Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (58)


Enunciado de ausências

 Num dos mais belos poemas de Aquele Grande Rio Eufrates, Ruy Belo fala de um amigo que partiu para “a outra margem” – e de, naquele abandono de Dor, não haver “tenda verbal” que nos proteja. Estes versos vieram fazer-me companhia no final da semana passada: um homem da minha idade, querido companheiro diário nos últimos 21 anos, despediu-se da vida e deixou mais pobre e triste a “nossa” vila.
A teia da Morte tornou-se-me mais conspícua e assustadora a partir dos 40 anos. Durante décadas, fui pouco menos que imortal, gloriosamente imune a graves doenças (próprias ou próximas). À imagem de Pessoa-menino, foi esse o tempo em que “eu era feliz e ninguém estava morto”. Nos últimos 13 anos, a notícia (velha, afinal) da mortalidade começou a repetir-se-me, despovoando o mundo à minha volta. Adeus, Pai – e adeus, Mestre João (meu sogro e companheiro), Zé Manel e Conceição (meus cunhados tão novos e tão cúmplices e tão alegres), Francisco Botelho (meu Amigo especial), meus vizinhos de Coimbra, meus vizinhos da Madeira, meus vizinhos de Ribeira de Pena, tantíssima gente que eu julgava eterna (escritores, actores, músicos - e futebolistas como Damas, Eusébio, Cruyff). Adeus.
Devim, como é mais ou menos fatal para quem se atreve a permanecer mais de meio século sobre a Terra, um acumulador de ausências, espécie de coleccionador de vazios. Como um velho emigrante que, ao fim de alguns anos, volta à aldeia natal e encontra, para além da paisagem visível, casas e caminhos e pessoas que já não estão e lhe faltam como bocados de si próprio.
Sei muito bem que o problema maior da Morte é a gente pensar nela. Saber que ela existe. Aceitar, contrariado embora, que essa cabra tem o poder de nos levar quem não podemos perder. Quem me dera – exclamo eu, pessoanamente – a ingenuidade das crianças ou dos doidos!
Já agora: soube há dias de um caso – desses muito úteis para crónicas e outros enunciados exemplares – que se terá passado num Lar do interior português. Um dos residentes, com histórico de doença mental (controlada), homem de 60 e poucos anos, assistia à remoção terminal de um companheiro da sua velhice institucionalizada. Perante a inexorável despedida, de olhos arregalados e com inusual rouquidão, saiu-se com esta pérola para a assistente social que ali estava:
- Ontem estávamos todos vivos!
E rematou, numa promessa que, confesso, me soa ao desespero mais pungente de todos:
- Eu não. Eu cá não morro!

Ribeira de Pena, 10 de Outubro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Nota: Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 13-10-2016.]

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