conhecem” aqueles romances fundamentais. 
Mas não. Não conhecem. Em boa verdade, perderam-nos. 

Ribeira de Pena, 26 de Outubro de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em https:www.jn.pt.]

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Educação sem habitação, não


Li no Público (edição de 10 de Outubro de 2018) uma reportagem que provava - se necessário fosse - que é quase impossível arrendar um quarto (já nem falo numa casa) em Lisboa, senão por valores proibitivos. Já o percebera ao testemunhar a saga de uma sobrinha madeirense que, por amor à música, se atreveu a tentar o ensino superior em Lisboa. Para uma família humilde, sem outros recursos que o magro salário auferido por marido e mulher, é um sonho muito caro pôr um filho a estudar nas grandes urbes. 
O direito à educação aparece consignado na Constituição. Coisa normal, desejável, justa. Vale para o ensino básico, para o ensino secundário e para a universidade. 
É verdade que, por razões de sustentabilidade financeira, o Estado se foi atrevendo à imposição de propinas para a frequência de cursos superiores, mas por enquanto as verbas são (ainda) razoavelmente suportáveis, creio, para a maioria das famílias. 
Já a verdade torce o rabo quando falamos de habitação. Os desgraçados que sejam colocados no Porto ou em Lisboa (especialmente nestes casos) só conseguem casa (aliás, quarto) por altíssimas verbas mensais, muitas vezes sem direito a recibo, fora já do alcance da nossa classe média. 
Dito de outro modo: a gratuitidade da frequência do ensino superior, para quem não tem, à partida, residência nas grandes cidades, é uma mentira. O Estado não pode fazer de conta que o problema não existe. Dito de outro modo: a indiferença, aqui, também é inconstitucional. 

Cabeceiras de Basto, 10 de Outubro de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem – da famosa personagem Snoopy, criação de Charles Schulz – foi colhida, com a devida vénia, em https://schuzmuseum.org.]

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Essencial & acessório


No dia 27 de Setembro, após registar mecanicamente (à semelhança do que faço semana a semana) as minhas chaves de euromilhões e de totoloto, vibrou o telemóvel. Era o meu irmão mais novo, dando-me conta de que a nossa Mãe sobrevivera a – mais uma – operação delicada. Respondi-lhe, bêbedo de felicidade: “Já ganhámos o euromilhões, pá!” 
A vida ensina-nos a distinguir, cada vez melhor, o essencial do acessório, não é? É, sim. Deixai que vos diga ainda: ontem, pelas 8h25mts, quase à saída da A7, a chegar ao Arco, senti o rebentamento de um pneu da viatura que conduzo. Vi-me muito aflito para segurar a nave - e a violência do episódio traduziu-se em significativos danos na carroceria. O carro foi rebocado para Coimbra, tive de ir a Guimarães para alugar outro e o meu subsídio de Natal voou antecipadamente para a reparação a haver. Sobrou a gloriosa circunstância de ter ficado vivo, apto a contar a história no meu-nosso Muito Mar
Ou seja: a vida ensina-nos a distinguir, cada vez melhor, o essencial do acessório, não é? 

Arco de Baúlhe, 04 de Outubro de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em https://www.circulaseguro.pt.]

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Errar, errar & aprender


A palavra errar é mais um tesouro da nossa Língua. Há nela o óbvio sentido de falhar ou enganar-se, mas também o de perambular sem destino certo ou obrigatório, com a liberdade, a leveza e a espontaneidade de uma folha ao vento (ou de um animal selvagem, avesso a rotinas ou a planos).
O interesse da homonímia, neste caso, está na ideia – que recorrentemente confirmo, tantas e tantas vezes – de a sabedoria ser também resultado dos erros cometidos ao longo do nosso percurso existencial. Às contingências, vicissitudes, espantosas novidades de cada dia, respondemos com as explicações possíveis e reagimos da forma que nos parece, daí em diante, mais certa. Depois, fatalmente, falhamos de novo, e lá voltamos a reformular equações e a reinventar métodos e armas para a sobrevivência seguinte. Isto é, erramos pela vida e vamos tentando (errando, errando, errando) percebê-la melhor. 

Cabeceiras de Basto, 11 de Setembro de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em https://gananci.com.]