Assisti há uns anos, na RP2, a uma entrevista de Mario Vargas Llosa. O escritor peruano respondeu, na ocasião, a muito inteligentes perguntas de Ana Sousa Dias sobre a literatura, o romance, a política, Vida & Mundo em geral. Confesso que não fiquei muito impressionado: o homem pareceu-me vaidoso, superficial, convencional. Li entretanto alguma coisa do que, nos últimos cinquenta anos, ele escreveu e, embora reconhecendo um certo jeito artístico-literário no tratamento do (sempre delicado) tema da sexualidade e um inegável talento no fabrico de diálogos, não me tornei adepto.
O Premio Nobel com que, há um ano, a Academia sueca o distinguiu pareceu-me um fait-divers pouco interessante e, estivesse eu com os azeites, suspeito.
Mas faltava-me ler Conversa n’A Catedral. João de Melo, num belo prefácio à edição da Dom Quixote (5.ª edição, Lisboa, 2010 – tradução de J. Teixeira de Aguilar), já alertara para o génio que é preciso para tornar literatura a verdadeira vida – ou, como o romancista português diz, recriar a cidade de Lima (tempo, atmosfera, personagens, pulsões, humanidade com espaço e espaço com humanidade) de modo absolutamente verosímil.
Hei-de trazer ao “Muito Mar” impressões mais específicas e técnicas sobre este extraordinário (e longo: 630 páginas) romance que li nos últimos cinco dias. Mas, por agora, apetece-me confirmar uma ideia que, à roda dos romances dinisianos, desenvolvi durante mais de dois anos: a de que um tempo e um lugar se fazem e se dizem – do ponto de vista da arte, da literatura em particular – com base nas mil personagens que pululam no lato cenário onde pousa o nosso olhar. As chamadas personagens principais são, quando muito, referências, muletas de orientação da narrativa. Mas todas as figuras humanas que comparecem num romance só cumprem verdadeiramente a sua função romanesca se se lhes atribuir o tempo de palavra e de acção que elas merecem, isto é, um espaço de afirmação da singularidade que as distingue de todas as outras. Dito de outra maneira: não há (passe o leve exagero) personagens realmente secundárias num romance.
A consequência que obviamente retiro desta percepção é a de que os grandes romances se aproximam - na tessitura, na dinâmica performativa, no uso competente e natural do diálogo - do texto dramático.
Ou seja, dá-se com os grandes romances (como A Montanha Mágica, do Mann; o Ulisses, do Joyce; A Morgadinha dos Canaviais, de Dinis; Os Maias, do Eça; Madame Bovary, de Flaubert; Cem Anos de Solidão, do Garcia Marquez; David Copperfield, de Dickens; Tom Jones, de Henry Fielding; Orgulho e Preconceito, de Jane Austen; Memórias de Adriano, da Yourcenar; Huckleberry Finn, do Twain; A Espuma dos Dias, de Boris Vian; O Barão Trepador, do Calvino; Em Nome da Terra, do Vergílio Ferreira; Um Amor Feliz, do David Mourão-Ferreira; O Ano da Morte de Ricardo Reis, do Saramago; Um Deus Passeando na Brisa da Tarde, de Mário de Carvalho; Vinhas da Ira, do Steinbeck; etc.) – que são romances dramáticos. Cenas e actos, claro – e gente crescendo à medida da matéria verbal que, em directo ou diferidamente, são.
Post-scriptum: A minha família mais doméstica anda, com dolorosa disciplina, a pagar dívidas que, por não termos remédio, assumimos nos últimos cinco anos. Fica-nos pouca margem para luxos e até em matéria de cinemas, restaurantes, gasóleo ou vestuário nos vemos obrigados a pensar duas-três vezes antes de cometer alguma loucura. Mas, graças a amigos e a saldos que vou descobrindo, não falta em minha casa esse tesourinho de haver livros. Fui assim, por exemplo, nestes últimos dias, muito mais rico que Zeinal Bava, pela mão singela de um romance inesquecível. Não há FMI ou Banca em geral que me roube esse privilégio. Pumba!
Ribeira de Pena, 13 de Junho de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
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