Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Sobre uma coisa chamada Viver


Viajar de comboio é talvez a imagem mais próxima que tenho da vida passando. Eu-passageiro avanço, à boleia férrea e imparável da locomotiva, mas vejo bem como, simultânea à conquista de metros-lugares-pessoas, vou perdendo pessoas-lugares-metros.
Viajo/vivo, portanto, ganhando e perdendo ao mesmo tempo. A viagem terá um fim, claro. Só então terminará a minha colecção de perdas; igualmente nesse momento, nada mais terei para ganhar.
Eis que os alunos do nono ano se despedem de nós, embarcando noutras etapas. Eis que colegas se esfumam nos destinos avulsos de cada um e nos deixam a sua falta em lugar das suas humanidades. Eis como a nossa existência lectiva se interrompe para, a prazo, novos rostos e vozes e passos se juntarem a rostos e vozes e passos que somos.
Avançamos, portanto, à boleia férrea e imparável do comboio da vida. Perdemos. Ganhamos. Perdemos.
Não há fim enquanto não for o fim. Pouca-terra, pouca-terra.

Arco de Baúlhe, 8 de Junho de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este texto foi publicado, em primeira instância, no terceiro número deste ano lectivo do jornal "Arco-Íris" (Junho, 2011). A imagem (Estação Velha, Coimbra) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.agripinas.blog.com.]

sexta-feira, 24 de junho de 2011

O Lobo Milagreiro


Um livro emprestado pela minha colega Filomena Ribeiro (que lecciona Língua Portuguesa, no segundo ciclo) entreteve-me as horas do feriado do Dia de Corpo de Deus. Com base num escrito de S. Francisco de Assis, um francês do século XX, Raymond Bruckberger, construiu uma bela história sobre o bem e o mal, a justiça e a perfídia, o egoísmo e certa solidariedade (não tenhamos medo do adjectivo...) cristã.
A novela intitula-se O Lobo Milagreiro (Ed. Lisboa Editora, 2007) e tem tradução para o Português do grande Jorge de Sena. Reitero, à boleia magnífica desta narrativa: os nossoa alunos aprendem a gostar de ler, lendo. A selecção de textos deve, no primeiro, no segundo e no terceiro ciclos (pelo menos, neste universo básico), ter em conta o interesse da intriga, a competência da narração, a clareza do enunciado – e ainda um fundo edificante que, a não existir, desperdiçará uma das dimensões fundamentais da leitura no contexto educativo.
Por isso me congratulo com o facto de, em meu tempo de menino, ter contado com professores que me deram a ler histórias com – não tenho vergonha disto !… - “moral”.
Eu sei, hoje, que a noção de “moral” artístico-literária não é, não deve ser desligável da própria escrita (de cada escrita) e, em muitos casos, se restringe ao universo único e específico de cada obra em particular que lemos/apreciamos.
Mas na “base”, como diria Eça, aprendem-se e consolidam-se aspectos básicos.
Não é mau que os jovens leitores se habituem a reconhecer na literatura um potencial edificante: Isto é, um esforço de, pela palavra, se perseguir a justiça. De se perseguir a verdade. De se perseguir o bem. De, enfim, se perseguir a Beleza (que é, como dizia o senhor Platão, isto tudo junto).

Vila Real, 23 de Junho de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Espertolândia, essa terra sem dívida soberana


Um dos senhores funcionários da ERC (Entidade Reguladora da Comunicação), dr. Elísio de Oliveira, recebe todos os meses, do Estado português, um subsídio para pagamento da habitação. O subsídio ascende a 941,25 euros – novecentos e quarenta e um euros e vinte e cinco cêntimos (mensais, repito). Explicação: o senhor tem residência fiscal no Porto e o seu actual local de trabalho é Lisboa.
Justo? Vamos conceder que sim, não obstante haver professores, psicólogos, educadores e educadoras de infância, auxiliares de acção educativa, senhores e senhoras da limpeza, etc. que, sendo embora também funcionários do mesmo Estado, não recebem um cêntimo para subvencionar despesas de habitação, transporte, telefone, and so on
Mas este senhor em concreto, segundo diz o Correio da Manhã (edição de 22-06-2011), tem afinal casa em Lisboa! O juiz Pedro Mourão, do Tribunal Constitucional, não nega que, ainda assim, o subsídio recebido esteja “formalmente” justificado. Mas lá aduz que “é imoral”.
Sem se rir, o beneficiário desta mordomia discorda: a sua verdadeira casa fica no Porto; aquela em Lisboa não é a sua residência, trata-se simplesmente de um – atenção à palavra – “investimento”.
Devíamos tirar o chapéu a tanta franqueza e a tal rigor enunciatório. O Estado vai-lhe pagando a casa que ele comprou para si, não é?
Poderíamos, se nos faltasse a generosidade, chamar um roubo a esta situação? Poderíamos. Mas, se virmos bem, o senhor tem muita razão. Aquilo foi (e é) essencialmente um “investimento”. Um magnífico “investimento”!
No planeta Terra, reinam os espertos. Parece que no céu não é bem assim, mas isso ainda está por provar…

Vila Real, 23 de Junho de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Discurso mínimo para quem fosse capaz de ouvir


Não confundas Amigo com Umbigo
Nem Rota com Rato
Nem Nata com Nada
Nem Ser com Ter
Nem Existir com Desistir!

Percebes?
(Já agora: não confundas Perceber com Obedecer!)

Ribeira de Pena, 22 de Junho com 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto que ilustra o texto é uma das imagens de Kipling (célebre autor do poema “If”) disponíveis na net.]

Fadiga d'homem


O maior cansaço nem é corporal
(Braços, pernas, respiração):
É o feito de fadiga racional,
De cívico desgaste, solidão –

A mim cansam-me os burros prepotentes
E as vozes ignorantes da tolice;
Que eu morro é de sofrer, impaciente,
A bruta brutidade da burrice.

Ribeira de Pena, 22 de Junho com 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (representando Sísifo e sua eterna pena) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.conhecimentoepisteme.blogspot.com.]

terça-feira, 21 de junho de 2011

Anedota ordinária (com Bocage, para disfarçar)


Era uma vez, outra vez, Bocage.
Noite sadina avançada, o poeta ama uma cantora estrangeira (talvez italiana, se considerarmos o facto de ela gemer com as vogais muito abertas) e compõe, mentalmente, certo soneto com vocação para escândalo.
Na sala ao lado, um amigo do escritor, religioso mais de ofício que de vocação, extermina garrafas de tinto e pedaços de frango, fingindo-se incomodado com o barulho dos amores vizinhos. Berra:
- Manuel Maria! Elmano! Afasta-te das mulheres que elas são o Mal!...
O pré-romântico responde-lhe lá de dentro, comovido pela violência (urrada, dramática) do êxtase da fêmea:
- Deixá-lo, padre inquisidor. Há males que se vêm por bem!

Ribeira de Pena, 20 de Junho de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Já são cinco horas?







Alunos do 7.º ano do Arco vieram a Ribeira de Pena, ontem, para um roteiro camiliano. Camilo Castelo Branco, em boa verdade, é para alunos tão novos sobretudo um pretexto para a aventura de um dia diferente. Algo ficará, acredito, da figura do grande escritor, da sua obra, das suas palavras e histórias com Minho e Trás-os-Montes dentro. Mas o fundamental é o convívio, o sorvedouro de novidades, os gritos, as gargalhadas, a juventude explodindo como flores em primavera incessante e doida.
Para os professores (e decerto para os esforçados guias) é cansativa esta lida com tanta e avulsa energia! É preciso gritar que tenham cuidado com a estrada, com as alturas, com as correrias, com as brincadeiras perigosas...
Quando, pelas dezassete horas, a jornada terminava, eu senti - confesso - o antecipado alívio do regresso à plácida condição de adulto quietinho da silva.
Mas aconteceu isto: à entrada para a camioneta que o levaria de volta à terra natal, um menino chamado Artur (que não é meu aluno) lamentou-se com um sorriso triste e travesso:
- Já são cinco da tarde? Quem me dera que ainda agora o dia estivesse a começar...
Ora, isto faz-nos crescer a alma - não é, Senhorinha? Não é, Rosário? Não é, Odete? Não é, Telmo? Não é, Beatriz? Não é, Luísa? Não é, Daniel? Não é, Emanuel?
E, claro, com a alma assim, tão longe de ser pequena, vale tudo a pena. Tudo!
(Não é, senhor Fernando Pessoa?)

Ribeira de Pena, 17 de Junho de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

Astronomia do Passado Perdido


Um americano, de barba e óculos enormes, a falar de mistérios do universo: parece que aquilo dos buracos negros tem a ver com a ideia de anti-matéria...
O meu problema com o tempo passado está decerto ligado a este fenómeno astronómico: tudo me vai morrendo. Um buraco negro reduz a pó a matéria que eu era (e o meu pai, e o José Manuel, e o Mestre João, e o Francisco Botelho, e a Tia Rosário...).
Saudades? Talvez as saudades sejam feitas de anti-matéria.
Eu lembro-me tanto de tantas perdas e cabe tudo num buraco negro...
E atenção: não sei se estou a falar de amor ou morte, caros amigos!

Ribeira de Pena, 17 de Junho de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.evanog.com.]

terça-feira, 14 de junho de 2011

Oitava aparentemente ingénua


Durante horas deste lindo dia
Sou imortal de novo, até morrer
A luz que me empresta a Alegria
De por certas horas não haver
A morte, essa eterna negação
De eu gozar na vida o estar-vivendo
(E escrevo mesmo como quem à mão
O sol defende, em mim, de ir morrendo.)

Ribeira de Pena, 14 de Junho de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A pintura ("Primavera") é de Pierre-Auguste Renoir.]

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Conversa n'A Catedral


Assisti há uns anos, na RP2, a uma entrevista de Mario Vargas Llosa. O escritor peruano respondeu, na ocasião, a muito inteligentes perguntas de Ana Sousa Dias sobre a literatura, o romance, a política, Vida & Mundo em geral. Confesso que não fiquei muito impressionado: o homem pareceu-me vaidoso, superficial, convencional. Li entretanto alguma coisa do que, nos últimos cinquenta anos, ele escreveu e, embora reconhecendo um certo jeito artístico-literário no tratamento do (sempre delicado) tema da sexualidade e um inegável talento no fabrico de diálogos, não me tornei adepto.
O Premio Nobel com que, há um ano, a Academia sueca o distinguiu pareceu-me um fait-divers pouco interessante e, estivesse eu com os azeites, suspeito.
Mas faltava-me ler Conversa n’A Catedral. João de Melo, num belo prefácio à edição da Dom Quixote (5.ª edição, Lisboa, 2010 – tradução de J. Teixeira de Aguilar), já alertara para o génio que é preciso para tornar literatura a verdadeira vida – ou, como o romancista português diz, recriar a cidade de Lima (tempo, atmosfera, personagens, pulsões, humanidade com espaço e espaço com humanidade) de modo absolutamente verosímil.
Hei-de trazer ao “Muito Mar” impressões mais específicas e técnicas sobre este extraordinário (e longo: 630 páginas) romance que li nos últimos cinco dias. Mas, por agora, apetece-me confirmar uma ideia que, à roda dos romances dinisianos, desenvolvi durante mais de dois anos: a de que um tempo e um lugar se fazem e se dizem – do ponto de vista da arte, da literatura em particular – com base nas mil personagens que pululam no lato cenário onde pousa o nosso olhar. As chamadas personagens principais são, quando muito, referências, muletas de orientação da narrativa. Mas todas as figuras humanas que comparecem num romance só cumprem verdadeiramente a sua função romanesca se se lhes atribuir o tempo de palavra e de acção que elas merecem, isto é, um espaço de afirmação da singularidade que as distingue de todas as outras. Dito de outra maneira: não há (passe o leve exagero) personagens realmente secundárias num romance.
A consequência que obviamente retiro desta percepção é a de que os grandes romances se aproximam - na tessitura, na dinâmica performativa, no uso competente e natural do diálogo - do texto dramático.
Ou seja, dá-se com os grandes romances (como A Montanha Mágica, do Mann; o Ulisses, do Joyce; A Morgadinha dos Canaviais, de Dinis; Os Maias, do Eça; Madame Bovary, de Flaubert; Cem Anos de Solidão, do Garcia Marquez; David Copperfield, de Dickens; Tom Jones, de Henry Fielding; Orgulho e Preconceito, de Jane Austen; Memórias de Adriano, da Yourcenar; Huckleberry Finn, do Twain; A Espuma dos Dias, de Boris Vian; O Barão Trepador, do Calvino; Em Nome da Terra, do Vergílio Ferreira; Um Amor Feliz, do David Mourão-Ferreira; O Ano da Morte de Ricardo Reis, do Saramago; Um Deus Passeando na Brisa da Tarde, de Mário de Carvalho; Vinhas da Ira, do Steinbeck; etc.) – que são romances dramáticos. Cenas e actos, claro – e gente crescendo à medida da matéria verbal que, em directo ou diferidamente, são.

Post-scriptum: A minha família mais doméstica anda, com dolorosa disciplina, a pagar dívidas que, por não termos remédio, assumimos nos últimos cinco anos. Fica-nos pouca margem para luxos e até em matéria de cinemas, restaurantes, gasóleo ou vestuário nos vemos obrigados a pensar duas-três vezes antes de cometer alguma loucura. Mas, graças a amigos e a saldos que vou descobrindo, não falta em minha casa esse tesourinho de haver livros. Fui assim, por exemplo, nestes últimos dias, muito mais rico que Zeinal Bava, pela mão singela de um romance inesquecível. Não há FMI ou Banca em geral que me roube esse privilégio. Pumba!


Ribeira de Pena, 13 de Junho de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

sexta-feira, 10 de junho de 2011

O soldado Manuel Cabral Ribeiro que desculpe a Pátria


Em 1965, um jovem português chamado Manuel Cabral Ribeiro embarcou para Moçambique, integrado num contingente que, mal sabendo porquê, ia combater na guerra colonial. A mão chorou, ao despedir-se, temendo profundamente que aquela fosse a última vez que via o filho vivo.
Enquanto o barco não chegava ao destino, o soldado escreveu um-dois-três aerogramas à família, e já em solo africano, escreveu o quarto e talvez o quinto. As missivas, dizendo “Estou bem”, levaram mais de dois meses a chegar à metrópole. Um mês apenas levaria o soldado a morrer em combate.
O pai do jovem estava a fazer a trasfega (transferindo o vinho das pipas para um camião) quando ouviu a gritaria de mulher, filhos, amigos, vizinhos. Alguém lhe explicou: “O teu filho está morto.”
O corpo, por dificuldades operacionais, nunca chegaria a ser resgatado e trazido de volta a Portugal. Entretanto, muitas semanas depois desse óbito em combate, chegavam aerogramas garantindo à família “Eu estou bem”.
Durante quatro décadas, um dos irmãos nunca desistiu de encontrar os restos daquela fraternidade morta pela guerra. Escreveu cartas; incomodou altas, médias e pequenas patentes; telefonou; requereu; insistiu.
Um dia, já em 2010, um militar fez-lhe chegar a notícia: haviam encontrado a campa de pedra onde jazia o infeliz irmão. Os “restos mortais” (como é costume dizer-se desta nossa terrenidade sobejante) estavam, enfim, prontos a regressar, quarenta e cinco anos depois da partida, ao país natal da vítima.
Eu ouvi o irmão explicar, em reportagem da Sic, neste 10 de Junho comemorativo já nem sei bem de quê, que o sentimento da família era menos de funeral que de festa. Era o reencontro do tão jovem soldado português (agora que idade tem?) com o espaço pátrio, a terrinha, a sua gente.
E igualmente ouvi o irmão acrescentar, com resignação comovente, que o Estado não tinha verba disponível para tratar deste regresso. As despesas ficavam por conta da família. A Nação (disseram-lhe altas patentes e altos responsáveis do Estado) não tem dinheiro para trazer de volta à sua terra um soldado que foi morrer, obrigado pelo seu país, a uma terra longínqua…
Sobre isto, escrevo como quem vomita - de nojo!
E ainda bem que esta reportagem da Sic foi para o ar no dia 10 de Junho, para vergonha de quem nos governa (e se governa) com maior despudor que competência.

Ribeira de Pena, 10 de Junho de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.paginaglobal.blogspot.com.]

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Soneto do Errar


De mil acordares se faz a vida
E alguns escusavam de acontecer;
Porém não há chegada sem partida
E errar fez sempre parte de aprender.

Esperanças e bonanças sem razão
Me enfeitiçaram olhos e vontade
E tantas vezes a Desilusão
Me trouxe desespero e tempestade.

De muitos acordares se faz a Graça
De viver, embora bem saibamos
Que tantos são princípio de Desgraça -

Mas viver é ofício de enganos
E mil coisas passam sempre até que passa
Por nós a Coisa Certa que buscamos.

Arco de Baúlhe, 09 de Junho de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (pintura de Degas) foi colhida, com a devida vénia, em http:www.michellechristine.wordpress.com.]

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Seis estrofes de prosa


1. Uma senhora de muita idade compra, na pastelaria do meu quotidiano, quatro pães e paga-os com numerosas moedas que tira, lentamente, de uma bolsa castanha, bastante puída. Sai depois dali com vagares de doença. Vejo-lhe, de viés, o olhar triste e o desalinho da roupa escura e velha. O dia brilha contra a velhinha, no limiar da porta. Por breves segundos, a luz interrompe-se. Bebo um café, entretanto, e (d)escrevo esta circunstância que rodeia o que vou, aqui, sendo.

2. Por causa de um livro de José Rodrigues Miguéis, viajo mentalmente de comboio. Regressa-me uma imagem antiga, espécie de metáfora a caminho de ser alegoria: a viagem ferroviária como símbolo da nossa vida passando-avançando firmemente, inexoravelmente para o fim, enquanto em sentido contrário lapsos de mundo voam para trás, isto é, vamos perdendo lugares, árvores, pessoas, coisas. Escrevo um texto sobre isto para o Arco-Íris, jornal da minha Escola. Hei-de trazê-lo ao “Muito Mar” quando for a ocasião certa para tal.

3. Um cão urina placidamente, pelas sete e meia da tarde, à porta de uma instituição bancária da minha rua. Pergunto-me o que dirão os mercados de tão rafeiro atrevimento.

4. O Jornal de Notícias fala da sucessão no PS. José Sócrates saiu enfim de cena. Um homem sem cultura humanista, sem profundidade política ou humana, sem ideologia, que foi papagueando as frases mais convenientes em cada altura, conseguiu chegar a secretário-geral de um grande partido português. Previsão: a clique que o incensou há-de oferecer-nos, em breve, os mais sujos obituários do ex-iluminado. Talvez Sócrates se encha de brio e, para calar os que teimam em duvidar das suas capacidades académicas, faça um curso superior. Aliás, outro curso. Um curso, vá.

5. A minha família precisava de mim em Coimbra, agora. Eu tenho a pistola das obrigações apontada à cabeça e não vou. Uma senhora, em conversa de circunstância na churrasqueira do Arco, diz-me que a nossa terra é onde ganhamos dinheiro. Eu digo: Pois é. Mas a minha família precisava de mim em Coimbra e eu estou aqui. A nossa terra deve ser onde estão os nossos.

6. Estou a ler Mario Vargas Llosa. Lima parece (como advertira, em prefácio, João de Melo) Lisboa, ou (como agora digo eu) Coimbra. A literatura é que é a minha terra.

Ribeira de Pena, 08 de Junho de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.clubedafotografia.blogspot.com.]

domingo, 5 de junho de 2011

À Velocidade do Amor


O meu amigo (e cunhado) José António Conceição emprestou-me A Velocidade do Amor, um romance de Antonio Skármeta, chileno que, como todos sabem, escreveu também essa maravilha chamada O Carteiro de Pablo Neruda.
Li A Velocidade do Amor (Liboa, Ed. Teorema, 1989, trad. de José Colaço Bsarreiros) durante o fim-de-semana. É uma história interessante, mas fica objectivamente aquém das grandes e inesquecíveis narrativas. Skármeta não conseguiu decidir-se em termos de tom, de perspectiva, de ritmo: os diálogos (frequentes) ora preferem a ligeireza caricatural da comédia, ora buscam uma inverosímil profundidade dramática; a acção ora se detém em cenas lentas que edificam uma ideia de atmosfera física e social, ora corre vertiginosamente de sequência em sequência; as personagens estabelecem relações de amor-ódio com demasiada facilidade e reagem de modo surpreendente e improvável às avulsas peripécias.
Fiquei com a noção de que, em termos de modo narrativo, deste livro se faria sobretudo um melhor filme.
Mas sublinho, na foz desta crítica, a essencial ideia - que mantenho - acerca de Antonio Skármeta: trata-se, sem dúvida, de um belo criador e contador de histórias.
Mais: há, no interior de toda a retórica enunciatória deste escritor, um indiscutível amor pela literatura que muito me comove. Boa parte da narração recorre, aliás, a citações, epígrafes, exercícios exegéticos ou hermenêuticos, sempre à roda de outros autores e outras obras.
Skármeta escreve pérolas como esta, ao descrever a silhueta escaldante de uma "Lolita" de 15 anos chamada Sophie (p. 28):
"Um vestido tão nu como um corpo nu. À distância podia aperceber-me de que esse leve tecido se erguia com a sua respiração: havia qualquer coisa demencialmente fresca na relação entre corpo e roupa. Era um paradoxo, um material que simultaneamente cobria e desnudava, quase senti que a minha face se encostava ao seu umbigo e que remoto e rítmico me batia nos tímpanos o latejar das suas veias."

Sobre a moderna crise da leitura, afirma (p. 65) com a melancólica lucidez de quem sabe muito bem do que fala:
"Os livros são lidos [...] pelos grandes aventureiros da alma, por quem resiste aos embates da medíocre realidade e não desesperou de achar a beleza na literatura e na vida. A gente que lê livros traz no olhar um brilho que [a] distingue do meio das multidões [...]."

E na página 74, para reforço desta cumplicidade de quem escreve com a própria pátria da literatura, o narrador (estrategicamente autodiegético) evoca Thoreau:
"Good poetry seems so simple and natural a thing that when we meet it we wonder that all men are not always poets. Poetry is nothing but healthy speech." ["A poesia, quando é boa, parece uma coisa tão simples e espontânea que perante ela nos admiramos de nós homens não sermos poetas a todo o instante. A poesia não é senão expressão saudável."]

O título de Skármeta também serve para falar desta voracidade leitora que me salva de maiores vazios. Eu leio, pois claro, à "velocidade do Amor".

Coimbra, 05 de Junho de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Mister Churchill, conforme Alice


Hoje, li no JN uma belíssima crónica de Alice Vieira intitulada "A Fotografia". Entre outros aspectos importantes, sublinhei na minha cabeça (e trouxe para o meu caderninho de notas diárias) uma referência a Winston Churchill tão formosa e inteligente que, ai de mim, não resisto a (re)glosar.
Estava-se em plena guerra mundial e o orçamento dos britânicos tinha de ser emagrecido brutal e urgentemente. Alguém sugeriu que se cortasse, desde logo, na Cultura. Churchill terá respondido que não, nem pensar, que na Cultura não se deveria cortar. De outro modo - terá ainda acrescentado -, "what are we fighting for?".
Alice Vieira termina a sua brilhante crónica com estes duas linhas:
"Outros tempos. // Outra gente."
Amen, Senhora Alice Vieira.

Arco de Baúlhe, 3 de Junho de 2011 (antes da última aula da semana).
Joaquim Jorge Carvalho

quarta-feira, 1 de junho de 2011

O melhor do fascismo (com rima a b c c a b)


Quando agora cismo
A anos de distância
Sobre o país recente
Sei mui simplesmente
Que o melhor do fascismo
Foi a minha infância.

Ribeira de Pena, 1 de Junho de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho