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sábado, 22 de outubro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (59)

Emigrante de sua Mãe

Durante um lento e escuro Sábado, enquanto lá fora caía a mui outonal chuva da minha tristeza, um pequeno apontamento de reportagem televisiva (com a marca da RTP1) interrompeu o frio e iluminou-me a sala: uma mulher de Cabeceiras de Basto fazia 60 anos e, sem que o pudesse prever, viu-se rodeada de filhos e noras e netos, a maioria chegada subitamente de França. Só, sublinhe-se, para estarem com sua Mãe-Sogra-Avó. Um dos filhos explicava à repórter que viera de madrugada e que, no dia seguinte, bem cedinho, viajaria de regresso a Lyon, “porque não se pode faltar ao trabalho”.

A minha França, leitores, é menos longínqua e difícil, fica só a 260 quilómetros de Coimbra, nem 2 horas levo a fazer a viagem. Mas sou, no essencial, esse mesmo emigrante com eternas saudades do cantinho maternal, cheio sempre dessa febre de reencontrar gente cúmplice, ruas conhecidas, edifícios e árvores familiares de há muito, tantíssimo tempo.
Ainda tenho viva a minha Mãe. (Há aqui muita angústia no advérbio “ainda”!) Como se passa com os emigrantes de França, ela é, à distância, o meu País. Duas vezes por mês, em média, chego à sexta-feira com uma querida urgência a queimar-me os olhos: saio do trabalho e apresso o carro até à casa transmontana (minha provisória morada há 21 anos), beijo a mulher, ultimo as malas e desço as escadas, célere como um menino coimbrinha de 1973. Pelo caminho, já telefono para ouvir a sua voz, para aconselhá-la sobre as ruas escorregadias e os perigos do frio ou do calor, para fingir-me chocado com as suas diatribes de adolescente septuagenária, para chocá-la com ideias tolas (que só aduzo para a fazer rir).
Depois, entro pela cidade como quem chega ao quintal de casa, reconheço as luzes, os cruzamentos, as rotundas, a churrasqueira onde compramos, ao Sábado, frango e azeitonas – até aterrar, enfim, na minha Mãe. Então, trocamos beijos, às vezes um ou outro abraço incontrolável e comemos algum doce que haja comprado pelo caminho.
Por dois dias, descanso do manicómio da vida adulta, dessa engrenagem feita de obrigações cínicas, horários fascistas, renúncias (ir)responsáveis, separações dolorosas, desesperos avulsos. Ali alegremente repouso no momento, sultão do universo, portuguesinho milionário e poderoso e feliz.
De tudo quanto escrevo, caros leitores, colhei só duas verdades – ambas cheias dessa querida claridade típica de manhãs limpas: que a minha (nossa) Mãe é a minha (nossa) verdadeira terra natal; e que o Presente - com uns bocadinhos de Passado, em forma de lembrança - é tudo quanto realmente tenho (tudo quanto realmente temos).


Vila Real, 15 de Outubro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 20-10-2016.]

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